Que Bom Te Ver Viva : Um relato doído e sincero, sobre mulheres que sobreviveram a ditadura militar

Que Bom te Ver Viva é um filme brasileiro premiado e de renome, mas infelizmente menos lembrado do que merece. Obra confessional e quase autobiográfica, tem direção de Lúcia Murat e mistura elementos de documentário e relato dramático, contando histórias de moças e meninas que foram vítimas nas mãos de torturadores, utilizando a atuação da atriz Irene Ravache como o símbolo da consciência coletiva dessas agora mulheres, seguiram ou tentam seguir suas vidas.

Lançado em 1989 o filme também contou com roteiro e produção de Murat, se aproveitando claro do período de abertura política e da eleição direta para presidente que elegeria Fernando Collor.

Apesar de não retratar a própria vida em tela, é impossível não encarar essa como uma sessão de desabafo e exorcismo dos demônios do passado. A cineasta foi presa no início da Ditadura Militar, sendo encarcerada em 1971, ficou na cadeia por três anos e meio, onde foi humilhada, torturada, tal qual as personagens reais de seu filme.

A ideia do longa não era só a de resgatar a dignidade das mulheres que sofreram com o Regime, mas também tenta demonstrar as dificuldades em ter algum nível de normalidade na rotina dessas, seja mostrando a vivência cheia de agruras delas, com os altos e baixos comuns a vida cotidiana de qualquer pessoa, exibindo uma opção de vida que não faça a pessoa de refém das lembranças e dos dissabores terríveis que essas moças sofreram.

Boa parte das testemunhas do filme não falam a respeito dos seus casos de tortura há muito tempo, mas curiosamente todas tem vivas lembranças desses tempos. Sofrer e apanhar marca bastante qualquer vida.

O longa rodou um circuito de festivais internacionais, passando no Toronto International Film Festival em 1989 e no Yamagata International Documentary Film Festival em 1991, no Japão. É conhecido no mundo como How Nice to See You Alive.

Quando passou nos festivais nacionais, a obra angariou uma porção grande de prêmios. No Festival de Brasília de 1989 foi eleito o Melhor filme pelo júri oficial, pelo júri popular e pela crítica.

Ganharam prêmio também a montadora Vera Freire, Irene Ravache como melhor atriz, enquanto Walter Carvalho ganhou como melhor direção de fotografia. No Festival Internacional do Rio ganhou o Prêmio especial do Júri, ganhou o Prêmio Samburá nesse, enquanto no Festival de Havana venceu o Prêmio Coral.

A equipe de produção é pequena, porém voluntariosa. Entre os presentes está o já mencionado Walter Carvalho, famoso diretor de fotografia de grandes obras como Os Trapalhões no Auto da Compadecida e Central do Brasil, atualmente é diretor, fez o filme - Budapeste (baseado no livro de Chico Buarque) e Raul: O Início, o Fim e o Meio, também dirigiu episódios da nova versão de Renascer. A música é de Fernando Moura de O Trapalhão e a Luz Azul e montagem de Vera Freire de Nunca Fomos Tão Felizes.

O segredo do sucesso de Que Bom Te Ver Viva certamente reside no talento e entrega de Ravache. A atriz está muito bem, lindíssima, melancólica e jovial, embora já tivesse passado da fase balzaquiana. Atua demais, variando bem entre a mulher compenetrada e resiliente com a moça encantadora e divertida.

Ela encara de frente a personagem que não tem seu nome dito - obviamente para universalizar ainda mais o seu drama - e interpreta bem uma mulher que sofreu no DOI-Codi e que tem seus segredos da época de guerrilha trazidos à tona novamente, sem sua autorização inclusive.

Que bom te ver viva”: a guerrilha e a tortura sexual nos anos de chumbo | by Rafaella Britto | Cine Suffragette | Medium

No release disponível nos streamings as imagens estão muito bonita, valorizando ainda mais o trabalho de Carvalho como cinematógrafo.

É uma pena que as partes das entrevistas reais a qualidade caia vertiginosamente. As áreas comuns e ações corridas das mulheres estão em uma qualidade semelhante as cenas que tem Irene Ravache no centro, mas as partes mais emocionantes carecem de boa qualidade visual.

