Histórias sobre assassinos mascarados perseguindo jovens é um tropo comum nos cinemas. Obras assim normalmente apresenta como vítimas personagens drogados e depravados, fazendo uma espécie de justiça poética ultra moralista, louvando os valores mais conservadores, permitindo que personagens puros e virginais sobrevivam.
Foi assim no Gialli, em Halloween, Sexta-Feira 13, e nos dois pais do gênero, Psicose e Tortura do Medo até o metalinguístico Pânico se valeu dessa fórmula.
Eis que o filme de Wes Craven, que faria muitas piadas com esses jargões, teve em sua ideia inicial utilizar o nome Scary Movie, em bom português, seria filme assustador, mas preferiram referenciar o quadro O Grito do pintor Edvard Munch, chamando assim de Scream.
Curiosamente, a paródia idealizada pelos irmãos Wayans recebeu originalmente esse nome, sendo devidamente ignorada no Brasil, já que o filme ganhou o sugestivo e preguiçoso nome de Todo Mundo em Pânico.
A justificativa para não utilizar o nome no roteiro que Kevin Williamson pode ser graças a uma obra bastante esquecida desconhecida, que também bebe das mesmas fontes e inspirações da saga que leva Ghostface com vilão. O mais surpreendente na verdade é a qualidade da fita, mesmo com tão pouco investimento e pompa.
Ao se deparar com Scary Movie o espectador pode pensar de antemão que é apenas um produto trash entre as décadas de 1980 e 1990, uma vez que foi lançada em 1991, provavelmente tendo sido ou pensada ou filmada no final dos anos oitenta, uma vez que é difícil encontrar informações de bastidores dessa pérola feita pelo estúdio Generic Movies.
Dirigida por Daniel Erickson e estrelada por John Hawkes, a obra pega emprestado convenções dos Filmes de Matança, mas as perverte, especialmente no que tange seu protagonista, vivido por Hawkes, que anos depois, ganharia notoriedade e fama.
A ideia original partiu de um roteiro escrito por três pessoas, no caso, Erickson, David Lane Smith e Mark Voges. Sua trama gira em torno das percepções singulares de um garoto solitário e nerd, que acredita que um lunático que fugiu de um sanatório se esconde na casa dos horrores do parque viajante que chegou ao seu bairro, na véspera do dia das bruxas.
Como o palco da história é o lúdico e mambembe parque, fica fácil embarcar nas viagens de Warren, uma vez que ele tem dificuldades em lidar com convívio social e é forçado a ficar por horas em um ambiente que assustaria crianças de pouca idade. Fica patente também que ele possivelmente tem uma dificuldade de crescimento mental.
Produzido por Keith Brunson - que também faz uma ponta aqui - o filme começa com um pesadelo, deixando claro que o protagonista pode ou não estar em perigo real, sendo perseguido por um matador fantasiado, com aparência da encarnação da morte.
Nesse trecho, a câmera flagra livros dentro do sonho. Como passa bem rápido, não é possível ler o título deles, mas dá para notar algumas palavras, entre elas, “Relativity”. A logo aparece com um código de barras, para verificar algo: outro indício de duplicidade.
Enquanto o filme corre uma série de coincidências bizarras dão razão ao jovem Warren. Como Hawkes é a figura mais conhecida - quiçá a única - é natural que o público acredite em seu drama.
O ator poucos anos depois estouraria, tendo participação em obras premiadas como Inverno da Alma, sendo parceiro de grandes diretores como Steven Spielberg, Steven Soderbergh, Martin McDonagh, Michael Mann e Robert Rodriguez. Também ganhou popularidade por sua participação na série de faroeste Deadwood.
A obra foi lançada em Bluray. Até surpreende esse lançamento, uma vez que é esquecida até por fãs de filmes B, mas a qualidade não está em um nível de excelência satisfatório, o que é uma pena, já que a obra tem um visual diferenciado.
É dado então que um assassino serial, John Luis Barker (Lee Gettys) seria devolvido a uma prisão de menor segurança, já que sua condição judicial regrediu a gravidade. Ele passou a ser encarado como um sujeito menos perigoso do que era e seria transferido para outro logradouro. Eventualmente ele acaba se soltando, causando a paranoia que Warren tanto queria viver.
A trama se dá na cidadezinha que parece ser no interior do Texas, inclusive foi filmado em Dritwood, cidade texana. Os moradores se preparam para o halloween enquanto os funcionários do show viajante levantam tendas, madeiras e isopores para acampar.
Logo chega uma força policial para verificar normas de segurança, que são plenamente ignoradas, já que até o homem da lei se cortou com um prego velho na parede. No entanto faz vista grossa desde que tivesse ali um papel para sua eleição, que seria em breve.
