“Não tenho mais nada a perder e isso é libertador”:
“Desde sempre fui uma pessoa extremamente supersticiosa, tinha meu número de azar, o 11, sempre andava com um saquinho de amuletos e acreditava que iria morrer aos 40 anos, nem mais nem menos, exatamente 40. Quando fui internado estava com 37 anos, sabia que “Touro Indomável” seria meu último filme, então me dediquei de corpo e alma a ele, pois sabia que eu não duraria muito mais.”
A versão que Mardik escrevera era muito mais focada na história de Jake, tinha uma longa sequência dele no reformatório em sua adolescência e havia alguma vontade de tornar a coisa um pouco melhor, fazer do personagem um cara mais humano, mas era algo um tanto quanto difícil e quando Scorsese pegou o roteiro para tentar fazer dele algo mais pessoal, uma porrada de coisas extremamente sem nexo começaram a brotar. O projeto não parecia progredir e De Niro estava ficando cansado. A United não aprovou o roteiro e mesmo a chantagem de Irwin de só fazer um novo “Rocky” se eles rodassem “Touro” já não estava colando tão bem. Scorsese e Bob foram até Paul Schrader para que ele reescrevesse o roteiro. Ele aceitou, mas deixou claro que estava fazendo um favor, já que só queria escrever para suas próprias produções. Marty ficou possesso, mas aceitou, pois a ideia soava melhor aos ouvidos da United. Pouco depois, o novo texto chegou e era mais focado na relação entre Jake e seu Irmão, Joey, que era um cara menor, que não sabia lutar, mas fazia o papel de empresário do irmão, no fim era o único que conseguia aturar Jake. Desta vez, LaMotta parecia mais profundo, talvez pela notável aproximação que Paul havia sentido com o personagem, já que vivia uma relação difícil com seu irmão Leonard. Scorsese amou a versão de Schrader, mas algumas coisas não soavam bem, como uma cena em que Jake se excita antes de uma luta e no roteiro constava: Close no pau duro de Jake que o mergulha em um balde de gelo. Ou uma cena em que Jake decadente acaba de ser preso por abuso de menor e na cadeia, triste, tenta se masturbar para relaxar, mas não consegue, por três vezes, pois lembra que sempre fez besteira com sua vida e com os que ele mais amava, depois fica irado e soca a parede com as mãos e com a cabeça. Todos detestavam o personagem, até mesmo Paul chegou a dizer que não dava para fazer algo simpático, pois LaMotta não passava de um verme. O único que continuava convicto de que o protagonista era alguém interessante e que deveria ser levado a sério no projeto era De Niro, e até certo ponto Scorsese, que a essa altura já estava convencido de que o filme dialogava com ele e que sua “animalização” era algo interessante para um filme.
Martin anunciou que gostaria de rodar em Preto e Branco, queria que o filme se parecesse com aquilo que ele via as vezes nas transmissões de boxe na TV e novamente a United ameaçou sair do projeto, então Irwin organizou uma reunião com os executivos do estúdio: “Era uma reunião do tipo ‘Oi’, e falar do projeto, só para que eles se sentissem parte da coisa e parassem de ameaçar a produção, que já estava em bom andamento”. Martin e De Niro foram para essa reunião do tipo “oi”, e ao chegarem lá os executivos apresentaram diversas objeções, contra a decisão de filmar em Preto e Branco, as cenas de masturbação e uma cena onde Jake chuta a barriga de sua mulher grávida até ela abortar por conta de um bife mal passado. Irwin dizia calmamente: “Vamos achar um roteirista que melhore isso” e um dos executivos retrucou: “Não se trata do roteiro em si, sei que não vai ter um close no pau de De Niro, mas trata-se desse cara, não importa quantas versões façamos ele continuará parecendo a mesma coisa”. O ator, que até então não havia falado nada, se levantou e perguntou: “O que ele está parecendo?”. Meio retraído, mas com clareza, o executivo disse: “Uma barata”. Calmo, mas com certa raiva no olhar, Bob disse: “Ele não é uma barata... ELE NÃO É uma barata.” Um silêncio pairou no ar e os executivos da United foram embora. Irwin mandou que Bob e Scorsese fossem para algum lugar dar um jeito no roteiro, já que Schrader havia abandonado o projeto de forma dramática – jogando as páginas na cara de De Niro – e voltar em duas semanas para que pudesse ver o que ainda poderiam fazer com a United.
