The Stand é uma minissérie baseada no livro homônimo de Stephen King - chamado no Brasil de A Dança da Morte. Idealizado por Josh Boone e Benjamin Cavell, o programa mostra uma realidade pós-apocalíptica oriunda de uma doença conhecida como Virus Viajante, que dizimou mais que 99% da população mundial.
Os humanos que restaram tentam sobreviver e duas comunidades se destacam, uma pacífica, e outra mais violenta.
Além de adaptar o livro de King, há um bom enfoque da produção em elucubrar sobre o personagem que apareceu na série de livros Torre Negra, conhecido como O Homem de Preto, personagem que recebe a alcunha de Randall Flag – interpretado por Alexander Skarsgård - e que ao longo dos episódios aparece liderando a concentração de gente em New Vegas, Nevada, a mesma cidade conhecida anteriormente como Las Vegas.
O programa teve nove capítulos, e foi transmitido pela CBS. Seus direitos são ligados a Paramount, mas está disponível atualmente em outro serviço de streaming.
O texto possui spoilers, e como é uma trama repleta de personagens e mistérios, é bom deixar o aviso, afinal o texto abordará o destino de muitos personagens.
A história inicia com uma narração em off, sobre uma plantação em uma fazenda, em Boulder Colorado, e já fica claro que a linha do tempo brincará com o conceito de idas e vindas na cronologia.
O recurso é utilizado não só para mostrar como os sobreviventes viviam antes da catástrofe de origem desconhecida, mas também está lá para exibir a evolução de cada um deles, seja nos primeiros dias pós-pandêmicos ou no alvorecer da nova sociedade.
A humanidade como um todo parece ter aceitado a sua sina, e a tradução do texto de King mira mostrar como cada parte desses que restaram digerem a situação.
Os primeiros personagens apresentados são o jovem Harold Lauder (Owen Teague), um rapaz rejeitado, de semblante e postura estranha e que sofreu bullying a vida inteira por ser considerado esquisito, e sua antiga babá, Frannie Goldsmith (Odessa Young), que sofre para lidar com seu pai, que parece estar gripado, mas que esconde o tal vírus em si.
Os dois acabam se unindo, graças basicamente a ação do rapaz, que sempre nutriu por ela um amor platônico (não correspondido), e a convenceu a sair da localidade, em busca de outros sobreviventes.
Aos poucos é mostrado que a maioria das pessoas sofre com a tosse estranha, e o centro de controle de doenças instaura quarentena, e o pânico se alastra quase tão rápido quanto a praga, gerando enfim a comorbidade da mistura dessa ansiedade com a condição viral.
O primeiro capítulo é bem longo, dirigido por Boone, e introduz outro bom personagem, Stu Redman (James Marsden), um homem de origem militar, que não era bom em seguir ordens e que teve o azar de conhecer e ter contato com o primeiro infectado, Charles Campion.
Ele é isolado e mantido preso para não contaminar ninguém e ironicamente, naquela instalação, Stu é um dos poucos que não é pego pelo vírus, seguindo ileso, sendo liberado pouco antes das autoridades que comandam o lugar simplesmente morrerem.
Nesse cenário há atores tarimbados, com breves participações, como J.K. Simmons e Hamish Linklater. Mais tarde outros atores famosos aparecem, como Whoopi Goldberg, que faz a anciã clarividente Abagail Freemantle, a mentora espiritual do grupo de sobreviventes mais pacifista, que afirma ter mais de 100 anos.
Fora a origem da doença, o maior mistério da trama reside na questão de que algumas poucas pessoas são imunes a essa “influenza”.
Aparentemente algumas delas foram pinçadas, escolhidas por alguém, por uma força maior ou meramente tem predicados físicos que as ajudam a seguir.
A possibilidade mais espiritual da origem da sobrevivência se torna mais obviamente clara pelo fato de que há gente com visões e devaneios sobre o futuro, sobre grupos de sobreviventes que residem em lugares esmos, mas o tempo inteiro o roteiro é dúbio, permitindo múltiplas interpretações para esses fenômenos.
É patente a influência de Abagail não só como mentora, mas também como força mediúnica. Tal qual Danny em O Iluminado e Carrie no romance Carrie: A Estranha, ela possui um poder de comunicação com o espiritual, possivelmente até com o Divino, já que cita Deus o tempo inteiro e repete clichês bíblicos.
A série é sábia por não ser tão explícita, por entregar seus rumos de maneira parcimoniosa e paciente.
Josh Boone não só criou a série como também dirigiu episódios junto a gente graúda, do cinema. Entre os mais famosos estão Vincenzo Natali (de O Cubo e Campo do Medo), Tucker Gates (Jonah Rex: O Caçador de Recompensas) e o renomado diretor de televisão Chris Fisher, além da dupla de diretoras Daniele Krudy e Bridget Savage Cole que fez o longa Afunde o Navio.
