Em 1996 estreava As Aventuras de Pinóquio, longa de Steve Barron que traduzia em tela o romance homônimo do italiano Carlo Collodi, sobre o boneco de madeira que ao ganhar vida, quer se tornar um menino de verdade. Ainda que sob um viés otimista, tal qual a animação que a Disney fez em Pinóquio de 1940, o filme é fiel a sua maneira ao romance, que carrega algumas histórias de humor, mas outras mais violentas, que flertam com o horror.
Seria natural que uma obra assim tivesse suas imitações, e o mercado audiovisual dos Estados Unidos é pródigo em produzir pérolas trash, e foi o caso de Pinóquio, O Perverso, do original Pinocchio's Revenge, lançado meses após o filme de Barron.
Comandado por Kevin Tenney - que na época, assinava Kevin S. Tenney - o filme funciona como uma deturpação da versão mais famosa do bonequinho sem consciência e sem noção de como certo e errado funciona, transformado em um vilão puro e simples, em uma extrapolação o ideal de Collodi.
Lançado diretamente para o mercado de vídeo pela Trimark Pictures, a fita se inicia com um letreiro recordatório, apontando que a ação é de cinco anos atrás, mostrando alguém cavando um buraco em uma noite chuvosa, demonstrando pressa para esconder um corpo.
A pressa parece não ser exclusividade do personagem, mas também da produção do filme, uma vez que se determina o passado antes de demonstrar o presente. As trapalhadas ocorrem até antes de mostrar a história principal, e seguem vivas até o término.
A sinopse é por si só confusa. O resumo é de que essa é a história de uma advogada que tenta salvar a vida de um sujeito culpado, e que acaba levando um boneco para a sua casa. Esse brinquedo se torna o olho do furacão de uma série de crimes estranhos, embora não fique explícito se ele é ou não culpado por aquilo, para além da questão óbvia de que objetos inanimados não matam.
Os personagens apresentados são muitos, e nenhum é bem desenvolvido. O que dá para entender é que Vincent Gotto (Lewis Van Bergen), o assassino do epílogo é preso, acusado de ter matado o próprio filho.
É dado, depois, por sua advogada Jennifer Garrick (Rosalind Allen) que ele não é culpado por uma série de outros crimes atribuídas a si. Aparentemente ele foi vítima de uma estratégia de acusação, que o associou aos crimes de um assassino serial, mesmo que nenhuma prova corrobore essa tese. O júri deu o veredito de pena de morte.
O roteiro tenta associar essa questão de serial killer ao momento do passado, na escavação onde Gotto enterra um boneco de madeira maciça, com o nome sugestivo de Pinóquio, e poderia ter ali um cadáver, mas isso não fica claro.
O ponto de Jenny é bom, já que a acusação sobre o preso é exagerada, e essa busca por justiça a credencia para ser uma outra candidata a protagonista.
Ela é mostrada como alguém desinibida, decidida, uma mulher inteligente e obstinada que pôs na cabeça que inocentará seu cliente, mesmo que ele não queira isso. É dado também que ela é mãe solo, e cria Zoe (Britanny Alise Smith) com dificuldades entre ser uma mãe presente e a provedora do lar.
Ao passo que ela tem uma vida comum, namorando, sendo sexualmente ativa, ela também tenta suplantar o buraco deixado por seu ex-marido. Vale lembrar que o filme se passa nos 1990, uma época onde o divórcio era um assunto tabu, e para preencher as lacunas da contradição familiar, ela tenta dar presentes caros a sua filha, mas a boneca que ela tentou comprar não chegaria a tempo do aniversário da menina.
Essa mera descrição já dá conta de enormes semelhanças do roteiro assinado por Tenney com o visto no argumento que Don Mancini fez para Brinquedo Assassino. As coincidências aumentariam, quando o boneco Pinóquio aparece misteriosamente no escritório da mulher, e depois em seu carro, caindo nas mãos de Zoe nas comemorações do seu completar de anos.
A jornada de Chucky não possui glamour, mas a mera visualização deste Pinóquio faz com que o brinquedo possuído pareça uma peça shakespeariana ou um romance de James Joyce. Tudo na obra de Tenney é absolutamente podre e trash, especialmente o que envolve a menina, que é a terceira candidata a protagonista.
Para justificar essa máxima, há a inserção de uma subtrama de rivalidade escolar, não bastasse Zoe já ser membra de uma família incompleta e com uma mãe ausente, ela precisava ser perseguida.