Bob e Martin foram para St. Martin, isolados de todos: “Foi horrível, eu detesto ilhas, e minha asma estava me matando por conta dos medicamentos que eu estava tomando para me desintoxicar e parar de usar drogas. De Niro cuidava de mim e fazia meu café da manhã, e lá deixamos o roteiro bem mais parecido com o que está na tela e quando voltamos, Irwin estava contente e disse: “A United aprovou o projeto. Temos o sinal verde e os 18 milhões de que precisamos.”. As filmagens começaram em abril de 1979.
Alguns atrasos aconteceram, o estresse de Scorsese nunca esteve tão alto, mas ele realmente se dedicou ao máximo e conseguiu fazer algo de fato extremamente emocional, forte e impactante. As cenas das lutas de Jake foram tão bem dirigidas e cheias de simbolismos que o mínimo que se faz ao assistir é entrar em transe. O filme realmente era uma obra de arte e isso de certa forma se deve ao fato de Scorsese se desprender de qualquer vontade de fazer algo excepcional ou artisticamente importante. Por diversas vezes disse: “Eu jamais vou ter um público como Francis ou Spielberg. Meu público são os caras com quem eu cresci, os mafiosos, os caras do Queens, motoristas de caminhão, carregadores de móveis. Se eles acharem que está bom, pra mim está ótimo”. Essa convicção de que ele rompera com o estilo hollywoodiano, de que não tinha mais nada a perder e nenhuma perspectiva futura o libertou e permitiu que ele realizasse o melhor trabalho de sua carreira, o primeiro filme que é Scorsese, do começo ao fim.
Em julho de 1980, Martin mostrou o filme no estúdio da MGM para Andy Albeck, o Executivo Chefe da United, Steven Bach que era Chefe de produção e mais algumas pessoas que estavam por lá. Quando a projeção acabou e as luzes se acenderam e a sala ficou em silêncio. Nem o habitual aplauso aconteceu. Martin se escorou na parede do fundo na tentativa de desaparecer ou algo assim. Então, Albeck levantou de sua poltrona, marchou até Scorsese rapidamente, apertou sua mão uma vez e disse em voz baixa: “Sr. Scorsese, o senhor é um Artista”, e se foi. Quando todos saíram, Martin parou uma jovem que estava na plateia e perguntou a ela o que havia achado do filme. A moça desatou a chorar e correu para fora da sala. Martin tinha certeza que o filme era um tanto quanto desagradável: “O cartaz era a cara de Bob toda esmurrada e deformada encarando a pessoa – se você é uma jovem de uns 19 anos, dificilmente dirá: ‘Ei! Vamos ver esse aqui!’.” A distribuição certamente não foi das melhores, e o filme fez cerca de 23 milhões, o que não é muito, considerando o gasto de distribuição e etc. Apesar das críticas positivas que chegaram a o definir como “o melhor filme de 1980” e “um clássico instantâneo”, poucos o entenderam e viviam dizendo: “O filme é incrível, mas é o personagem mais repugnante da história do cinema”. Nem mesmo a cena de Jake esmurrando a parede e dizendo em prantos: “Eu não sou um animal”, sensibilizou o público, mas no fim talvez fosse só um filme mal compreendido, ou muito além de seu tempo, o que de certa forma é uma boa forma de pensar, pois depois ganhou mais e mais público, chegando a ser considerado o melhor filme da década, e o melhor de Scorsese. O maior problema, se é que podemos dizer, é que trata-se de um filme essencialmente anos 70, uma gigante baleia encalhada na praia da nova época. Era uma obra de ator, um filme que valorizava o personagem mais que a trama e que, de fato, não tinha ninguém por quem torcer. Com seu visual de tabloide, um clima “tapa na cara”, antirromântico, preto e branco, sua violência feroz e seus personagens asquerosos entremeados com imagens fantasmagóricas de Pietás renascentistas e ecos de óperas do realismo italiano como “Cavalleria Rusticana”, “Touro” era a coisa mais distante possível da papinha subserviente e mandatoriamente otimista produzida pela “contrarrevolução” cultural que se aproximava. Scorsese recusara-se a fazer concessões, tinha feito o anti-Rocky, dado uma banana para “Star Wars” e pagaria por isso com seu próximo filme, também com De Niro no papel principal, “O Rei de Comédia”, outro que só poderia ter sido feito nos anos 70, mas como foi lançado em 1983 passou totalmente em branco por todos e que de seus 19 milhões investidos, recuperou ridículos 2,5 milhões, menos do que o gasto em publicidade para o filme. O público simplesmente não entendeu o