Cabra-Cega : A desventura romântica e paranoica sobre a guerrilha urbana

Cabra-Cega : A desventura romântica e paranoica sobre a guerrilha urbanaCabra-Cega é um filme brasileiro que mira um contexto histórico e um drama político. O longa de Toni Venturi se localiza no gênero de thriller, temperado com temperos de uma crítica ácida as ações políticas dos anos de chumbo, ou seja, é uma trama que se passa durante a época da ditadura militar, protagonizada por militantes opositores do Regime, os mesmos que eram tratados como bandidos e terroristas.

A história se baseia na vida de dois estudantes que vivem o sonho da revolução, ou ao menos tentam isso, já que basicamente sobrevivem em meio a perseguição dos agentes autoritários da ditadura.

A história acompanha Tiago, personagem de Leonardo Medeiros, que é o comandante de um grupo de ação que foi ferido. Desde que foi pego em uma emboscada da polícia, ele precisa se esconder. Fica então no apartamento de um colega simpatizante da causa.

Enquanto se recupera ele recebe a ajuda de Rosa, moça interpretada por Debora Duboc, uma militante que age como enfermeira particular e como o contato dele com o mundo externo, já que ele fica confinado ao espaço do apartamento durante todo a trama.

Escrito por Di Moretti, o longa-metragem tem argumento de Fernando Bonassi e Victor Navas, baseado na ideia de Roberto Moreira. Os estúdios por trás dele são a Globo Filmes, Olhar Imaginário com distribuição da Europa Filmes.

Os produtores associados são muitos, entre eles Moretti, Medeiros, Francisco Andrade, os atores Duboc, Michel Bercovitch, Jonas Bloch, o cantor Chico Buarque (que empresta parte de suas músicas para a trilha), do cinematógrafo Adrian Cooper, do montador Willem Dias. Já Sergio Kieling é o produtor executivo.

Cabra-Cega : A desventura romântica e paranoica sobre a guerrilha urbana

A música é assinada por Fernanda Porto, que inclusive, empresta sua voz para versões do cancioneiro de Chico, como Roda Viva, Construção e Rosa dos Ventos. Ela também canta Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, em versão junto a Toni Garrido.

Venturi é conhecido por O Velho: A História de Luiz Carlos Prestes e Latitude Zero, também Estamos Juntos e A Comédia Divina.

Os atores principais se tornaram famosos ao longo do tempo. Leonardo Medeiros fez Lavoura Arcaica, Não por Acaso e Feliz Natal. Recentemente interpretou Assis Chateubriand em Hebe e Manfred von Richthofen na trilogia A Menina Que Matou os Pais.

Débora Duboc fez Latitude Zero, Filme Fobia, também esteve nos filmes sobre o caso Von Richtofen, como Nadja Cravinhos.

Cabra-Cega : A desventura romântica e paranoica sobre a guerrilha urbana

Di Moretti escreveu Latitude Zero, junto a Venturi. Também trabalhou em Nossa Vida não Cabe num Opala e nos documentários Tropicalia e Dominguinhos. Navas escreveu Cazuza: O tempo não Para e Carandiru, também fez segmentos e capítulos no seriado infantil Castelo Rá-Tim-Bum.

Bonassi escreveu Carandiru além de Lula: O filho do Brasil e as séries Força-Tarefa, O Caçador e Supermax. Moreira escreveu Um Céu de Estrelas e dirigiu Terapia do Medo.

A narrativa inicia praticamente sem trilha sonora. Rosa arruma algumas roupas no armário, depois, de maneira terna, vai se despedir de Pedro, personagem de Bercovitch, afirmando que que está saindo com a chave.

Sem que se fale uma palavra, fica claro que aquele apartamento será um aparelho, termo utilizado pela guerrilha como a definição de uma base para os militantes em fuga, servindo ou para ações ou para simples estadia.

Aos poucos se percebe que Pedro é o dono da casa e está cedendo ela para o protagonista se recuperar sem perturbações ou perseguições.