Os realizadores seguem o visual e estilo idealizado por Boone, mantendo viva a alma de mistério, que foi tencionada e não alcançada pelo showrunner quando dirigiu Novos Mutantes nos cinemas, além de referenciar a singeleza vista no drama A Culpa é Das Estrelas.
O outro criador Benjamin Cavell tem uma boa experiência com televisão, tendo escrito episódios importantes de séries de sucesso como Justified e Homeland. Também foi o criador de SEAL Team: Soldados de Elite, programa de guerra protagonizado por David Boreanaz.
Voltando a trama, nos acampamentos há pilhagem de cadáveres, que são mostrados em todo seu esplendor trágico.
Os infectados tossem muito, vão piorando e ficam com o queixo protuberante e inchado. A pele parece derreter, escorre catarro pelo rosto, em uma cor que varia entre o castanho e o laranja.
A pessoa parece que tem caxumba, tem febre alta e aparentam apodrecer até o momento em que de fato falecem.
A série não poupa no quesito gore. Como vários dos sobreviventes são criminosos, há uma boa quantidade de cenas de tiroteio, com direito a membros amputados, tiros na cabeça e toda sorte de combate corpo a corpo, com facões e armas brancas.
A violência é bem fotografada, flagrada de uma forma que valoriza a barbárie reinante, mostrando as pessoas sem as travas morais comuns.
Nos espaços abertos não é incomum assistir grupos de homens armados caçando mulheres, estuprando-as, também é comum ver mulheres com armas a procura de homens.
Os sobreviventes recorrem frequentemente para a insanidade, são reduzidos a desejos básicos, quando não optam pelo suicídio.
Aos poucos são detalhadas as maneiras distintas de sobrevivência. Lugares como uma zona franca em Boulder, não resistem muito, já o lar da mãe Abagail no Colorado, conhecido como Hemingford Home se torna uma espécie de santuário, uma comunidade onde todos se ajudam e se auxiliam, tentando viver em paz.
Tudo gira em torno da senhora, que aparece pouco no início, deixando o espectador pensar que talvez ela nem tenha um corpo físico.
Outros personagens são introduzidos aos poucos, entre eles a professora Nadine, interpretada por Amber Heard pouco antes dos julgamentos recentes, além do personagem interpretado por Jovan Adepo, o cantor Larry Underwood, um astro do rock em ascensão que residia em Nova York e vê sua chance de brilhar ir junto com o resto do mundo.
Outro personagem importante nesse início é Nick Andros (Henrique Zaga), um rapaz sensível, que tem uma condição de deficiência auditiva e parece ter uma sensibilidade espiritual semelhante a de um iluminado.
Isso o faz se encontrar com Flagg, que aqui age como o Mefisto das histórias populares dos gibis da Marvel, oferecendo luxos e fama para quem seguisse seus passos.
Como Nick é um sujeito de boa índole, não cede, seguindo então seu rumo com o sujeito dócil e desfalcado mentalmente Tom Cullen (Brad William Henke), além de passar pelo caminho da voluptuosa e violenta Julie Lawry (Katherine McNamara). Os personagens são reaproveitados depois, basicamente giram em torno do destino de Flagg e do seu acampamento.
Randall utiliza muitos nomes, o Homem de Preto, o Turista Andarilho, o Incorrigível, tem quase tantas alcunhas quanto o diabo. Apesar da série não detalhar essa questão é sabido que ele é um ser ancestral, que encarna em homens e tenta lidar com as contradições da humanidade.
A primeira aparição dele foi justamente no livro a Dança da Morte, mas também esteve ao longo da série Torre Negra, especialmente no volume A Torre Negra VII, e também no livro Os Olhos do Dragão.
Aqui ele é sedutor, violento, usa um cinto personalizado com uma estampa de escorpião, calça de couro e um broche com um smile que faria inveja no Comediante de Watchmen., até porque essa peça em específico parece ter vida própria, inclusive quebrando a quarta parede, broche piscando e mudando de expressão em vários momentos.
É um bocado estranho assistir uma série onde pessoas morrem em meio ao alastrar de uma doença sem cura, ainda mais em 2020 quando a série foi lançada, na época do auge da pandemia do novo coronavírus.
Diferente da realidade, aqui aparecem personagens que supostamente tem boas intenções, com moral e ética ilibadas além de poderes sobrenaturais.
É o caso de Glen Bateman, personagem de Greg Kinnear que gosta de fazer pinturas e que aparentemente prevê o futuro com elas. Ele é encontrado com Stu, e junto ao seu cão Kojak, vão até Hemingford.
Aos poucos, alguns desses personagens se tornam lideranças naturais, e até formam uma comissão, de cinco nomes: Larry, Stu, Fran, Glen e Nick.
Eles são alçados a um grupo de liderança permanente após Harold sugerir isso, embora a sua intenção não tenha sido o sucesso deles, já que ele sente ciúmes de sua ex-babá, e está sendo seduzido pelo mal de Randall Flagg desde que chegou ao forte.