A estrutura do parque é bonita, especialmente o trem fantasma. Essa ambientação é legal tanto por facilitar uma produção de baixo orçamento, que terá chance de explicar que os elementos que deveriam parecer reais em um filme de horror não são porque se trata de um parque infantil e também por remeter a temática de horror de obras como Pague Para Entrar e Reze Para Sair de Tobe Hooper ou o mais recente Hell Fest.
Já na noite de exibição Warren Kilpatrick é mostrado como o retrato do nerd da época, caucasiano, com roupa social, cabelo muito arrumado, dificuldades de socialização, além de ser uma completa nulidade com mulheres, já que quase é paralisado quando encontra Barbara (Suzanne Aldrich).
O filme é de Hawkes, todos os outros personagens são apagados e subalternos, estão lá para fazer número e para dar importância ao rapaz paranoico e para preencher com normalidade o cenário, antes que o psicopata em transporte aparece na trama.
Curiosamente, quase todas as pessoas ditas normais são extremamente maldosas e debochadas. Quase todos são bullys, ou ao menos parecem assim. Fica a dúvida se a cidade inteira é formada por gente de caráter ruim ou se o viés da câmera é contaminado pela ótica de Warren, que está tão acostumado a sofrer abusos, que automaticamente encara a todos como gente abusada.
Erickson tem uma condução bem esperta, faz bom uso da música de Hank Hehmsoth, que joga tons agudos quando a montagem coloca Barker em tela. O artifício serve para denunciar o perigo. Como o início se dá na fila do brinquedo fantasmagórico, o instrumental se mescla aos gritos, formando um quadro sonoro legal.
O cineasta fez desse o seu primeiro longa, antes fez dois curtas Little Hero e Mr. Pumpkin, de 1985 e 86 respectivamente e só voltaria a fazer um filme após a obra analisada em 2010, Eve's Necklace, que é um suspense que também conta com Jonathan Hawkes no elenco.
Já os outros membros da produção tiveram poucos trabalhos, ainda menos notáveis que o diretor. Lane Smith escreveu esse e foi produtor associado nos filmes de Erickson, até arriscou ser assistente de direção. Fez a props no departamento de arte de Sombras na Parede, filme de terror de Patrick Poole.
Já Mark Voges escreveu a atuou nesse - como Jerry - ainda participou como ator em filmes como Paixão e Loucura, Um Mundo Perfeito, Onde Mora o Coração e A Vida de David Gale, sempre com papéis pequenos. Brunson teve una carreira mais ligada a atuação, mas só em papéis pequenos, daqueles que nem recebiam nome. Foi assim também na série War and Remembrance.
Scary Movie é uma grande diversão em seu desenrolar da história. Entre os coadjuvantes há várias pegadinhas, como um idoso alegre, que dirige no breu da noite e decide sair do seu carro para alimentar um bezerro amarrado na beira da estrada. Aparentemente ele passava por ali sempre, mas não teve qualquer precaução, especialmente depois de ver um veículo camburão virado na mata. Ele vai para o meio do mato e não se importa com o perigo.
Nos anos 1980 era mais do que comum usar atores adultos em papéis de jovens, mas aqui há um enorme exagero nesse quesito. O sujeito interpretado por Trant Batey, JJ é baixo, atarracado, tem uma franja que não cobre nem metade cabeça, exibindo uma calvície que certamente não combina com um rapaz de menos de 18 anos. Simplesmente colocam uma jaqueta de couro, dão um canivete para ele fingir que é novo, torcendo para que o público compre aquilo.
É bem difícil de encarar isso de maneira, é evidente que Erickson quer fazer troça com os clichês de filmes de assassino de adolescentes.
Warren passa por todo tipo de percalço. É mostrado que até seus amigos caçoam dele. Ele é inseguro, não consegue dar prosseguimento a nenhuma conversa praticamente, é humilhado até por Barbara e por desconhecidos. Não é levado a sério sequer quando denuncia que ouviu no rádio do xerife que o psicopata fugiu.
Os funcionários do show itinerante são as únicas pessoas dignas de apreço. A caracterização delas inclusive é muito boa. Parece uma trupe de palhaços, cujo tema é filmes clássicos de horror. Alguns deles usam pintura facial, outros se vestem de monstros, há uma boa variação de clichês. Ali estão famílias, com pais e filhos inclusive, que interagem dentro e fora da “funhouse”.
Esse cenário possui muitas atrações macabras, com sustos bem pensados. Quase justifica a paranoia que Warren tem da metade para o final do filme. Até surpreende quantos compartimentos tem em tão pouco espaço.
O filme foi tão positivo para a comunidade texana que o Conselho da Cidade de Austin e o prefeito Bruce Todd fizeram uma proclamação declarando 18 de outubro "SCARY MOVIE DAY" convocando todos os cidadãos a reconhecer as contribuições feitas para a produção do filme para a indústria cinematográfica de Austin e Dritwood.