A música Saveiros, de Dori Caymmi e Nelson Motta embala os primeiros momentos da trama, enquanto se mostram imagens reais de manifestantes durante os anos de chumbo. Essa música é cantada belamente, pela responsável pela música do filme, Fernanda Porto.

Tiago aparece mexendo em algumas armas, várias na verdade, entre revolveres, pistolas, metralhadoras e caçadeiras. Ele as guarda em malas, enquanto se lamuria de dor, levando a mão ao peito.

Age como um animal ferido, se sente mal por não conseguir estar em ação. Suas palavras e atitude são as de um guerreiro abatido, que se penitencia por estar longe das ações de guerrilha e se sente impotente graças ao fato de não estar no fronte de batalha.

Ele lamenta até na hora de mexer em seu ferimento. Eventualmente Rosa verifica como vai a recuperação, nota que a profundidade do ferimento e foi funda, mas ele tenta parecer forte.

Quando sozinho, no banheiro, ele respira fundo, para driblar a dor. Procurando alívio, ele se movimenta tal alguém quando está se drogando, mas não fica claro se ele faz uso de alguma substância, parece repetir um gesto comum, de quem está em abstinência.

Tiago e Pedro conversam, relembram quando se encontraram no passado. O homem ferido se recusa a saber detalhes da vida do sujeito, fora obviamente essa coincidência. Eles eram conhecidos, não amigos íntimos, não à toa são tão distantes ideologicamente.

Tem em comum o conhecimento de Mateus (Bloch), um homem que finge ser veterano de guerra, mas que na verdade foi torturado na época da ditadura de Getúlio Vargas.

Não parece ser à toa que os nomes deles são de apóstolos, inclusive dois dele eram pescadores, sendo Pedro o mais nervoso dos discípulos, enquanto Tiago era o irmão do escritor do Apocalipse João. Curiosamente a personalidade dos personagens bíblicos foram invertidas. Mateus também é nome de um apóstolo, no caso, o cobrador de impostos.

Tiago se movimenta de maneira preocupada pela casa, ele se esgueira, se mexe como se estivesse se escondendo, abaixa ao passar pelas janelas. A experiência de ter sido pego foi tão grave que ele agora sofre de uma grande paranoia.

Até para receber Rosa ele está armado, quando baixa a guarda para ela, pede que ela arrume as cortinas.

Em alguns pontos da trama, o protagonista tem lembranças das ações de guerrilha. Há um cuidado da fotografia de Cooper em colocar uma cor diferenciada, em um tom sépia, que deixa esses momentos com um ar diferente.

O Mateus que foi citado, aparece. Jonas Bloch faz um sujeito mais velho, experiente e bem menos idealista que seu companheiro. Venturi usa closes rápidos para mostrar a decepção no rosto do homem ferido, ao saber que seus camaradas do Rio de Janeiro caíram.

Mateus passa mensagens e recados a Rosa, em seu trabalho, mostrando-se assim como uma liderança nesse grupo de resistência. Já Tiago tem problemas de confiança. Até se estressa com a vizinha, uma senhora estrangeira, que depois se mostra simpática a causa, já que seu filho morreu em condições parecidas com as dos militantes, foi morto na ditadura franquista, na Espanha.

Havia no povo quem simpatizasse com as pessoas da luta armada, mas era incomum que essas se expusessem, mesmo em ambiente fechado, como um prédio de São Paulo.

A ação de Tiago como "herói de guerra" mira mais a paranoia amedrontada e limitante. Ele está sempre nervoso, com medo de cair e ser pego. Seus dias se resumem a se aproximar da vizinha, receber antigos amigos que passaram também por tortura, ouvir música na vitrola da casa, além de travar alguns atritos com seus camaradas que passam pela casa, inclusive com o dono dela, já que o personagem central não confia em Pedro.

Depois que Carlos Lamarca caiu, Tiago faz greve de fome, tenta protestar simbolicamente, embora sua condição de anonimato mate parte do possível peso dessa ação.

