Grandes mentes pensam igual. Talvez por isso, a união da direção de Robert Zemeckis e da interpretação de Denzel Washington dê tão certo em O Voo. É preciso inteligência para comandar um filme dando praticamente uma aula de storytelling, da mesma forma como é necessária para viver um personagem tão complexo e cheio de nuances como o protagonista da trama. Inteligência e habilidade também são partes fundamentais deste personagem, que aos poucos se revela como uma adição marcante ao currículo de Washington.
Em O Voo, o ator vive o Whip Whitaker, um piloto de avião com um sério problema de bebida e drogas. Durante um acidente em pleno ar, a destreza e ousadia do protagonista salvam a maioria dos 102 passageiros, em uma manobra incomum. Recebido como herói após o resgate, Whitaker deve enfrentar a opinião pública e os tribunais, algum tempo depois, quando os exames toxicológicos indicam álcool e cocaína em seu sangue. Paralelamente a isso, o filme apresenta Nicole (Kelly Reilly) garota cujo vício em drogas a faz ter uma overdose. Ambos se conhecem no hospital onde se recuperam de seus traumas e seus destinos se cruzam: estão decididos a abandonarem seus vícios.
Mas a vida vive pregando peças e Whitaker parece não estar preparado para enfrentá-las sem uma dose de bebida no corpo. Aliás, isso já é indicado no próprio acidente. É impossível não se perguntar se, caso o personagem estivesse totalmente sóbrio, teria sido possível uma atitude tão rápida e ousada (assim como sua outra escolha, no desfecho). Talvez por pensar que só funcione "chapado" seja tão difícil para o protagonista se livrar de seu problema. E ele sabe que tem um. Washington o vive como um homem no limite, egoísta e cafajeste. E aí a inteligência do ator entra em ação, porque são em momentos discretos que sua composição se revela acertada. Em sua primeira aparição, em um quarto de hotel onde acorda ao lado de uma comissária de bordo nua, o filme já entrega tudo que o espectador precisa saber sobre este complexo personagem. Mais do que apresentar seu problema com drogas, a cena também serve para o ator mostrar como suas reações à determinados acontecimentos indicam a índole do piloto. A moça, vivida por Nadine Velazquez, se levanta enquanto Whitaker atende seu celular e se posiciona próximo à ele para procurar algo, curvando-se completamente sem roupa. É no olhar que o ator dedica às partes baixas da garota que fica evidente a importância de sua interpretação para que o filme funcione.
Enquanto Denzel Washington executa um trabalho de mestre na caracterização do piloto, Robert Zemeckis também faz questão de mostrar porque é um diretor tão festejado mesmo estando fora das telonas com filmes em live action há mais de 10 anos. Conhecido por gostar de experimentar a câmera em lugares pouco usuais, o cineasta procura não se exibir tanto desta vez, deixando sua competência aparecer apenas pela condução de suas cenas-chave. E o exemplo mais correto neste caso é justamente o do acidente. Zemeckis toma uma decisão fora do usual e opta por mostrar o acontecimento praticamente sem nenhuma imagem externa do avião, para destacar a importância das habilidades e das reações instintivas de Whitaker. Há apenas uma tomada geral da aeronave e é justamente a mais importante, quando o piloto a vira de cabeça para baixo para estabilizá-la. Outra coisa que o diretor faz constantemente é priorizar as imagens ao diálogo, e numa época em que a exposição pela conversa é cada vez mais usada em filmes, é gratificante um realizador mostrar mais do que falar. Um bom exemplo disso é a cena em que Whip vai visitar seu co-piloto no hospital. Quando o espectador imagina que ele não está assim tão mal, o enfermeiro sai de cena, revelando a perna cheia de pinos do rapaz, consequência do acidente. Assim, toda a condução do longa é pautada pelo estudo do personagem de Washington. Sem partir para o dramalhão gratuito, o cineasta prefere focar sua trama na influência que Whitaker exerce naqueles ao seu redor, em suas atitudes egoístas e na forma como mostra ter consciência de tudo isso (e de como tenta fugir dela).
Com uma trama direta e relativamente simples, no entanto, o longa presenteia o espectador com um protagonista cujas complexidades são fáceis de se relacionar e entender, mesmo que de natureza repugnante. Para isso, o roteiro de John Gatins se preocupa muito mais em acompanhar Whitaker até seu próximo passo (provavelmente seguido de algum tropeço graças à sua constante embriaguez), do que fomentar alguma discussão sobre as responsabilidades da companhia aérea em um acidente. O impacto humano é muito mais importante no caso de O Voo. Contando com um elenco de apoio que inclui Bruce Greenwood, Don Cheadle e John Goodman, em uma divertida participação como o fornecedor das drogas do protagonista, este é um filme totalmente guiado por seus personagens, sejam os principais ou os coadjuvantes.
Saindo do lugar comum por não se importar com a investigação do acidente, O Voo é um conto moral, antes de tudo. Graças à Zemeckis e Washington, no entanto, não é um como o público está acostumado a ver, fugindo de alguns clichês e apresentando uma jornada cujo desfecho está mais preocupado com a responsabilidade do protagonista do que com sua redenção. Inteligência, afinal de contas, também tem de ser esperada do espectador, instigado a todo instante a acompanhar a trajetória de Whitaker.
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