longa, a geração era outra, Spielberg e Lucas de certa forma eram culpados por isso, mas a televisão era mais. Os diretores não levaram o meio televisivo a sério, e ele abocanhou uma geração inteira, então do nada apenas filmes como “De Volta Para o Futuro” tinha chance nas telas, e sabe o que era pior? Mais alguns anos e filmes como esse já seriam engolidos por outros, cada vez mais baixos, cada vez mais bobos, cada vez mais fúteis. Os estúdios haviam tomado posse do poder novamente e Scorsese só pôde perceber isso quando foi chamado pela Fox pra conversar sobre o fracasso que foi “O Rei da Comédia”: “Eles simplesmente me disseram que estavam tirando o filme de circulação, que não valia a pena financeiramente mantê-lo em cartaz. Perguntei se o fato do filme ter sito bem avaliado teria algum peso. Disse a eles que mais algum tempo e o boca a boca aconteceria, mas eles não quiseram nem saber, e o tiraram de cartaz, com menos de um mês. Sabia que estava tudo perdido”. Martin havia feito o filme por causa de De Niro, que achava o roteiro ótimo e o tinha entregue por volta de 1974. Martin também gostou do projeto e achou que seria bom e diferente, mas o filme levou Scorsese totalmente para baixo, fazendo-o repensar se deveria ou não continuar dirigindo, se era ou não de fato um diretor que valia algo. “‘O Rei da Comédia’ acabou comigo e me fez voltar à posição que eu estava quando aceitei fazer ‘Sexy e Marginal’, não mais do que um diretor que não era nem um pouco quente”.
O recomeço:
Dando aulas para se manter, Scorsese sobreviveu. Começou a revisar um de seus projetos há muito parado, a “A Última Tentação de Cristo”, que escrevia e parava desde 1971, época em que ganhou o livro de Barbara nas filmagens de “Sexy e Marginal”. Desta vez o projeto progredia mais, algo sugerido por seu analista, que o encorajava, pois novamente Scorsese estava em parafuso, acordava sem vontade de trabalhar, sem vontade de continuar e para piorar, seu casamento com Isabella Rossellini havia acabado.
A indústria continuava e desta vez estava tudo acabado para caras como ele e seus amigos como Francis, DePalma, Friedkin e Bogdanovich. A indústria estava cansada de diretores e estava pegando de volta, como por pirraça, toda a liberdade que pareciam ter dado ao cinema “de autor”. Os diretores autorais voltaram a ficar com a parte podre da maçã: “Uma vez um amigo meu me apresentou a um executivo e eu falei de ‘A Última Tentação’, ele riu na minha cara e disse ‘Me liga na segunda feira’. Nada que não pudesse ser contado em 25 palavras era interessante ou vendável o bastante, os tempos eram outros e não era mais interessante fazer filmes”. A única coisa que Scorsese podia fazer era começar tudo do zero novamente, e acabou por criar coragem o bastante para assumir um projeto de baixo orçamento, sem um estúdio, sem De Niro e com um monte de gente desconhecida – “Depois de Horas”. Scorsese conseguiu sobreviver, embora alguns considerassem a posição um bocado humilhante.
“Depois de Horas”, de 1985, é realmente um filme Scorsese, tem poder e embora estivesse prestes a ser apenas uma produção independente ignorada, é um baita filme que conseguiu render incríveis 10 milhões, mesmo sendo distribuído de forma pequena e em poucas salas.
O que veio a seguir na carreira de Scorsese trata-se de uma reabilitação de um velho, que depois de beber muito tem metade de seu fígado arrancado e espera pacientemente a recuperação, lenta, mas boa, pois sua saúde tem um instinto de lutador que as almas mais jovens não conseguiram adquirir. “A Cor do Dinheiro”, de 1986, é um filme sobre um jovem jogador de sinuca e um experiente apostador que resolve investir nele. Também independente, se deu bem, embora não seja um filme autoral de Scorsese, é muito cativante e digno de um grande cineasta.
Martin continuou lutando por “A Última Tentação de Cristo” e em 1989 finalmente conseguiu realizá-lo. É construído com toda a garra possível, algo que exigiu que Scorsese colocasse dinheiro de seu bolso, o levando a assumir dívidas enormes que só puderam ser pagas muitos anos depois, mas que sanaram uma vontade pungente que o atormentava, apesar de ter sido uma bomba nas bilheterias. Era algo que ele queria fazer e fez por si, que divide opiniões mas é fundamental em sua filmografia. Os anos 80 terminam como uma década mais silenciosa para cineastas como Scorsese.
