Texto originalmente publicado na coluna O Nerd Disse do Nerddisse.
Existem várias cenas em Blade Runner – O Caçador de Andróides em que a direção de fotografia de Jordan Cronenweth se faz notar. Cronenweth é considerado um dos mais influentes cinematógrafos da história do cinema e seu trabalho na ficção científica dirigida por Ridley Scott em 1982 ganhou vários prêmios incluindo oBAFTA Award, uma espécie de OSCAR britânico. Curiosamente, a Academia Norte-Americana não considerou a direção de fotografia de Blade Runner digna de concorrer ao seu prêmio maior. A explicação é simples: até pouco tempo, o cinema fantástico não era muito bem visto pelos jurados do OSCAR, até Peter Jackson dirigir sua trilogia do Senhor dos Anéis, pelo menos.
Mas, voltando a adaptação do livro de Philip Dick, Blade Runner mostra um futuro dominado por grandes corporações, onde a produção de seres artificiais chamados de Replicantes chegou a uma situação problemática. Na busca pela construção do ser perfeito, a Tyrell Corporation, maior responsável pela manufaturação destes “andróides”, acabou dando origem a Replicantes com a capacidade de desenvolver sentimentos. Por causa desta “fragilidade” perigosa, seus produtos tem uma vida de 4 anos. Depois disso, morrem, não permitindo o desenvolvimento de pensamentos que poderiam os levar a um tipo de rebelião contra os humanos. Ainda como medida de segurança, o uso de Replicantes na Terra foi proibido, então sua mão de obra é aproveitada em contruções nas colônias em outros planetas. A trama do filme mostra 5 destes seres no nosso planeta depois de escaparem de uma nave. Eles buscam a resposta para viverem mais. Pra isso tentam a todo custo chegar a Tyrell, o criador. Para caçá-los, a polícia de Los Angeles (onde o filme se situa) usa os serviços de Deckard (Harrison Ford), um Blade Runner, designação para os caçadores de Replicantes. No meio do caminho, Deckard acaba de apaixonando por Rachel (Sean Young) a secretária de Tyrell que também é Replicante, mas graças a memórias falsas, pensa ser humana. O filme tem em seu clímax a batalha entre o personagem de Ford e Roy Batty, interpretado por Rutger Hauer, o líder dos “bonecos”, nome jocoso utilizado pela polícia para designar os seres artificiais. A busca pela vida mais longa se transforma na valorização da própria. Batty percebe em seus últimos momentos que sua hora chegou e passa a ver o curto período que lhe foi dado a partir de uma outra perspectiva.
Desde o primeiro momento em que Blade Runner foi parar nas mãos do jovem diretor inglês Ridley Scott, sua idéia era a de fazer uma ficção científica ambientada numa Los Angeles inspirada pelos anos 30 e 40. O filme deveria ter um visual futurista, mas que sugerisse imediatamente este período, no qual se proliferaram no cinema os filmes policiais denominados filmes noir. A produção deveria ser, como foi chamada mais tarde, uma distopia noir futurista. Outra exigência de Scott era a do realismo. Embora fosse parte do cinema fantástico, Blade Runner deveria ter características fundamentadas no mundo real. Essa busca passou por todos os departamentos de produção, principalmente o artístico e de fotografia.
A análise a seguir pretende mostrar, usando alguns momentos do filme, como a direção de fotografia deJordan Cronenweth foi fundamental para a criação de um mundo fantástico realista, e como a influência do cinema noir trouxe uma valorização de luzes e sombras que contibuiram para essa ambientalização diferenciada.
A criação de um futuro real
A fotografia de Blade Runner imediatamente remete ao jogo de luzes e sombras do cinema noir. Esta característica não foi acidental. Segundo Cronenweth, “Ridley sentia que o estilo de Cidadão Kane era o mais próximo do que ele imaginava para Blade Runner. Isso incluia, entre outras coisas, alto contraste, o uso incomum de ângulos e feixes de luz em cenas internas”.
