O Louco Desejo é um filme giallo lançado em 1969 que é conduzido por Umberto Lenzi e protagonizado por Carroll Baker. É chamado também de psicogialli, que é uma vertente do gênero onde se explora mais sentimentos de paranoia, em detrimento da fórmula de perseguição a um assassino mascarado.
Coprodução entre Itália e França é a primeira parte de uma trilogia temática que reunia a atriz principal e o diretor. Incluiu também Tão Doce Quanto Perversa de 1969 e Os Ambiciosos Insaciáveis, de 1970, ambos filmes que mantém elementos de suspense e thriller, além de explorar os clichês do clássico Psicose de Alfred Hitchcock.
Essa é uma história original de Lenzi, chamada originalmente de Paranoia. Nela havia um casal de personagens e alguns agregados. Até certo ponto a história seria um romance puro, até que a irmã do homem chega, dá indícios de que pratica incesto com seu irmão, começando a partir daí uma série infortúnios que abordaremos com mais detalhes na parte com spoilers, obviamente.
O roteiro foi escrito junto Ugo Moretti, de O Homem de Toledo, Duplo Assassinato e Alcova. O texto passou por tratamentos também da francesa Marie Claire Solleville, que estreava na escrita nesse e faria depois Os Amantes Insaciáveis e Os Anjos Também Comem Feijão.
Esse é possivelmente o maior sucesso de Lenzi na Itália, ao menos no terror, perdendo apenas para Império do Crime (Napoli Violenta). Na época em que foi lançado, parte da crítica especializada atacou demais a obra. O realizador reclamou em entrevistas posteriores, que os analistas pegavam no seu pé em suas análises, afirmando que seus filmes eram de extrema direita.
Segundo o próprio, sua filmografia foi reavaliada anos depois, sendo considerada um bom retrato da violência e agressividade da Europa no século XX, especialmente despois que fez Roma Armada (1976) com o cubano Tomas Milian.
A questão da nomenclatura é uma história curiosa e interessante para além do filme ser ou não digno de nota. A ideia era chamar esse de Paranoia na Itália, tal qual ocorreu nos Estados Unidos, onde a obra fez tanto sucesso, que ajudou Lenzi a financiar seu filme de guerra A Legião dos Malditos, estrelando Jack Palance.
No entanto os distribuidores italianos encrencaram com isso, pelo fato da palavra NOIA significar algo como chato ou enfadonho. Daí ele foi chamado de Orgasmo, nome esse que faz pouco ou nenhum sentido com a trama apresentada.
Para piorar, o já citado Os Ambiciosos Insaciáveis se chama Paranoia na Itália, sendo chamado em inglês como A Quiet Place to Kill. Quem sofria na hora de entender sobre qual filme conversava era a atriz principal. Não era incomum em convenções, festivais ou em entrevistas avulsas Carroll Baker confundir sobre qual dos longas de Lenzi estavam falando.
Um dos nomes de trabalho dele foi Una pazza voglia d'amare, também se pensou em Gli angeli del peccato. Na França, se chamava Une folle envie d'aimer, na Holanda é Erotisch waanzinnig e em Portugal, recebeu o bom nome O Cego Desejo.
O filme foi rodado no Reino Unido e na Itália. Há cenas em Carlos Place - Mayfair, em Londres, Windsor - Berkshire, também na Via Appia em Roma e nos Elios Studios, em Lazio, também na capital.
A narrativa inicia com a chegada de Kathryn ou Catherine West - dependendo da legenda ou dublagem do material - que pousa no aeroporto cercada de paparazzi, tal qual uma estrela de cinema.
Ela é uma viúva, uma herdeira de uma grande fortuna, que chega até a Itália para usufruir das posses que tem. Apesar de enlutada, ela parece linda, esplendorosa, como uma musa, uma mole fotográfica de revista ou passarela.
Lenzi teria ainda mais experiência dentro do giallo, fez inclusive o já analisado Sete Orquídeas Manchadas de Sangue, também Spasmo e Quase Humano, obras cujo estiloso se diferenciam bastante desse O Louco Desejo.
Nesse se percebe uma fotografia repleta de closes rápidos, em um trabalho primoroso do cinematógrafo Guglielmo Mancori, de Golias e os Pecadores da Babilônia, Corre Homem, Corre e O Bebê de Manhattan.
Catherine é assessorada por um advogado experiente, no caso, Brian Sanders, um sujeito idoso, feito por Tino Carraro. Ele recepciona a moça no novo país, a leva até a sua casa, onde é cuidada por Teresa (Lilla Brignone) uma espécie de governanta da família do seu ex-marido.
