Possuídos é um filme polarizador, incômodo e bastante peculiar. Normalmente é encarado como um thriller psicológico, embora seja associado ao drama, uma vez que tem uma carga sentimental bem estabelecida, ou ao terror graças ao fato de ser dirigido pelo especialista do gênero William Friedkin. O longa marca a primeira parceria do cineasta com Tracy Letts, dramaturgo acostumado a fazer obras melancólicas e tristes, que refletem uma América decadente.
A história é centrada na vida de Agnes, uma moça simples, que trabalha como garçonete em um bar na Louisiana. Ela é interpretada por Ashley Judd, e desde o início da trama fica claro que ela está (ou estava) mergulhada em uma relação traumática e abusiva.
Depois de uma briga séria com o seu marido, ela se isola física e sentimentalmente de tudo. Acaba indo morar em um hotel de beira de estrada, vivendo seus dias com receio de repetir os dias de abuso, estabelecendo moradia em um lugar que normalmente é utilizado apenas como acomodação transitória.
Ao longo da história ela tenta seguir em frente, mas tem seu destino cortado por estranhos eventos e por aparições de pessoas de comportamento perturbado, cada um por um motivo particular diferente.
O filme se baseia na peça Bug, que é o nome original do longa também. Letts além de autor da peça também escreveu esse roteiro, participando ativamente da tradução da obra para o cinema. Chamar o autor de livro para trabalhar era um método comum para Friedkin, tanto que seu clássico O Exorcista também teve o escritor William Peter Blatty trabalhando no roteiro final.
A obra foi produzida por Kimberly C. Anderson, Michael Burns, Gary Huckabay, Malcolm Petal, Andreas Schardt e Holly Wiersma. Foi feito pelos estúdios DMK, Mediafonds International, Inferno Distribution LLC e L.I.F.T. Productions, distribuído pela Lionsgate.
A história se passa em Oklahoma, mas o longa foi rodado na Louisiana, entre Metairie e Nova Orleans. Houve um cuidado grande da parte da equipe de arte em retratar aspectos comuns a Oklahoma, como a terra em coloração avermelhada, como era típico na região. As tomadas externas ao lugar onde Agnes mora foram feitas em um motel de verdade, creditado como Rustic Motel, em Olancha na Califórnia.
O período de filmagens compreendeu os meses de julho e agosto de 2005 e terminou apenas uma semana antes do furacão Katrina atingir a área. Elenco e a equipe escaparam por pouco do desastre por apenas alguns dias.
Apesar de terem fugido de uma catástrofe natural, a equipe de filmagem não passou incólume a natureza. Muitos membros da equipe tiveram erupções causadas por percevejos em seus quartos de hotel. Claro que diante da possibilidade fatal de encontrar um furacão, esse incômodo é pequeno, mas segue irônico que isso tenha ocorrido justamente com pessoas que trabalharam em um filme que lida com uma infestação de insetos pequenos.
Como esse é um filme menos conhecido da carreira de Friedkin, deixamos aqui um aviso de spoilers. Leia sabendo que falaremos abertamente sobre a narrativa.
O filme se inicia em uma tomada aérea, onde se percebe um cenário arenoso, quase desértico, interiorano. É notável também o predomínio da cor azul através das fazendas e hotéis, com bastante luz neon. Esse trecho é um bom resumo do que será explorado, já que mostra um corpo estendido no chão antes mesmo de adentrar no drama, colocando aqui cenas que só serão explicadas no final.
Agnes é mostrada em seu quarto de hotel. Ela recebe uma ligação onde ninguém fala. Fica a dúvida se era quem ela imaginava - seu marido recém-saído da prisão - ou se era outra figura misteriosa, que só seria revelada de verdade ao final da história, antes dos créditos.
O que é notável é a insalubridade onde vive a personagem. Seu trabalho é modesto, sua condição financeira idem, ela só tem verba para pegar um lugar humilde e meio sujo.
Essa composição visual ajuda a compor o ideal da personagem, já que ela é alguém que busca conforto, mas não acredita que merece uma felicidade plena, com condições de vida minimamente confortáveis.
Ainda nesse início se percebe a melancolia do estado de espírito dela. Fora os hábitos de vícios que tem, é notável que ela não tem paz. Quando está sozinha em casa fica o tempo inteiro olhando pela janela, esperando a aproximação de alguém incômodo. Quando está no lado externo, seus lábios tremem, tem ataques frequentes de ansiedade, mesmo em lugares familiares, como a vendinha próxima do motel.