A atmosfera de terror não é dada somente pelas cenas de violência e referências a estupro, mas também por momentos de possessão que se assemelham ao melhor que O Exorcista e O Exorcismo de Emily Rose oferecia.
O vilão faz corvos "choverem" sobre os vidros, quando os sobreviventes tentam arrumar suprimentos, o terror habita o imaginário de quem sofreu para chegar vivo ali.
É curioso como uma figura malvada em essência como o Homem de Preto tem vez em momentos de crises. O vírus e o seu alastramento é claramente uma referência crítica ao modo como conglomerados farmacêuticos podem ser inconsequentes, sendo gananciosos ao ponto de testar cepas laboratoriais para vender drogas e remédios de um modo tão descontrolado que causa uma pandemia.
Como argumento central da série vem um evento que era para existir nos termos de uma teoria da conspiração, mas que ganha contornos de realidade. Na brecha desse mundo onde o capitalismo tratou de ruir a sociedade é que o Mefisto particular de King reina.
Esse mundo é a alternativa que o escritor pensou que seria o palco ideal para a violência e a estupidez.
Desse modo, m sujeito de dupla personalidade e pirotécnico como o personagem de Ezra Miller (conhecido como o homem da lata de lixo) deixa de ser uma minoria, para se tornar um evento comum. Em um mundo comum, ele seria tratado por médicos, mas aqui ele é incentivado a tocar o caos.
Curiosamente a explosão de tudo e todos que ele promulga ocorre sob o olhar e controle sádico de Flagg, que é capaz de prever os seus passos, mas que diante de alguns acontecimentos, perde a capacidade de perceber os atos do seu capanga.
Da parte do elenco em New Vegas, se destacam Lloyd Henreid (Nat Wolff), um homem preso injustamente que é seduzido pelo poder que Randall oferece, seu par a já citada Julie Lawry, e diretora de entretenimento Rat Woman, interpretada pela ótima Fiona Dourif.
Esse núcleo exemplifica bem o caos e a cessão a instintos primitivos que os servos de Randall tem. Há violência, entretenimento de gosto duvidoso, referências a batalhas estilo gladiadores e orgias ocorrendo bem ao lado dessas justas, claro, mostrado aqui de maneira tímida afinal, é uma série que tenta abarcar todos os públicos.
Essa ser uma história sobre fim do mundo, com uma clara alusão de King ao livro bíblico do apóstolo São João, conhecido como Apocalipse ou o Livro das Revelações.
Os discípulos de Abagail são convencidos a excursionar rumo ao território inimigo por sua mestra, mesma que ela tenha condenado um plano de reconhecimento que Stu e os outros fizeram no passado, resultando então a dezenas de momentos bíblicos, como as peregrinações de conhecimento de Jericó, na época do início do Velho Testamento.
Essa jornada é bem curiosa, envolve uma viagem ao deserto que se confunde entre as dificuldades óbvias de atravessar o mapa dos Estados Unidos a pé e o devaneio de experiências com o sobrenatural, que a essa altura, são tratadas como algo comum.
Os episódios finais mostram tramoias, traições, deturpação de personagens que aparentavam ser bons, referências ao anticristo e a sacrifício humano. Os papeis de Heard, Dourif e Kinnear ganham muito destaque, o que reforça o bom aspecto de explorar bem o talento do elenco, que é colocado sempre a prova, com visuais e figurinos diversos, sobretudo quando estão em Nevada.
A direção de arte é bem exigida, supervisionada por Justin Ludwig (de O Homem do Castelo Alto), os cenários internos são legais, e os figurinos da cidade de cassinos são um show a parte, com as pessoas de altas castas sempre vestidas como cafetões e mulheres sensuais de alta classe, enquanto os trabalhadores usam uniformes laranjas como os de prisioneiros. Há todo um cuidado para que as roupas determinem a divisão entre as castas.
A cena do filho de Flagg é um espetáculo por si só. A criança se move como um monstro no ventre, e a mãe tem um destino trágico que assusta pela força imagética mesmo ao fã de cinema de horror.
Os diretores souberam capturar a estranheza do mundo que King idealizou, sobretudo Natali, que mostrou bem como um mundo de luxos pode sucumbir diante da vaidade e soberba.
A minissérie termina com um capítulo quase todo de epílogo, mostrando que mesmo após a queda do inimigo, é preciso pensar em como se reconstruir, especialmente com Frannie e sua família. Aos heróis resta a eterna vigilância, e a esperança de que dias melhores virão e de que a doença do vírus viajante seria vencida.
Ainda resta espaço para mostrar que mal e bem renascem, para além dos receptáculos de Randall Flagg e Abagail Fremantle, e travam batalhas pela Eternidade, resultando possivelmente na obra de Stephen King mais descaradamente reverencial aos mitos cristãos bíblicos.
The Stand é uma boa adaptação, e acerta mais do que a versão anterior de Mick Garris, até por conta do grande investimento, em talentos estrelados e em termos de produção. É tudo que o filme A Torre Negra tentou e não consegui ser. É uma pena que não seja tão valorizada quanto merece.
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