Não demora até que apareça um mecânico, jovem e bonito, que trabalha para ajustar o carro da madame. Ele vem a ser Peter Donovan, personagem do francês Lou Castel.
Catherine e ele acabam se envolvendo, de uma maneira súbita, muito rápida e até estranha, já que o serviçal simplesmente entra no banheiro enquanto a mulher se banha, entrando no chuveiro, depois de perceber que a patroa entrou.
O mais surpreendente é que ela permite essa aproximação. Isso é justificado pela pecha desse ser um thriller erótico, tal qual foi no contemporâneo O Doce Corpo de Deborah, no entanto, não há muita explicação ou desenvolvimento narrativo para que a dupla se envolva tão apaixonadamente e de maneira tão repentina.
Os dois, no entanto fingem não ter intimidade na frente dos outros funcionários da casa, ao menos em um primeiro momento. Ela precisa manter um verniz social, afinal, poderia ser encarada como devassa, ninfomaníaca ou algo que o valha.
Aos poucos, eventos estranhos ocorrem, como uma suposta invasão a casa, durante uma noite chuvosa, ao menos é o que a senhora acha. Percepções erradas e movimentações estranhas passam a ser frequentes e crescentes.
A percepção de eventos corriqueiros é sempre posta em cheque, já que a personagem estava sempre se dopando, seja quando ela decide ingerir drinks alcoólicos ou quando simplesmente ministram a ela de maneira forçada. Lenzi coloca a câmera em pontos obtusos e estranhos, mostrando que a perspectiva da realidade é quase sempre pervertida.
Catherine e Donovan tem um momento de intimidade fora da mansão, na casa do rapaz. No meio do ato eles são interrompidos, pelo senhorio, que entra para cobrar a dívida do aluguel.
Constrangida, West pega dinheiro em sua bola e zera o débito com o locador. Antes das mudanças de paradigmas e de moradia, Lenzi brinca com o misancene, mostra a personagem central entre grades, como se estivesse presa. É pouco sútil nisso, mas passa sua mensagem de maneira esperta.
Apesar do incômodo desse ato, a partir dali os dois mudam de postura, vão perdendo o pudor de aparecem juntos, até posam lado a lado quando estão na residência da mulher rica.
Peter passa a praticamente morar na casa de sua amada, tanto que se sente à vontade para receber uma visita familiar, a de sua irmã Eva, vivida pela bela atriz francesa Colette Descombes.
Gradativamente a dupla toma conta do espaço e das coisas de West, assim como se tornam os donos das vontades da mulher, de um modo tão passional e bizarro que a velocidade muda, acelera bastante e mal se percebe.
O domínio dos dois sobre Catherine só aumenta, sem pudor, tanto que acelera no exagero e agressividade. Eva vai tomando conta da relação entre os amantes, vira motivo de briga entre Catherine e Peter, até brinca de apontar uma arma para a dona da casa.
A relação é estranha, especialmente quando ela decide ficar presente no recinto, enquanto eles se preparam para transar, tanto que ela quase testemunha o sexo, até passa a mão nos cabelos do irmão, enquanto ele joga a amada na cama.
Depois de sair para encontrar seu advogado, Catherine retorna para casa e encontra uma carta escrita para si, onde é xingada e tratada como vagabunda, então entra em seu quarto e flagra Peter e Eva nus, na cama, se beijando.
Ela foge correndo, depois desmaia, é socorrida por Teresa, que está com os dois irmãos ao lado. Nesse ponto não fica claro se ela finge que nada viu ou se realmente pensa que talvez esteja vendo miragens em sua casa.
Como Catherine bebe demais fica a eterna dúvida, se ela é uma personagem de discurso confiável ou não. A sensação paranoica é bem construída e a tensão é quase palpável. Lenzi acerta demais e a trilha sonora incidental de Piero Umiliani - Os Eternos Desconhecidos e Boccaccio '70 - ajuda a pontuar esses elementos de nervosismo.
Os dois assumem que se relacionam, afirmam que vieram de um lar partido e deixam a entender que não são irmãos de sangue e sim de criação. Não que isso aplaque algo, afinal, parece doentio de qualquer forma.
A justificativa de Eva para entrar nessa trama seria a de ciúmes, ela foi ver quem roubou Peter dela, mas nesse caminho, acabou se apaixonando pela mulher também, abrindo assim chance de ser bissexual. No entanto essas questões são mais sugeridas do que desenvolvidas.