Como vários aspectos do filme, a fotografia pega convenções clássicas e as atualiza, levando-as a um passo adiante. “Usamos luzes, sombras, fumaça, chuva, relâmpagos para dar ao filme personalidade própria”, diz Cronenweth. “As ruas estavam terrivelmente lotadas de gente, dando ao público uma imagem familiar, algo com que eles pudessem fazer uma ligação”, completa. Era uma maneira de Scott de mostrar ao mundo os problemas que uma muito provável superpopulação do mundo poderia trazer. A imagem de várias pessoas aglomeradas como formigas chega a ser assustadora. Para essas sequências, o diretor de fotografia optou por mostrar os humanos em paletas de cores quase inexistentes.
O objetivo era fazer o espectador perceber como estes habitantes do futuro eram apáticos e sua aglomeração não os levava a lugar algum. Era como se toda aquela multidão andasse em círculos, num movimento automático. Porém, enquanto as pessoas eram sem cor, as ruas de Los Angeles são exatamente o contrário. Com o uso de muito neon, Cronenweth deu ao ambiente externo mais personalidade do que a de seus habitantes. A cidade é mostrada como um personagem a parte, quase como um observador dos acontecimentos do filme. Uma cena famosa de Blade Runner mostra o Spinner (carro voador usado pela polícia) passando por um gigantesco painel luminoso com uma japonesa fazendo propaganda de algum produto. O interessante nesta cena é exatamente simbolizar esta personagem como uma espécie de observadora. Ainda na mesma sequência, a tela é sutilmente coberta por uma leve chuva ácida, aliada a trilha sonora de Vangelis, um dos momentos mais imersivos do filme. Os neons não eram apenas objetos cênicos. Eram ferramentas de iluminação eficientes, pois sua luz direcional caindo sobre os personagens transmitem ainda mais a sensação de realismo. Isso porque, por mais luz que uma ou outra cena possa ter, Cronenweth optou por usar sombras em tudo. Então, quando a luz de um neon está em Deckard, ela não o ilumina por completo, deixando sombras em um ou outro ponto, como elementos fortes de expressão para a cena. Segundo Cronenweth “não é o que você ilumina que importa, é o que você não ilumina”.
Mas, discutindo a fotografia de Blade Runner, Cronenweth enfatiza que técnica não é o mais importante. “A coisa única não é o equipamento ou os géis ou a intensidade da luz. Era o conceito por trás de cada situação, que ajudava a contar a história. Como o filme era ambientalizado no futuro, fontes de luz incomuns poderiam ser utilizadas em lugares onde ninguém aceitaria se fosse uma história num mundo contemporâneo. Um exemplo disso são os guarda-chuvas com cabos de neon, que ajudavam a iluminar o rosto de alguns pedestres”. Não é que este tipo de equipamento seja plausível, mas sua utilização e importância em criar e ambientalizar o clima do filme fazem com que as cenas em que foram utilizados sejam “realistas” aos olhos do espectador. Toda a direção de arte do filme foi criada especialmente para aquele mundo, fazendo com que cada peça se encaixasse e realmente fizesse parte daquela Los Angeles de 2019.
Um fator característico de Blade Runner é a adição de elementos naturais ao quadro fotografado. A chuva ácida citada acima não era o único destes elementos a surgir na tela. Fumaça e feixes de luz também estavam presentes no ambiente. No caso de fumaça, as cenas eram iluminadas com luz quente, vinda pela frente e uma forte backlight. Já os feixes de luz foram uma idéia de Ridley e Jordan. O conceito, discutido por ambos, acabou se tornando um dos maiores temas em termos de fotografia do filme. Foi usado diversas vezes, em várias cenas, mas com o mesmo significado: o de invasão da privacidade por uma força superior desconhecida. Esses feixes invadiam a tela nas cenas em que a cidade era mostrada por um ponto de vista amplo. Usado tanto em anúncios de publicidade ou pela polícia como forma de vigilância. Na forma vista pelos dois, você nunca sabe de onde vem a luz, mas mesmo na privacidade do seu lar, a não ser que você feche sua persiana, você será “interrompido” uma hora ou outra. E, claro que para o efeito de feixes ficar mais realçado, há alguma fumaça também.