De fato, ele contribuiu bastante, ao menos para a localidade. A cidade também o fez, já que o roteiro repleto de paranoias só funcionaria em um lugar provinciano como esse.
O texto ainda indica que Warren deveria se preocupar mais em cortejar Barbara, que até aceitou algumas das suas investidas, achando obviamente que elas foram tímidas demais. Fica claro que parte dos problemas do rapaz são baseados em nada, já que ele é bem-quisto pelo sexo oposto. Sua timidez e complexo de inferioridade o impediram até de perceber que era atraente em algum nível.
De qualquer forma a abordagem sentimental maior é dada para outro lado, para o receio de ter a integridade física violada por um matador e dentro do curto espaço da funhouse é que ocorrem os melhores momentos.
Warren é perseguido por um sujeito com roupa semelhante ao personagem Mr Mayhem ou Zé Maria, a encarnação da morte, igual em seu sonho e arranca a mão dele com uma foice, depois que o mesmo cai acidentalmente.
Aqui se destacam dois fatos. O primeiro, o assassino (caso seja, claro) escorrega e cai, mostra ser falho, como Ghostface era em Pânico. O segundo é que não há norma de segurança no parque, já que havia em um brinquedo uma ferramenta afiada o suficiente para cortar um membro.
Como todos acreditam nisso, a polícia chega, as pessoas que estavam no brinquedo são evacuadas da atração, mas o protagonista segue dentro do lugar fechado.
Warren deveria ser elevado ao posto de herói, já que arrancou a mão de um psicopata, mas ele segue sendo ignorado por todos os personagens adultos. Ele é literalmente pisoteado, até cair em um poço de cobras de brinquedo, que ele confunde com reais, afinal, é para ser um personagem patético.
Hawkes está bem demais, nesse papel ele pode exercer vários dos seus dotes, pode exagerar, ser violento, maluco, histérico, pode tudo. A direção também o ajuda, a câmera gira enquanto ele se debate, muda de ângulo e ponto de vista.
Quando o rapaz parece que vai escapar, ele simplesmente tropeça em algo, que o faz retornar aos mini cenários de filmes de terror. Ele se machuca em pregos, com farpas de madeira, aspectos reais, típicos de uma instalação velha como essa.
A meia hora final surpreende, tem momentos genuinamente tensos, para além do conceito trash que se pensava ao analisar tudo no entorno da obra. É uma pena que a versão lançada tenha uma qualidade com tão pouca nitidez, uma vez que utilizasse muito efeitos práticos, coisas reais e não há CGI. As escolhas visuais envelheceram bem, mas são mal mostradas, talvez pela qualidade ínfima do material de captação também
Poucos filmes de halloween conseguem causar medo em cenas que contem abóboras e esse consegue, bizarramente.
Warren enfrenta o homem misterioso de chapéu, o alveja e sai da casa, finalmente, no aguardo não só pelo alívio de ter fugido da morte certa, mas também esperando receber os louros da vitória.
Ao estar na parte externa do parque, suas roupas estão rasgadas, ele está ensanguentado e ele valoriza os próprios feitos, afirmando que arrancou a mão do assassino mascarado e depois acertou o matador com chapéu. A essa altura fica claro para qualquer espectador que ele cometeu enganos terríveis.
Baker sequer estava no parque. Estava perto do veículo acidentado que o levada para a prisão. Ele colhia flores quando foi encontrado, inclusive fica claro que ele nada fez com o idoso anteriormente introduzido, talvez eles sequer tenham se encontrado.
O filme brinca bem demais com a dualidade, como caráter duplo. Curiosamente, nessa cidade irreal, nem mesmo a tragédia de perder o xerife que acabou de ser reeleito fez a população repensar os seus hábitos ou festividades. Seguem debochados, rindo de tudo, fazendo chacota inclusive com o assassino que eles ajudaram a criar, já que Warren tinha uma predileção pela dramaticidade, mas não foi agressivo com ninguém em condições normais de temperatura e luz.
Termina com todos festejando, mostrando que mesmo com as manipulações da votação, não havia no xerife uma autoridade reconhecida pelo povo. O desdém as autoridades pode parecer cínico, mas combina não só com a visão do americano médio nas décadas de produção e exibição do longa, assim como combina com a atmosfera de fim do mundo das obras com assassinos de jovens, inaugurada por John Carpenter e seu Michael Myers.
Scary Movie parece bobo, mas surpreende pela paranoia com que é levado e com a dubiedade de sua formula narrativa. A ideia do roteiro pode ser encarada como uma crítica ao povo do Texas e dos Estados Unidos, que estão tão acostumados com a violência cotidiana, que parecem anestesiados, incapazes em sua maioria de digerir que a tragédia ocorreu muito perto deles, mas tem sua maior riqueza na construção de Warren, que deveria ser um menino comum, mas é vitimado pelos seus próprios conterrâneos, sendo um produto violento e agressivo do meio em que vive.