Os três dormem juntos e em determinado ponto, Catherine se incomoda com o nível de intimidade que ocorre. No entanto, não consegue se impor, parece ser uma vítima indefesa, é passiva e possivelmente dopada, tanto que não consegue sequer disfarçar que não quer participar de uma relação amorosa bígama.
Em alguns momentos, ela dorme só com Eva na cama, não precisando sequer do seu amado para ter intimidade. Ainda assim as cenas de amor e sexo são bem tímidas, o que se abusa de fato é na exploração dos vícios, sobretudo o alcoolismo.
A dupla de invasores toma conta de tudo, até mandam Teresa embora, acabando assim com a primeira linha de defesa da madame, que não era exatamente querida por seus empregados, mais ainda via neles uma possibilidade de proteção.
Depois de pedir para abaixar o volume da vitrola e ser contrariada, Catherine apanha, leva tapas no rosto. Já na cena seguinte, parece estar bem com seus amantes, ao menos em um primeiro momento, já que insulta os dois, os acusa de drogarem ela.
Até os expulsa, mas eles não demoram a voltar para casa. Como o filme todo se passa basicamente em um cenário, há uma sensação de claustrofobia e de mal inescapável que preenche toda a duração dele.
O tempo parece passar mais lentamente, como se estivesse em um looping temporal, onde a personagem abusada desenvolve por um dos seus malfeitores uma espécie de Síndrome de Estocolmo.
O cúmulo disso é quando Catherine convida Peter para voltar, pedindo para que ele venha sozinho. Obviamente ele não obedece, levando assim Eva, mostrando que ele é a figura dominante dessa relação.
A partir daqui falaremos sobre as curvas finais do roteiro. Desse modo, haverá spoilers. Prossiga sabendo disso.
Lenzi estabelece uma relação agressiva e abusiva em tela, de um modo que é difícil não se chocar, especialmente as plateias mais sensíveis. Há muito conflito, maus tratos, até torturas e privações de suprimentos.
A protagonista é posta presa em uma garagem, é prisioneira dentro de sua própria casa. Aos poucos, perde a força e até a sanidade, fica com os olhos fundos, como é comum entre pessoas que não dormem há dias.
O que realmente impressiona é como Baker segue linda, mesmo que o roteiro peça que ela seja decadente e descuidada. A câmera de Lenzi é simplesmente apaixonada por sua musa, não à toa, uma vez que ela segue perfeita mesmo com o cabelo despenteado e com olheiras, além de outros indícios de depressão e melancolia.
Depois de humilhar a mulher e irritar ela com o som ensurdecedor, ainda fingem que Catherine sofre de alucinações.
Lenzi é conhecido por fazer filmes extremos, violentos e sensacionalistas. Esse é um exemplo de obra mais cerebral e inteligente de sua filmografia, embora seja igualmente perturbador.
O horror está em uma exploração de abuso, em jogos de mentiras e misoginia, mas em tom de denúncia. Se fala de gaslighting antes até do termo se popularizar.
Os irmãos arrancam o telefone, dão a desculpa de que são contra o progresso tecnológico e por não querer ser incomodados, mandam embora os empregados que restam e ficam sozinhos com a sua vítima, cercando ela de todas as formas.
A sensação de que tudo pode ser mentira segue com os fatos ocorridos no entorno da protagonista. Ela atira em Donovan, mas não sai sangue, ao invés de fugir ela retorna para ver o corpo, que some e aparece depois, em um armário, tal qual ocorreria com os assassinos de Halloween: A Noite do Terror e da série Sexta-Feira 13.
No entanto, como era de se esperar, Peter não morreu, só fingiu que caiu. A revelação é providencial, mas ajuda a sepultar a ideia de ambiguidade, de que possivelmente tudo não é um delírio da personagem feminina central.
Como esse é um filme que se restringe a um cenário basicamente, ele acaba carecendo de um ritmo agradável e de dinamismo, ainda assim é violento, tenso e chocante, uma obra que provoca reflexões e que mostra destinos triste e terríveis, com um final cínico e violento.
O Louco Desejo é pontual, visceral e agressivo, é uma boa opção de giallo inclusive para quem não gosta muito de cinema de horror. Seus elementos de suspense e thriller são bem desenvolvidos e as atuações são todas muito dedicadas e verdadeiras. É bem difícil não se envolver com sua trama, com seus mistérios e com as relações estabelecidas aqui.
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