Judd está muito bem. Estava no auge da beleza. Mesmo que ela se vista de maneira modesta é impossível não enxergar ela como alguém bonita e atraente.
Para o seu papel é importante que ela esteja nesse estágio, não só pela natureza do seu trabalho servindo bebidas a homens que vão descansar suas mágoas no bar, mas também para ser o alvo da atenção de dois homens com masculinidade em crise.
Depois de largar o turno da noite ela e R.C. (Lynn Collins) vão para o seu apartamento, na intenção de se drogar para depois sair. Depois de usar cocaína, ela acaba desistindo de badalar, preferindo ficar no quarto.
Nesse meio tempo, recebe uma visita inesperada e meio invasiva, já que Peter Evans entra no quarto sem nem bater na porta, basicamente para pedir um favor. Não fica muito claro qual é a intenção do homem de meia idade, mas algo nele faz despertar interesse em Agnes.
O sujeito é tímido apesar de entrão. É vivido por Michael Shannon que já havia interpretado esse mesmo papel na montagem teatral de Bug, então é um rosto já conhecido de Letts, além de ter total familiaridade com o texto base.
Aos poucos eles vão se conhecendo. Ele confidencia que foi um soldado na Guerra do Golfo, afirma que é de Beaver, Pensilvânia. Ele parece um sujeito desconfiado, mas preocupado com o bem-estar de Agnes, fato que já o diferencia da maioria das pessoas horríveis da intimidade dela.
O marido, interpretado por Harry Connick Jr. então retorna, entra na casa da mulher sem pedir permissão, simplesmente invade o local e se recusa a sair, ao menos até o momento em que quer de fato se retirar. Ele afirma que tem negócios ali perto, então deve ficar pelas redondezas.
É curioso como ela pede para ele se retirar. Seu tom é educado, submisso. Não importa que o sujeito tenha quase matado ela no passado, ela segue se enxergando como alguém abaixo dele. Os dois ficaram dois anos separados, graças ao fato dele ter feito um assalto a mão armada. Mesmo após ter cumprido pena, ele invade uma casa, agride sua mulher e lhe dá um tapa, após ela citar o nome de Lloyd, termo esse que não deveria ser citado jamais, segundo o marido.
Depois de agredir e roubar a sua "amada", Jerry é observado por Peter, que vê ele saindo sem fazer nada, é passivo possivelmente para entender de como é essa relação, o que aliás é recomendável.
Em uma relação onde um homem agride uma mulher é quase natural a ação de proteger a agredida, no entanto isso pode piorar a situação dela, especialmente se o "defensor" não for ficar perto dela o tempo inteiro, em vigilância.
Para terceiros, assistir uma relação abusiva é algo difícil, é preciso ter inteligência emocional e driblar o instinto de interferir sem critério. Evans parece saber disso, mas sua postura diz coisas a mais, demonstra uma observação silenciosa curiosa, que determina uma frieza e calculismo ímpares.
A direção de Friedkin é econômica, tal qual ocorre com seu orçamento. Além dos motivos óbvios como restrição de cenários, poucos atores e interferência mínima de efeitos de CGI, ainda houve da parte do diretor a escolha por reduzir ao máximo o número de tomadas. A atriz Lynn Collins chegou a reclamar que haviam poucas repetições de cena, com o diretor ficando satisfeito na primeira tentativa.
Outra questão pontual é que o longa foi rodado em ordem cronológica, até para registrar bem o estado de espírito de cada um dos personagens, facilitando assim a progressão espiritual deles.
Friedkin opta por usar pouco a trilha sonora, deixando um silêncio constrangedor imperar em tela. A música de Brian Tyler entra pontualmente, de maneira rara. A maior parte do tempo o espectador tem apenas a atuação do elenco como guia sentimental da história.
A primeira cena onde a música de fato faz diferença é no relacionamento sexual que Agnes e Peter vivem. Esse momento de intimidade é meio idílico, varia entre a conjunção carnal e cenas de insetos saindo de casulos. Depois da noite da transa, Peter age de maneira estranha.
Primeiro, encontra insetos minúsculos por toda a casa, em especial na cama. Depois diz que é perseguido por pessoas perigosas, afirma que não quer que Agnes passe por maus bocados. Ela entende que isso é uma desculpa, mas não era.
Ele tem um trauma da época em que estava na Síria. Diz que sofreu experimentos para tratar os efeitos colaterais de estar no campo de guerra. Fizeram testes com ele, ao menos supostamente. Tinham dificuldade de entender seu quadro clínico, possivelmente é stress pós-traumático ou síndrome do pânico.
