Se há uma coisa que pode ser dita sobre John Wick 3 - Parabellum é que estamos tendo a oportunidade de ver um filme autoconsciente. Como em praticamente toda e qualquer obra cinematográfica, nada do que se vê no terceiro filme está ali ou acontece por acaso. Entretanto, em JW3, há uma autoconsciência contemplatória. Do tipo que consegue saber para onde se caminha com a mitologia da saga, o que se deve fazer e mostrar nos entremeios e ainda presta homenagens à própria franquia. Por tabela, relembra algumas obras de sucesso da história do cinema.
Se os dois capítulos anteriores apresentaram e amplificaram a mitologia do personagem que dá nome ao filme, tendo estabelecido algumas regras básicas sobre o universo que envolve Wick, o Hotel Continental, o passado e as motivações do anti-herói, o capítulo terceiro da história do homem monossilábico que usa ternos perfeitamente alinhados traz, em sua mais nova apresentação cinematográfica, um filme de ação sem precedentes.
Quando afirmo que o filme é autoconsciente, basta notar algo: o espectador poderá sentir falta de elementos narrativos que se faziam presentes e eram intercaladamente repetidos verbalmente nos longas anteriores. Aqui, diferentemente, um deles sequer é citado, enquanto o outro é dito em uma única e singela oportunidade. A saber, e por ordem: a história do lápis e a denominação “Baba Yaga”, ou Bicho-Papão, o codinome-apelido que John Wick vem carregando desde o seu despontar, nos idos de 2014.
Essa autoconsciência ainda permite com que o terceiro filme nos entregue e invista naquilo que possui de melhor: as cenas de ação coreografadas com um esmero absurdo aliadas à fotografia que sempre valoriza cada oportunidade de investir camadas e camadas de muito neon. Sem spoilers, atentem para a colocação das luzes neon nas escadas que vão aparecendo em uma determinada cena, ou ainda no multifacetado jogo de luzes que circundam todo o primeiro ato do filme.
Com o escopo narrativo pré-estabelecido nos capítulos anteriores, é preciso constatar que a trilogia cuidou para que cada uma de suas investidas fosse transformando o personagem de Keanu Reeves em uma espécie de herói urbano de uma cidade que só se vê em seus filmes – acentuadamente reluzente, espelhada e esfumaçada. Poderia ser Neon City. De certa forma, sem que seja necessário fazer um grande esforço imaginativo, pode-se dizer que John Wick não é tão distinto assim de dois heróis também urbanos das séries da Marvel na Netflix: Wick e seu terno reforçado (sua armadura, portanto) é um muro imbatível tal qual Matt Murdock, o Demolidor, e possui uma exímia destreza com o controle e o disparo de armas variadas, como é o caso de Frank Castle, o Justiceiro.
Após um intenso primeiro ato que dura cerca de incríveis e espetaculares trinta e cinco minutos, o filme parte para um segundo ato com o pé mais no chão, que usa balé e música clássica para acalmar o espectador. É nele que os novos personagens vão sendo apresentados e velhos conhecidos reaparecem. Chama a atenção o quanto e como a cena com a personagem de Angelica Houston lembra facilmente os minutos iniciais de O Poderoso Chefão: Parte 1. Quem bem lembra do monólogo inicial do personagem do Don Corleone, interpretado por Marlon Brando, há de conseguir notar semelhanças na forma como Angelica Houston vai soltando cada frase de sua interessante personagem.
O filme ainda arranja tempo para referenciar outras obras neoclássicas do cinema, como é o caso do primeiro Matrix, que está completando duas décadas de lançamento. A citação de Matrix é realizada em uma apropriadíssima situação em JW3. Além da citação tal e qual, há ainda a presença do ator Randall Duk Kim, que interpretou o Chaveiro em Matrix Reloaded.
Outra nova adição à franquia é Sofia, a personagem de Halle Berry. Sem contar muito para não estragar a ótima participação da atriz no filme, basta dizer que a personagem possui background o suficiente para ganhar um longa-metragem próprio. Como há a promessa da série focada nos hotéis da rede Continental, um spin-off focado na personagem de Berry cairia bem. E, ah!, os cachorros. Preparem-se para eles.
Quem já está acostumado com a sisudez que Keanu Reeves empresta ao personagem desde o primeiro filme, o que explica-se por conta das motivações que o personagem carrega para agir monossilábica e destrutivamente em uma espiral de matança sem igual, poderá estranhar o terceiro ato de John Wick 3. Adianto que não é uma reclamação. Ao contrário, há um salto até então não dado. Ainda que pouco, Keanu Reeves parece divertir-se com seu personagem e, aliado ao fato de que está atuando com atores que também estão se divertindo, o filme é hábil e corajoso ao permitir que certas cenas do ato final sejam imbuídas com doses homeopáticas de um fino humor.
Tendo falado do humor presente na obra, principalmente em seu ato final, é preciso dizer que resgatar Mark Dacascos do ostracismo (ao menos no cinema, visto que ele andou tendo mais sorte em seriados nos últimos dez anos) mostrou-se uma escolha acertada e feliz. O personagem, que alterna momentos cômicos com outros ameaçadores, é uma adição que, ao mesmo tempo, serve tanto para que o filme emule um processo da narrativa seriada dos jogos de luta nos videogames, como para representar uma espécie de alter-ego do espectador. Há um momento em que um personagem enfrenta uns lacaios, depois os sub-chefes e, por fim, o desafio final, o chefão. Tudo isso sendo mostrado em uma cena de conquista de territórios, tudo sob o olhar do grande chefe e com um rol de escadarias sendo seguidamente escaladas para se alcançar os próximos níveis/chefes.
Além do tom levemente cômico, pouco antes do encerramento, o filme resolve emular seu lado heroico de vez. Não é de se estranhar, portanto, que uma considerável parte do seu elenco tenha interpretado heróis, vilões e outros personagens em filmes baseados em histórias em quadrinhos. Cito alguns exemplos de atores e atrizes de JW3 que já estiveram em filmes ou séries quadrinísticos: Halle Berry (X-Men e Mulher-Gato), Laurence Fishburne (O Homem de Aço e Homem-Formiga e Vespa), Mark Dacascos (O Corvo e Agents of S.H.I.E.L.D.), Ian McShane (Hellboy, a nova versão), Saïd Taghmaoui (Mulher-Maravilha) e Robin Lord Taylor (Gotham).
John Wick 3: Parabellum é um crescendo na franquia. Sem deixar de melhorar o que agradava anteriormente, como as sequências de ação (o balé de armas recebe duas novas companhias no filme) e a fotografia, o longa-metragem de pouco mais de duas horas expande e amplia seu universo, trazendo ainda novos personagens, situações e um desfecho com surpresas.