Chega então “Os Bons Companheiros”, retorno bem sucedido ao meio da máfia, com roteiro seu, com De Niro e com Irwin na produção, dando toda a liberdade que Scorsese tinha adquirido nos anos 70, mostrando que não só ainda era bom como ainda existia público para os seus filmes, se tornando um sucesso comercial que rendeu a Scorsese o convite do amigo Spielberg para comandar “Cabo do Medo”, brilhante suspense psicológico de 1991 que tirou Scorsese das dívidas, lhe deu uma casa e o apresentou a um público jovem, dando-lhe força para que pudesse novamente fazer um filme que ninguém esperava: “A Era da Inocência” de 1993, adaptação de um romance do século 19 que assim como “New York, New York”, uma homenagem que fracassou, uma bomba ainda maior que o filme de 1977, provando que fazer uma produção de época é realmente um luxo perigoso de assumir. Mas Scorsese, agora acostumado ao novo sistema, consegue cair e se levantar com mais facilidade. Seu nome agora é levantado por seus filmes do passado e Martin se torna uma referência, alguém que influenciou uma geração de novos diretores que agora dirigem filmes líderes de bilheteria e que colocam Marty como ícone, a exemplo de Quentin Tarantino com “Pulp Fiction”, Paul Thomas Anderson com “Boogie Nights” e assim por diante.
Com “Cassino”, de 1995, Martin se mostra afiado, ainda um bom roteirista e finalmente um diretor extremamente maduro. Fecha um ciclo de parcerias, sua ópera da decadência de personagens do passado se encerra, assim como uma grande fase de sua carreira e de sua vida emocional, todos em um sarcófago, junto de seus filmes antigos e seus traumas.
“Kundun” de 1997, e “Vivendo no Limite” de 1999 mostram um Scorsese não necessariamente fazendo projetos autorais, mas que levam um pouco de sua marca e mostram sua flexibilidade e também dificuldade de se adequar com, mais uma vez, um mercado em mutação, em duas obras que juntas não conseguiriam se pagar nem em um milhão de anos, apesar de suas maravilhosas tramas e importâncias.
Com “Gangues de Nova York” de 2002, o direitor abre uma nova fase, para filmes mais arriscados, maiores e mais ousados, dessa vez com maturidade. Marty alimentava o projeto desde a década de 70 e assim como “A Última Tentação de Cristo” levou um pouco mais de sua vitalidade e muito mais de seu dinheiro, provando que seus cabelos brancos não lhe tiraram o espírito jovem e aventureiro de fazer filmes.
“O Aviador”, de 2004, “Os Infiltrados”, de 2006, que lhe rendeu o primeiro Oscar de Diretor e Melhor Filme, numa redenção tardia da Academia, “Ilha do Medo”, de 2010, e a homenagem cinematográfica “Hugo”, de 2011, mostram que seu fígado de velho está curado. O amor pelo que faz o permite viver de forma mais tranquila. Assim como De Niro, Scorsese passa a integrar produções grandes de modo a “Pagar as contas”, e mesmo assim mostra que seu estilo brota de si, com maturidade, economia e garantem enfim seu reconhecimento. Em uma indústria onde nem se sabe quem dirigiu um filme e onde os que não funcionam precisam logo dar espaço para uma nova produção, ele foi o artista nos anos 70 que sobreviveu aos anos 80, que se reinventou em redenção nos anos 90 e se “profissionalizou”, como ele mesmo gosta de dizer, na década de 2000. Com “O Lobo de Wall Street” Scorsese abre uma nova fase ao lado de Leonardo DiCaprio, fazendo seus pequenos grandes filmes com a energia dos anos 70, mas com a cabeça e a experiência de quem vingou até aqui, se tornando, em minha opinião e análise, o único diretor da “Nova Hollywood” que conseguiu se manter fiel a seus princípios, e pode hoje continuar fazendo aquilo que ele mais queria: filmes.
No começo da década ainda vieram diversos documentários e um curta que ele assinou, suas brincadeiras sérias, que o permitiram manter o amor e as mãos nas rédeas. Projetos diversos ainda floreiam sua cabeça, entre eles, um sobre Padres Jesuítas no Japão de séculos atrás – Silence – e um roteiro biográfico de Frank Sinatra. Podemos esperar muito ainda do senhor de 72 anos de fala rápida que adora colocar The Clash em seu apartamento a todo volume e “Ficar no pique por causa da batida da música”. Scorsese é uma figura única e nitidamente o grande homem atrás da cortina puxando os fios e contando as histórias que o cativam, porque é isso que o move.
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Cara, muito obrigado por essa série de artigos!
Eu que agradeço a audiência, Wedersom. Temos outros artigos como esse na aba da coluna do Cinerama: José Padilha, Stanley Kubrick, Coppola. Dá uma olhadinha depois. o/