Lembro que um tempo atrás gravamos um podcast sobre O Silêncio dos Inocentes, e nele comentamos brevemente sobre uma série que estava iniciando. Tratava-se de Clarice, programa da CBS que tinha a árdua tarefa de seguir os rumos após o longa de Jonathan Demme, mas sem duas coisas fundamentais: o respaldo dos textos de Thomas Harris, autor de quatro livros sobre Hannibal Lecter, e claro, sem os direitos da figura do carismático canibal que Anthony Hopkins interpretou brilhantemente.
Lembro também que na época, fui bastante crítico aos primeiros episódios, achei derivativo, genérico. Eu e meus companheiros fomos bastante azedos, especialmente por conta do visual e da produção assinada por Alex Kurtzman, que é responsável por algumas obras tão fracas que se tornaram pérolas, como A Múmia com Tom Cruise.
Assistindo os 13 episódios da temporada inicial – até aqui, a única garantida, já que não há qualquer indício de uma renovação – a impressão mudou e mudou bastante.
Com Kurtzman há a assinatura da showrunner Jenny Lumet, conhecida no passado como atriz de filmes de baixo orçamento, a filha do diretor Sidney Lumet foi galgando degraus, escrevendo filmes como O Casamento de Rachel. Depois, ela migrou para a televisão, participando ativamente dos novos seriados de Jornada nas Estrelas, com roteiro em Star Trek: Discovery e como co-criadora em Star Trek: Strange New Worlds.
Da parte da trama, o piloto inicia mostrando Rebecca Breeds interpretando a mesma Clarice Starling que Jodie Foster fez no longa de 1991, iniciando sua trama imediatamente após a morte de Bufallo Bill.
Aos poucos se repercute os sentimentos dos sobreviventes, tanto de Clarice, que parece átona e amortecida - pudera, ela teve uma situação de convivência bastante absurda, e se solta bem aos poucos - além de outras personagens, sobretudo mulheres, que apareceram também no filme.
Se destacam principalmente duas moças com contato direto com a personagem título, são elas Catherine Martin, a moça que esteve presa com o serial killer, feita de maneira bem diversa do visto no filme, visto que a atriz Marnee Carpenter é bem diferente de Brooke Smith, especialmente por seu físico esguio, de quem queria se distanciar física e mentalmente da vítima que esteve no poço do vilão.
O outro destaque é o papel de Ardelia Mapp, a parceira de Clarice, interpretada por Devyn A. Tyler, que também é bem diferente da versão vista nos cinemas.
O carisma e desempenho da atriz impede que ela perca na comparação com sua contraparte. Ela está muito bem é desenvolta desde início, e ajuda Breeds a carregar o seriado nesse começo onde as outras personagens buscam sua própria identidade.
A cronologia da série se localiza em 1993, passado um ano após o caso de Bufallo Bill, e mesmo com essa distância temporal, é possível sentir no ar o remoer daqueles crimes hediondos, e a sensação em todos os envolvidos de que a vida não é a mais a mesma, quando não passa a perder o sentido, como é o caso de Catherine.
Entre tentativas de Clarice de se consultar com psicanalistas e a inserção em equipes comuns do FBI onde ela acabou de ingressar, a personagem é alocada em uma equipe de investigação, e ao longo dos episódios passa por algumas tramas envolvendo assassinos em série.
Seu núcleo é liderado por um personagem conhecido de quem acompanha os filmes e livros da saga: Paul Krendler. Ele é interpretado dessa vez pelo bom Michael Cudlitz que fez um personagem completamente diferente em The Walking Dead, e que outrora, foi executado de maneira caricata pelo finado Ray Liotta, no Hannibal de Ridley Scott.
Aqui o personagem é bem diferente do visto antes, é um sujeito duro, que não gosta da publicidade que vem com Starling, oriunda do resgate da filha da senadora Ruth Martin.
Mas engana-se quem acha que esse é um personagem vilanesco, ao contrário, ele é um sujeito complexo, que faz muito pelos seus subordinados, e não tem receio de sujar suas mãos para permitir que eles trabalhem livres em suas investigações, mesmo que usem métodos pouco usuais.
O restante da equipe é formado por gente comum, mas bastante preparada. Essa é outra riqueza da série, uma vez que os personagens têm carisma e personalidade. O segundo em comando é Murray Clarke, interpretado por Nic Sandow que ficou famoso por contada de Orange is the New Black, como o diretor do presídio Joe Caputo.
Abaixo dele, há Shaan Tripathi, do ator e humorista Kal Penn, que aqui é um investigador comedido e bastante sóbrio. Além deles, há o atirador de elite de origem latina Tomas Esquivel, do filho de imigrantes brasileiros Lucca de Oliveira, que já havia trabalhado bem em Steal Team, O Justiceiro da Netflix e Animal Kingdom.
Curiosamente, nos livros de Harris, Clarice se encaminha para o setor de Narcóticos, inclusive trabalhando com Krendler, mas é difícil antecipar se nessa linha do tempo isso ocorrerá igual, até pela não garantia de que o programa vai seguir.
