Cães de Caça é uma produção peculiar desde a sua premissa. A obra que completou 20 anos apresenta uma história de ação misturado a drama de guerra e tem uma de suas viradas uma exploração de horror. Comandado por Neil Marshall, é uma boa e diferente exploração de arquétipos de lobisomens.
A introdução do filme é na Escócia, mostrando um casal apaixonado acampando. Em meio a intimidade deles, a o zíper da cabana onde estão é aberto, acompanhado depois de um rapto brutal, que faz escorrer sangue sobre o personagem, mas sem mostrar direito o que de fato ocorreu.
Marshall utiliza a tática spielberguiana de Tubarão, evitando mostrar o seu monstro para causar no público uma grande expectativa.
Logo o roteiro leva o espectador até o norte do País de Gales, onde militares tem uma bateria de testes, se esforçam a exaustão, com o superior deles Ryan (Liam Cunningham) dando a eles um treinamento duro, supostamente para um tipo de Esquadrão inconsequente, duro e que não discute ordens
Ele tenta instruir Cooper o seu melhor recruta, interpretado pelo icônico Kevin McKidd, mirando zerar nele a consciência e por tabela, derrubar sensações como culpa ou pena. Para isso, o superior manda matar o cão que o farejou depois de 22 horas de perseguição.
O personagem tal qual um herói clássico obviamente se nega a fazer isso, fato que conversaria com o futuro deles, 4 semanas depois, nas regiões montanhosas escocesas.
Apesar de se passar em nações de Reino Unido, Marshall filmou a maior parte das cenas em Luxemburgo, já que havia semelhança entre os cenários florestais, tanto que quase não se percebe a diferença entre países, ao menos não em tela.
Cooper então é devolvido ao seu antigo pelotão.
Com ele treinam outros quatro homens. Entre os soldados, se destaca Wells (Sean Pertwee), o líder tático, e Spoonie (Darren Morfitt), um dos novatos, além da dupla de amigos Joe e Terry (Chris Robson e Leslie Simpson respectivamente), que ficam mais na retaguarda.
Apesar de Cooper torcer para não encontrar mais o antigo instrutor, é evidente isso ocorrerá, já que Ryan está espreitando ele, ao passo que o filme nem busca esconder isso.
O quinteto passa o tempo conversando, dividindo experiências enquanto tentam sobreviver naquele espaço, munidos com metralhadoras carregadas com festim. Em meio ao treinamento, um relato de Wells se destaca, sobre um traumático momento em que ele e seus companheiros tiveram de colher os restos mortais de um soldado amigo, que explodiu.
O texto vai conter spoilers a partir daqui.
Mas esse momento de desabafo é interrompido por uma queda inesperada, de um animal que certamente não viria do céu. Uma vaca dilacerada cai das nuvens, claramente atravessada por algo ou alguém violento, ou com lâminas ou com presas.
Há um cuidado muito grande com cenários e com efeitos práticos. Isso se percebe até antes de aparecerem seres inumanos. Quando os soldados andam na mata e pisam em algo viscoso, espalhado pelo chão cheio de mato o efeito já assusta, especialmente quando se percebe que aquilo pode ser partes de um homem, semelhantes demais ao real.
Pequenos indícios de terror se espalham, até o momento que encontram Ryan, cortado no peito, repetindo "era para ter apenas um". Também diz para tirarem ele dali, antes que "eles" voltem.
Tanto a fotografia Sam McCurdy quanto o vermelho sangue estilizado se tornam mais vívidos e impressionantes graças a boa remasterização recente pela qual o longa passou. O trabalho hercúleo de restauração resgata bem a sensação de quem viu a obra nos cinemas.
O design de produção de Simon Bowles é posto a prova até mesmo antes do lobisomem surgir, e são valorizados também nessas versões recentes lançadas em material de mídia física.
Os detalhes no 4k impressionam, mas também ajudam a denunciar alguns dos efeitos práticos das criaturas, mas dado o orçamento baixo do filme, isso é passável.
Os efeitos de maquiagem são assinados por Bob Keen, o também diretor de efeitos de Força Sinistra e Hellraiser, mas aqui seu trabalho é exigido para outro aspecto, igualmente brilhante.
Marshall não tem receio em expor seus personagens a insalubridades. O tempo todo eles estão sujos, seja de terra, areia, poeira ou sangue. O perigo é demonstrado inclusive em sua pele.