Em um dia comum, que deveria ser tranquilo para a "protagonista", ela acaba recebendo ligações preocupadas, de sua mãe e até de alguns amigos, já que saiu uma entrevista que a cita.

Dessa forma ela é um avatar, uma pessoa símbolo de uma questão maior, já que ela fala sobre as agruras que sofreu e sofre na atualidade do filme (em 1989) destacando a dificuldade que é seguir em frente, de não precisar relembrar diariamente uma página terrível de seu passado. A insistência desse trauma em retornar a sua vida é incômodo e insistente.

A personagem não foi consultada se era para republicar ou requentar uma entrevista antiga, já que o tal jornalista foi irresponsável, trazendo de volta histórias antigas. Nesse trecho ela se mostra indignada, com razão aliás, já que essa era uma merda que não precisava ser mexida e uma vez mexida, voltou a feder.

Vale lembrar que em sendo uma obra datada, dos anos 1980, ocorrem algumas transições bem cafonas. Era uma marca da época, que visto hoje, soa até engraçada. Obviamente que não tira mérito algum do filme.

A maioria das depoentes trabalham na área da educação, mas há médicas, sanitaristas, professoras. Cada uma tem algum detalhe de sua militância destacada, mas só o que elas próprias querem falar.

Há entrevistas também com gente do entorno, com parentes, maridos, ex-companheiros, até alunos e pupilos.

A parte de Maria do Carmo assusta. O seu marido se matou em uma invasão dos milicos, depois do trato que os dois fizeram de matar o parceiro e depois suicidar.

Que Bom te Ver Viva (1989)

Na hora da tal invasão, ela descumpre o trato, atirando nos invasores. Seu marido tomou a arma e se matou, enquanto ela foi capturada. Ela assume que não estava pronta para morrer, disse que seu instinto era o de lutar. Parece mesmo ter pré-disposição para a guerra.

Ela fala de maneira muito calma e serena sobre as sequelas que ocorreram depois das surras e torturas. Em suas falas, confessa que é capaz de adoecer sozinha, só pensando em desgraças, capacidade essa que ela não tinha antes.

Ravache discute semântica, reclama (com razão, novamente) que ela é tratada como terrorista, enquanto os torturadores são tratados por suas nobres profissões, aqui no caso, médico... Ela tem a vida desgraçada, perde o namorado, o emprego, só por conta de algum jornalista se apropriar de uma entrevista antiga.

É triste que a sua vingança é eventualmente denunciar ao trabalho de um dos torturadores que aquele sujeito que trabalha em assessorias diversas, para gente poderosa. Ela revela que já ligou para o trabalho de um deles, avisando que ele foi cruel e que foi um abusador. Até pergunta se a mulher desse cara sabe que ele praticou crimes sexuais, no cárcere.

Os relatos das mulheres supera eventuais problemas técnicos, especialmente no discorrer sobre os métodos de manipulação dos torturadores, dos que fingiam se apaixonar, dos que brincavam que animais como lagartixas virariam jacarés.

A maior e melhor ideia do filme é desmistificar o estigma de terrorista em cima dos ex-militantes, que, segundo o relato de algumas, é um estigma até para a esquerda.

A personagem de Ravache tenta terminar otimista, até ensaia isso, mas não consegue. Lamenta os sentimentos que possui, a sensação de que é alguém ferida para sempre

A câmera se afasta, mostrando ela diante das grades de sua janela, em um simbolismo que relaciona a mentalidade dela com a de uma prisioneira sentimental.

Que Bom Te Ver Viva é rápido, bonito e profundo. Provoca reflexão a respeito de uma época que não pode deixar de ser lembrada. Tem uma ternura bela com as pessoas normalmente são tratadas como coitadas apenas, faz tudo isso fugindo de condescendência. É sincero e lamenta bem o fato do Brasil ter anistiado os seus bandidos políticos, unicamente por eles serem funcionários públicos militares. A memória do país até hoje se ressente disso.

Deixe uma resposta