Já no início dá para perceber uma construção visual bem legal. A fotografia privilegia tons cinza, mostrando um mundo mergulhado em melancolia, e essa arquitetura quase esconde o tom mequetrefe do primeiro arco investigado e as conveniências do roteiro, que tratam Starling como uma mulher tão preciosa que pode passar por cima das ordens superiores sem grandes reprimendas.
Ainda bem que esse tom vai mudando. A partir do segundo episódio a personagem larga mão de ser uma versão feminina de Ethan Hunt nos primeiros Missão Impossível, e passa a ser realmente parte de uma equipe de policiais especiais.
O roteiro pune a protagonista, a coloca em um papel de desconfiança, merecido aliás. Como é jovem, ela apela para ingenuidade, e fala demasiadamente em uma entrevista a imprensa, e a rejeição que Krendler tem é compartilhada também pelos outros. O reatar de uma boa relação se dá bem aos poucos.
Entre os vilões há um homem que manipula mulheres e lidera um culto, e outra trama, mais elaborada e explorada próximo do final, que mostra uma história que flerta com teoria da conspiração, rocambolesca e misteriosa, mas certamente o núcleo da família Martin que reside o mais interessante dos assuntos do seriado.
A senadora Ruth Martin é interpretada por Jayne Atkinson, de Criminal Minds e House of Cards, e aqui ela já se estabeleceu, é uma famosa promotora de justiça. Ela fica preocupada com a filha, que por sua vez, além de fazer muitos exercícios para emagrecer e se fortalecer, também adotou Precious, a cadelinha do seu algoz do passado.
Lidar com uma filha que quase morreu já é algo complicado, fora até o receio de que ela tenha uma recaída e cometa algo terrível como suicídio. Ainda há o agravo das referências a questões mentais como inclinação a sociopatia.
Catherine parece ter agorafobia, se isola, não sai de casa, mal vai além de seu quarto, tanto que a a cachorrinha faz suas necessidades ali, e ela além de não comer, não se incomoda com o cheiro de fezes.
A personagem denuncia graves sensação como a percepção de desamparo, por não ter tido o socorro que julgava merecer.
Vive relembrando os momentos tristes no poço, chegando a regredir no comportamental, se recusando a comer sólidos, mesmo em um jantar com Clarice presente. Também flerta com a condição de Síndrome de Estocolmo, chegando ao cúmulo de se colocar na posição dele, quase chegando as vias de cometer um assassinato.
O cuidado nesses trechos é enorme, se exige demais tanto de Carpenter quanto de Breeds, e ambas brilham muito, são vocais, emocionais e equilibradas.
É nesse período que Clarice percebe que tem lembranças travadas, do dia que resgatou Catherine, e isso viria a ser explorado mais a frente, em um caso pesado.
Além disso, a personagem é humanizada, revelando que mesmo após sua grande bravura, ela caiu em prantos, mas não por ser uma mulher frágil, e sim por ser uma humana complexa.
Outra boa exploração é com Ardelia, que é mostrada como alguém que sonha em trabalhar no campo - e consegue - sem ignorar o preconceito comum a pessoas pretas em instituições policiais.
O seriado também se debruça sobre questões de preconceitos com pessoas transexuais, como é visto no caso da colaborado Julia Lawson, de Jen Richards, e o modo como isso é abordado foge da comum complacência e condescendência.
Há muita história dentro desse ano, tramas que envolvem subornos, especialmente com Krendler e uma espécie de sociedade secreta, que tenta culpa-lo por seus próprios pecados, e por mais que a descrição desse trecho possa parecer implausível, o aspecto ajuda a pontuar o crescimento do trabalho de Breeds enquanto atriz, já que em meio a ação que ela destrava memorias reprimidas relacionadas ao seu pai, fato que o retira do pedestal heroico, e o mostra como alguém humano e maquiavélico, tanto que coloca a filha em risco, possivelmente várias vezes.
É bom que se preserve ao leitor exatamente qual é o fato mostrado, pois como a série não foi tão vista, é bom guardar os spoiler. O que se pode falar é que faz refletir que talvez o sujeito fosse alguém corruptível, invertendo a ordem das coisas.
Isso ainda ganha força graças ao fato de que a protagonista chega a uma conclusão em um desabafo com Catherine e não com o psicólogo. É pontual, fecha um ciclo de cooperação mútua e parceria, iniciada no filme de Jonathan Demme, ainda que de forma subliminar.
Numa eventual segunda temporada poderia haver um desenrolar maior sobre o que o patriarca Starling fazia, se ele agia de forma suspeito como parte das suas investigações, fato que explicaria os nervos de aço de sua filha, herdadas dele, ou se ele era de fato alguém malvado.
Fato é que Clarice tem muito mais a oferecer do que julgava-se, e dificilmente terá um desfecho merecido, o que é uma pena.