Depois do encontro do soldado com seu antigo superior, o batalhão decide trocar a munição, pegando balas reais, para enfrentar fosse o quem fosse os inimigos.
A música de Mark Thomas faz o suspense crescer, aumentando a sensação de conflito iminente, além de ajudar a estabelecer uma aura de suspense que é impossível de ignorar.
Na tentativa de salvar Wells, que foi atingido e quase morto, eles encontram uma moça, chamada Megan (Emma Cleasby), uma zoóloga, que reside em uma cabana antiga que pertence a uma família local que ela conhece.
A moça usa uma desculpa bem suspeita, diz que estava ali para se conectar com a natureza, e acidentalmente caiu na rede dos lobos bípedes que cercam o local a noite.
O texto tem a inteligência ao explorar os medos dos personagens em ações práticas. Um dos rapazes desperdiçando munição, mostrando que o descontrole está muito próximo deles. Para economizar, Cooper dá a instrução de dar apenas rajadas curtas e controladas.
Há uma baita cena, de uma tentativa de operação de Wells. Ela serve de resumo para filme, uma mistura boa entre o terror da morte chegando, com um humor incômodo e nonsense de ter que costurar um sujeito em um lugar inapropriado. Mesmo que Megan tenha noções de primeiros socorros e enfermagem está longe de ser especializada para fazer tal serviço.
Marshall trabalha muito bem com o que tem em mãos, com o espaço reduzido, deixando seus lobos atacando pelas frestas da casa a noite. Além disso, o seu lobisomem é magro e com pelos sujos...nas tomadas escuras parece um monstro lovecraftiano.
Na meia hora final a trama desemboca para a tragédia, com mentiras e tentativas vãs de controlar o incontrolável e de tentar coletar os licantropos.
As tentativas de fuga são fracassadas e Marshall não pouca o público, colocando os lobisomens arrancando cabeças, com os efeitos impressionantemente realistas.
Além disso, também há referências a teorias da conspiração, especialmente no que cerca Ryan, sua recuperação e a perda de seu pelotão, não ficando claro se eles caíram por falta de planejamento, se foi deliberado ou um misto dos dois, com o vilão superestimando as próprias condições de controle da praga lupina.
É obviamente uma tentativa do setor militar inglês de capturar armas vivas, para adestra-las.
Não adiantou mobilizar as operações especiais - ou funcionou, caso o ideal deles fosse transformar seu capitão em um licantropo - ou seja, era uma missão fracassada.
Cunningham acerta muito em sua atuação, conseguindo gerar raiva em McKidd e no espectador, uma vez que ele usa o protagonista e seus amigos como isca. A entrega do restante do elenco também é soberba, cada personagem tem seu breve momento de brilho, e todos estão afiados.
A transição humano-lobo de Ryan é bem dramática, evoca os clássicos de filmes cuja lua cheia transforma heróis e vilões.
Ha outros detalhes sobre os soldados que valem destacar, como a inabilidade de Spoon em atirar de maneira racional, além da ingenuidade de Terry, que antes de ser capturado, ficava na frente de janelas, com monstros à espreita.
Isso ajuda a determinar o estado de nervos em frangalhos dos personagens, e dá um senso de urgência. Eles têm que resolver logo, tem que fugir a todo custo.
O filme não é muito sutil, mostrando a condição de transformação como algo inevitável, como uma condição viral ou uma doença que não se pode driblar. As cenas de luta, entre sobreviventes e a família de lobos humanoides é sensacional.
Há vários bons momentos e tentativas de improviso, já que as munições acabaram. Cooper deveria sair de lá vivo, para contar a história do que aconteceu, mas nem mesmo isso é garantido.
Marshall filma muito bem, sabe onde posicionar a câmera para ângulos diferenciados e obtusos. Seu intuito é registrar de perto as contradições e infortúnios de soldados, mostrando uma intimidade insalubre e inglória típicas da privação a que militares em treinamento são submetidos.
Cães da Caça é simples e direto ao ponto, tem sua boa dose de diversão e sabe usar seus lobisomens de forma curta e parcimoniosa. Seus personagens são pessoas comuns e fáceis de simpatizar, conseguem representar bem o homem diante de um desafio monstruoso, mesmo sendo militares, valorizando o medo do desconhecido e o receio de se transformar em algo indesejável.
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