Na escola tem alguns de episódios de bullying com brigas bastante sérias. Ela enfrenta questões tão agressivas que é se consulta com um psiquiatra, o dr. Edwards, interpretado por Aaron Lustig, que também havia feito um psicologista em Edward Mãos de Tesoura em 1990.
A ideia em si não é ruim, ainda mais se tratando de um filme do final do século XX, época em que não se pensava tão profundamente em saúde mental de crianças, mas a trama não permite a importância que era necessária. Todos os momentos emocionais do filme parecem desprovidos de gravidade, seja com a pequena Zoe ou com a sua mãe.
Jennifer discute algumas vezes com Gotto, quer que ele seja liberado, mas o sujeito insiste em encurtar o caminho para a cadeira elétrica, fazendo questão de assustar sua defensora no processo, gritando com ela, dando rompantes na frente da tela de acrílico transparente onde ocorre a conversa deles.
A cena em si é patética, mas claramente é o único momento onde Allen demonstra algum nível de emoção, visto que mesmo quando sua vida se deteriora nos trinta minutos finais, a atriz segue impassível, incapaz de apresentar sentimentos básicos como tristeza, angústia ou receio.
Quanto a Gotto, ele é certamente o evento mais misterioso do filme. Não é fácil perceber qual é a sua intenção.
Ele se sente culpado pela morte do filho? Possivelmente. Ele culpa o boneco por isso e sabe que se falar tal coisa, vai ser encarado como louco? Possivelmente, mas não fica certo isso. Ele sente raiva da sua advogada? Claramente sim, embora não haja nenhum motivo.
O que fica mais explícito é que ele tentou afastar o brinquedo da ação violenta, embora não fique claro qual é o papel do brinquedo no cometimento dos crimes aqui.
Se percebe que Tenney gosta de fazer referências, como na morte de Gotto, parecida demais com o que Wes Craven fez em Shocker: 1000 Volts de Terror. Até se abre a possibilidade de copiar também o plot do assassino mudar de corpo, mas isso não fica claro na trama.
O que fica evidente é a utilização banal de música alta, para determinar o medo que o público deverá sentir. A composição por Dennis Michael Tenney não é ruim, mas é manipuladora. Dada a falta de qualidade geral, é quase um tento positivo, uma vez que causa espécie.
O boneco de madeira é posto em primeiro plano várias vezes. Toda a misancene mira em fazer o público acreditar que ele é malvado, ou que influencia as pessoas a serem malignas.
No entanto, isso se perde, em meio as cenas de nudez gratuitas, aos momentos de sexo mal encaixadas, além dos sustos falsos, que se multiplicam a medida que o filme avança.
Mesmo que a premissa e execução sejam cretinas, há sacadas boas do diretor. Em um momento onde se mostra uma gravação para Jenny, a câmera de um ângulo parado para um mais aberto, enquanto um som ensurdecedor sai do gravador.
É simples, mas demarca uma urgência considerável na investigação sobre um criminoso que a personagem assume após a condenação de Gotto, se estabelece bem a diferença do mundo comum do universo de um assassino frio.
Mas isso é apenas um breve momento de sobriedade dentro de uma obra insana. O filme é covarde ao não expor se o boneco fala ou não. Fica sempre a dúvida, se ele conversa com Zoe, se é coisa da cabeça dela.
As referências ao texto literário clássico são tímidas, o nariz dele cresce ao mentir só nas sombras, da maneira que faz o trabalho de Gabe Bartalos, tão alardeado no início dos créditos, como algo que é quase nulo.
Há também uma fala, da parte da babá Sophia (Candace Mackenzie), sobre o fato do boneco matar o grilo falante, no original italiano, mas é pouco.
O que sobra a sensação de que Pinóquio é o pior assassino do mundo, já que ele quase nunca consegue assassinar, precisando sempre de duas tentativas para tal.
Pinóquio: O Perverso termina de maneira abrupta, deixando mais dúvidas do que certezas, em um texto que tenta parecer sério, não dando tudo de bandeja para o espectador, mas esbarra na falta de lógica e consistência. Ainda assim o maior pecado é o de não saber focar atenção no protagonismo, não conseguindo dar profundidade para qualquer personagem, piorando por se levar a sério, não assumindo o paupérrimo como um mérito e sim como uma circunstância de agravo da ausência de um orçamento digno.
Nunca achei que esse filme teria uma crítica tão adequada e cirúrgica