Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter JacksonFome Animal é um clássico do cinema trash dos anos 1990 idealizado e dirigido por Peter Jackson. Essa é uma obra de época se passa no pós Segunda Guerra Mundial em 1957 e mostra uma história familiar repleta de peculiaridades, misturada evidentemente com clichês de filmes de zumbi e de exploração irresponsável da natureza por parte da humanidade.

Antes do leitor prosseguir é importante lembrar que tanto texto quanto filme tratam de assuntos um pouco sensíveis. Para quem não gosta desse tipo de produção artística, onde o mau gosto impera e é a tônica, é recomendável ter cautela, e quem está em dúvida, recomenda-se ver o filme antes e depois ler o artigo.

Também fica um aviso de spoilers, tanto de partes substanciais da trama (embora esse não seja o foco nem do longa e nem do texto), quanto das cenas mais nojentas.

Fome Animal é reconhecido por ter um caráter grotesco que mal faz as pessoas lembrarem de detalhes de sua trama.

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

A história narra as desventuras de Lionel, um rapaz que vive com sua mãe. Ele tem uma grande dependência emocional ligada a essa matriarca, é de certa forma obrigado a isso, mas também é responsável, uma vez que nutre o comportamento obsessivo da mesma.

Entre descobertas de novas sensações e amores, Lionel observa a mãe se transformando em um monstro grotesco, uma extrapolação da visão particular que ele tem sobre a sua parente, embora jamais se permita pensar ou verbalizar sobre essa visão dela.

O drama começa na Ilha da Caveira no sudoesta da Sumatra, onde exploradores procuram um artefato raro, e em meio as pesquisas exploratórias, encontram uma criatura rara, nativa somente dessa ilha.

Não fica explícita a intenção daquela busca, o que fica evidente é o viés de exploração e predação estrangeira de terras distantes, além de uma óbvia referência ao lar do macaco gigante Kong, vista no filme de 1933 King Kong, que ganharia uma readaptação pelas mãos do próprio PJ.

Se percebe que o cenário montanhesco utilizado aqui é o mesmo de O Retorno do Rei, na representação do que se conhece por O Caminho dos Mortos. Diferente da adaptação de J.R.R. Tolkien, que estabelecia o cenário como um lugar sem pessoas vivas, aqui há movimentação sim, de dois trabalhadores atrapalhados que carregam uma caixa com aviso de frágil, mas sem qualquer cuidado, quase derrubando o objeto.

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

Entre ataques de nativos, palavras de que um mau presságio acompanha os estrangeiros e uma violência tão intensa que chega a ser caricata, um dos homens que organiza a expedição tem seus membros retirados a facão. O sujeito interpretado pelo próprio Jackson é esquartejado, sequer volta para sua terra natal, e é mais um exemplo das inserções que o diretor faz de si mesmo em seus filmes, normalmente em papéis e condições insalubres.

Por mais que o roteiro de PJ e Fran Walsh (baseado no argumento de
Stephen Sinclair) não se leve a sério, há um pouco de crítica ao mostrar a grande burocracia das leis neozelandesas, que mesmo cheio de amarras, permitem que uma figura perigosa chegue até seus cidadãos, basicamente por conta do dinheiro investido nesse ponto da história.

Aos poucos o enfoque muda. Uma pequena venda é mostrada, e dois importantes personagens são apresentados, a bela moça Paquita de Diana Peñalver, e também do Lionel interpretado por Thimoty Balme.

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

Os dois são pessoas que tem a solidão como principal confidente, mesmo estando sempre ocupados com os afazeres de seus familiares.

A postura é o principal diferencial entre eles, já que Paquita sonha em buscar um par para si enquanto Lionel é tímido, apegado a mãe e incapaz de se ver distante da personagem interpretada por Elizabeth Moody, a matriarca Vera Cosgrove.

Tal qual foi com Trash Náusea Total, o compromisso não é com a mensagem, e sim com o horror gráfico e com as referências a histórias amedrontadoras clássicas. Há entre Lionel e sua mãe Vera um relacionamento de dependência bem parecido com o drama da família Bates em Psicose, mas aqui isso é abordado de maneira escrachada, servindo como o pontapé para o humor debochado e besteirol.

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Os Cosgrove são de fato uma família estranha, com a mãe viúva sendo uma mulher exageradamente dramática, reclamando do filho ao passo que também tem muitos ciúmes do mesmo, e ele, mesmo adulto é tratado como garoto.

Os dois sofrem com a traumática morte do pai. É dito que ele teve um acidente, por afogamento, sendo esse mais um artifício para fazer piada, já que é um argumento desconstruído ao longo da história, é um dos fatores primordiais para a caricatura de família perfeita que Jackson planejou.

Outra demonstração de que as regras comuns e normais não se aplicam aqui, é a tentativa de Lionel e Paquita em ter um encontro romântico. A primeira vez que eles saem juntos parece um programa pensado por uma criança, já que o local escolhido para o flerte é um zoológico.

Esse é o palco perfeito para o imponderável, e é lá que ocorre um choque entre o macaco estrangeiro, trazido no epílogo, e a mãe do rapaz.

Há muitas bizarrices nesse trecho, sendo o mais óbvio a verdadeira obsessão da mãe pelo filho, já que ela o segue sabe-se lá porquê - provavelmente por uma questão edipiana invertida - e também a figura do macaco, que mais parece um roedor, um bicho horrendo, feito com tecnologia stop motion propositalmente artificial, mas que em alguns pontos, até parece bem feito.

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

Essa sequência pode ser encarada como a materialização dos sentimentos maternos conflitantes. A obsessão pode ser o último passo da culpa que Vera sente pelo que fez no passado, uma tentativa de correção dos pecados pretéritos que visa um cuidado extremo no futuro.