Em alguns pontos ele claramente superestima a própria importância, tanto que não percebe que seu sentimento de luto não interfere pragmaticamente na rotina dos que batem de frente com o Regime.

Pedro lamenta que Toledo, Marighella e Lamarca caíram e a postura do rapaz irrita Tiago, que o acusa de ficar em cima do muro, de não agir para impedir que companheiros como esse tenham sido derrotados.

Esse é um filme de conflitos pesados, mas também há quem olhe para as ações e pensamentos do personagem ranzinza como apenas amargor e preciosismo. O fato de ter sido ferido o faz se considerar quase um santo, um mártir, que se orgulha de suas virtudes ao ponto de ignorar que está sendo ingrato com quem o ajuda.

Aos poucos o cerco fecha. Rosa vê um cartaz de procurado, colado em um ônibus, que mostra as identidades reais de seus amigos. Tiago é chamado por seu nome, Roberto Santos, também aparece Afonso Carneiro, que é o nome original de Mateus.

Em alguns pontos a trama dá um respiro, uma lufada de ar fresco na rotina dos personagens. Isso se dá principalmente na cena do terraço, em que Rosa leva o "prisioneiro" vendado na parte de cima do prédio, para ele finalmente ter contato com a luz do sol.

Nesse ponto, é tocado o clássico Eu Quero Botar Meu Bloco na Rua de Sergio Sampaio, em uma sequência bonita, singela e simbólica, que mira o desejo do sujeito em ter liberdade, em viver sua vida de novo, não se escondendo necessariamente.

Cabra-Cega : A desventura romântica e paranoica sobre a guerrilha urbana

Tiago percebe estar sozinho, assume ser deprimido e confessa sua melancolia a Rosa. Eles se enlaçam, basicamente por conta de ele ser sincero com a moça. A intimidade deles é outra cena sentimental e bela.

Venturi injeta emoção no final, nas conversas entre Tiago e Pedro, também no desespero do personagem central, achando que vai ser pego pelos homens da polícia.

A câmera na mão dá a esse trecho uma perspectiva diferenciada e persecutória ele passa a andar armado mais vezes a partir daqui. Até decide ir a rua, escondido.

Foge rapidamente em um trecho embalado por Construção. Enquanto a música do Chico toca, ele demonstra estar com uma metralhadora guardada embaixo de um sobretudo, pronto para morrer, caso fosse necessário. Mas não, o personagem é freado pela frustração, se sente novamente impotente e fraco, já que encontra Mateus/Afonso morto, estirado no chão, perto do carro da polícia.

O homem que sobreviveu décadas antes ao regime do Estado Novo, caiu ante os milicos que tomaram o poder na década de 1960. Não havia nada que ele pudesse fazer, no máximo, cairia junto.

Os momentos finais são sentimentais. Depois da melancolia vem a ação, ele manda sua amada queimar os papéis que guardava, arruma malas para sair, até acha que Pedro o entregou. Depois de uma batida no prédio, que mirava outro alvo, ele se prepara para matar, até inclui seus companheiros nessa nova postura, que até então, não mostraram tanta vontade de ação armada. Claramente Pedro e Rosa se sentiram preparados por conta de estarem acuados.

O longa termina em união poética e violenta, com os militantes indo na direção do sacrifício, já que claramente preparados para morrer do que para morrer. Toca uma versão rápida de Roda-Viva, em um ritmo tão acelerado quando o pensamento e comportamento de Tiago.

Cabra-Cega é frenético, direto, sufocante e até bonito, uma boa homenagem aos românticos que buscavam a liberdade do país e aos verdadeiros patriotas que deram sua vida para determinar o fim do Regime, mesmo sem sucesso. Venturi acerta demais, trazendo à luz uma obra simples, mas muito inspirada, que louva a memória dos que se entregaram em sacrifício para o progresso do Brasil.

Avatar

Comente pelo Facebook

Comentários

Comente pelo Facebook

Comentários

Deixe uma resposta