Análise de uma cena: luzes, sombras e o beijo de Rachel
Uma sequência de Blade Runner que mais ou menos sintetiza a análise anterior é a do beijo de Deckard em Rachel. O Caçador de Andróides leva a secretária de Tyrell para casa, depois dela fugir de suas obrigações ao descobrir ser uma replicante. No apartamento, Deckard está descansando e Rachel vai até o piano, vê algumas fotografias antigas e começa a tocar. Quando ela se senta ao instrumento, podemos ver que a atriz está contra uma luz que não se sabe de onde vem. Pode ser um dos feixes que atravessam a janela, vindos de fora ou um simples posicionamento incomum de iluminação, como já explicados por Jordan Cronenweth, acima. O personagem de Harrison Ford percebe o som e se levanta de seu sofá.
A iluminação aqui é bem sutil. Deckard praticamente tem apenas sua silhueta revelada. Ele caminha e se senta ao lado de Rachel. O enquadramento privilegia o perfil dos dois, mas é a personagem de Sean Youngque domina a tela, com seus cabelos soltos. A cena que se segue tem um tom bastante romântico, até Deckard tentar beijar a replicante. Ela se afasta, se levanta e corre assustada em direção a porta. Ele então vai atrás dela. Quando Rachel abre a porta, o Blade Runner a fecha novamente, com uma pancada forte. A cena que se segue é Deckard beijando-a de uma forma até violenta. A cena representa os instintos humanos a flor da pele, com o policial instruindo a replicante a como se comportar durante um beijo. Há mais por trás disso. É também o detetive sendo mostrado como controlador da situação. Durante toda essa sequência a luz vem de trás de persianas, criando uma sombra com o formato das mesmas, bem ao estilo dos antigos filmes noir.
O grande trunfo da cena do beijo é justamente tirar da sequência o clima romântico. Quando a luz entra pela persiana e ilumina Deckard, ele deixa de ter feições suaves. As sombras em seu rosto o projetam mais como uma figura monstruosa. Por causa da natureza da cena, com Rachel sendo particulamente inocente e não conhecendo o amor como sentimento, o detetive, controlando a situação está praticamente cometendo um estupro. Enquanto ela não pode confiar em suas memórias, por terem sido implantadas, Deckard se aproveita e tenta estimular sentimentos na replicante. Mas, como não se tira emoções de uma máquina que não sabe o que são emoções, esta cena representa para Deckard um momento de limite.
Ele quer que ela tenha esses sentimentos a ponto de forçá-la a isso, mesmo sabendo que a resposta será a que ele a instrui a dar. E sem a iluminação incomum providenciada por Cronenweth, está cena com certeza não teria o impacto desejado. Mais uma vez, a direção de fotografia não é apenas técnica, é um fator fundamental da narrativa.
Com todos estes elementos, Blade Runner – O Caçador de Andróides é um filme único por não ser apenas uma produção de efeitos especiais e sim algo muito maior. Graças a Cronenweth e Scott, que usaram o poder da imagem para tornar aquele mundo tão característico, palpável aos olhos do espectador. Blade Runner é um dos grandes filmes norte-americanos (está em diversas listas da Associação de Cinematografia e outras respeitadas instituições) e uma prova de como a fotografia é uma aliada do roteiro e, neste caso, ajuda a criar um ambiente próprio e imersivo como poucas vezes se viu no cinema.
As informações técnicas deste texto, bem como as citações de Cronenweth sobre o processo de cinematografia de Blade Runner vieram deste artigo (http://www.theasc.com/magazine/mar99/blade/pg1.htm) da revista da ASC, a Associação Americana de Cinematografia.
Jordan Cronenweth faleceu em 1996, depois de lutar por mais de 16 anos contra o Mal de Parkinson. Seu último trabalho, embora incompleto, foi Alien³ de David Fincher. Seu filho Jeff também é diretor de fotografia e tem sido parceiro de Fincher desde Clube da Luta. Foi responsável por A Rede Social, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar 2011 e esteve mais uma vez ao lado do diretor em Millennium - Os Homens Que Não Amavam as Mulheres.
belo texto!