Eventualmente Jerry encontra Peter, na casa de Agnes, enquanto o veterano de guerra usa um microscópio para analisar os bichinhos minúsculos, os tais insetos do título da peça e filme.
O fato dele se passar em cenários muito reduzidos denuncia o caráter teatral do texto, de um modo que Friedkin disfarçou melhor em seu filme seguinte, Killer Joe: Matador de Aluguel, mas aqui não chega a ser incômodo.
Claro que fica uma sensação de inadequação, especialmente por conta do fato de absolutamente de que todos os personagens parecem estressados, nervosos e a ponto de explodir, mas para o público não há qualquer incômodo. Tanto nessa obra como em Killer Joe é possível notar o retrato de um país decadente, onde o proletariado e os mais pobres sofrem.
São apresentados três arquétipos diferentes, que eventualmente, se cruzam. Alguns deles são pessoas vítimas da crise moral dos Estados Unidos, com Agnes sendo o exemplo maior disso. Ela é passiva, sofre com a imposição de terceiros, sofre com a opressão alheia e se sente inadequada em qualquer cenário onde está.
Há também os malvados por vocação, sendo Jerry o maior exemplo disso, da figura abusiva e opressora, egoísta o suficiente para distribuir para os mais fracos uma violência emocional e física. Ele desconta na esposa a frustração da falta de oportunidades que teve ao longo da vida. Culpa a sociedade e o sistema por não ter tido chance de enriquecer e brilhar, faz isso basicamente porque pode e porque enxerga nela alguém inferior.
Já Evans é o meio termo entre os dois. Ele sofreu muito no passado, se agarrou em discursos de extrema direita, abraçou teorias da conspiração, abraçou causas erráticas e estapafúrdias, as usa como tábua de salvação já que não tem mais nada.
Ele é crédulo em falas e pensamentos sem qualquer plausibilidade, mesmo sendo sensível e teoricamente bondoso, acaba sendo tão ou mais agressivo do que Jerry é com Agnes. É difícil identificar se ele é herói ou vilão nessa jornada, na prática ele usa a máscara de ambos os arquétipos.
Ele acredita que insetos afídeos foram modificados geneticamente, para atacar a cocaína exportada da América do Sul. Crê piamente que a droga consumida por Agnes e R.C. trouxe esses animais para a pensão.
É muita viagem junta, em determinado ponto ele mostra que tem feridas na barriga. Não fica claro que foi a origem dos machucados, provavelmente foram causada por auto flagelo ou por conta das convulsões que ele tem.
Quando se percebe o colapso que ele tem ao ser confrontado por R.C. fica evidente que ele tem tendências a infligir mal a si próprio. Também fica claro que ele é uma vítima, que tem problemas mega sérios em relação a manter a própria integridade física.
Nesse trecho fica evidente também que essa é uma tragicomédia. Como Evans é frágil mentalmente e suscetível a sugestões pouco usuais, é difícil identificar que partes dos seus relatos são verdades tristes e quais são mentiras ilusórias, frutos de uma mente confusa. Fato é que ele não parece ser uma pessoa deliberadamente má, só está mal, seja por conta de um trauma ou por uma condição adquirida naturalmente.
A sequência dele arrancando dentes com um alicate é soberba, exige expressões de dor e angústia de Shannon, pondo a prova também o desempenho de Judd no que tange sensações de desespero, medo e desolação.
Os momentos finais são como uma odisseia tragicômica, envolve um doutor que conhece Peter há muito tempo, possibilidades de encontrar Lloyd - que vem a ser o filho perdido de Agnes - e ainda faz um mergulho profundo na paranoia do homem.
Os últimos trechos são tão agressivos que se tornam nauseantes. Se existiam dúvidas a respeito do gênero do filme, elas são zeradas nos vinte minutos finais, após Peter revelar que está no apartamento azulado de Agnes. Vira uma sequência violenta, gritada, termina em uma epifania profana, onde os dois personagens centrais se entregam ao devaneio e a certeza paranoica e inconsequente.
Possuídos é um filme sobre infecção, que quase perdoa a péssima tradução brasileira. Na ânsia por associar esse a O Exorcista a distribuidora nacional acerta ao evocar o destino final de seus dois personagens centrais, já que eles de fato têm uma relação de escravizados, de possuídos, mas não por algo espiritual, e sim pelo pensamento conspiratório. É nauseante, incômodo e provoca reflexões difíceis de digerir, é o tipo de terror mais complicado.
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