A mordida do animal estrangeiro deveria ser o símbolo da entropia, mas ao contrário, reforça o sentir do cuidado. Depois que é contaminada, Vera encarna os instintos primitivos, que resultam (mais uma vez) na tentativa da mãe em corrigir o seu percurso.

Ela busca que o filho retorne ao ventre, para ter uma segunda chance, e isso é reforçado com o simbolismo em uma das cenas finais, quando a mesma tenta colocar Lionel de volta a sua barriga.

Viagens psicanalíticas à parte, o que se procura nessa época do cinema de PJ é sangue e nojeira, e aqui de fato tem, seja no corte de cinema, na versão sem cortes, com 103 minutos.

As cenas adicionais são mais agressivas, mas a realidade é que o gore se concentra nas cenas comuns, a começar pela podridão alérgica da mãe, na área onde o macaco mordeu, e vai aos poucos aumentando, escalonando, começando por ferimentos leves, secreções, depois evoluindo para sangue, pus e membros descolando do corpo.

Nas cenas deletadas da versão estendida Vera implora para não ser levada, come carne crua, esperneia, faz uma cena bastante dramática e consegue convence-lo a deixar ela em casa.

Se o filme fosse cortado e mostrada apenas a sua transformação, certamente já seria algo grotesco, um belo experimento de nojeira, mas a ideia era subir o tom.

Reza a lenda que usou mais de mil litros de sangue de porco, e isso de fato não é surpreendente, visto a escalada de violência e exposição do corpo humano que é executada ao longo do filme.

A ideia mais crítica do longa é punir os descendentes dos "europeus" exploradores, que mexeram em artefatos de outras nações, roubaram e saquearam, e por consequência, tem seus descendentes punidos. Jackson propõe uma correção e uma reparação histórica, um revide da população Maori, nativa da Nova Zelândia, aos brancos invasores.

Um bom aspecto visual é o ótimo trabalho com maquetes e jogo de cena. O cineasta brinca bastante com escalas, em um ensaio do que rolaria com Senhor dos Anéis nas cenas com hobbits e anões.

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

O design de maquiagem protética também é primoroso. O trabalho de Bob McCarron, com supervisão de Marjory Hamlin ajuda a fortalecer os aspectos visuais práticos. Se os personagens são caricaturas e arquétipos super comuns, a transformação pela qual eles passam depois da contaminação é de fato diferenciada, absurdamente bem feita.

Essas pessoas parecem estar no mundo unicamente para se transformar em monstros, para servir ou para se tornarem as monstruosidades pensadas pelo especialista em construção de seres Richard Taylor, que voltaria a trabalhar com o diretor na trilogia Senhor dos Anéis e nos filmes O Hobbit.

A narrativa é o que menos importa, e se resume basicamente entre as tentativas de Lionel de esconder os zumbis na parte baixa da casa, e a investigação sobrenatural via tarot da avó de Paquita.

O escracho segue no ponto em que o método escolhido para frear o apocalipse zumbi é o de dopar quem está claramente se transformando em um monstro.

Não se pensa em lidar de maneira definitiva, e tudo bem, afinal, os personagens são gente comum. Não há gênios científicos, exceção talvez ao sujeito que vende o sedativo a Lionel, que é um nazista sobrevivente, que vive escondido e é incluído na trama sem qualquer motivo.

Peter Jackson faz papéis diferentes aqui também, mas diferente de Bad Taste aqui ele usa o mesmo visual, não tenta disfarçar sua identidade com barba ou outros penteados. Isso serve a um forte simbolismo, de que essa produção é uma evolução no quesito escracho e mau gosto.

Há cenas de luta também, inclusive uma no cemitério o padre de McGruder (Stuart Devenie) diz que dá porrada em nome de deus, e começa a destruir vários zumbis, arrancando braços, pernas e cabeças, até que ele mesmo perece no meio das lutas.

Fome Animal: A evolução do gore no cinema de Peter Jackson

A violência é recompensada com o falecimento, tal qual na passagem bíblica de Romano 6:23, " o salário do pecado é a morte", e dado que não havia necessidade de se exibir, é fácil inferir vaidade no procedimento do sacerdote.

O humor do filme é muito baseado no choque, Balme se coloca em dezenas de cenas bizarras, onde age como um louco. O cúmulo disso é que ele decide levar um zumbi criança, um bebê para passear, para emular uma normalidade, ou um pretexto para isso.

Essa criança mesmo é uma grande piada, sendo fruto de uma relação de sacrilégio entre o padre zumbi e uma enfermeira que cuidava de Vera Cosgrove. A casa da família vira o lar da morte e palco para orgias.

 

Quando está no parque, Lionel protagoniza um show de humor físico típico do começo de carreira de Charlie Chaplin, mas voltado para o irreal e para o grotesco, já que espanca o boneco/bebê por nada.

Ao contrário do que ocorreu com Bad Taste, essa produção foi bastante rápida. Tudo foi rodado antes do prazo, e Jackson resolveu pegar os dias sobressalentes e o dinheiro que sobrou e decidiu filmar momentos extras, como essa no parque, que resultou obviamente em um dos momentos mais memoráveis do longa.

A festa na casa dos Cosgrove é outro momento bastante pitoresco. O ajuntamento rapidamente se torna uma insanidade total, primeiro pela falta de noção do filho em permitir que tivesse ali uma reunião social quando todos os mortos estão no porão ávidos por carne humana, segundo pelo show de horrores que segue, após a libertação gradual dos zumbis.

A luta pela sobrevivência é repleta de gore com destaque para braços que são enfiados na garganta das pessoas, pele dos vivos sendo arrancada para aparecer para aparecer o crânio coberto por sangue e músculos, corpos divididos pela metade onde só se percebe os ossos da perna e até gente patinando em poças de sangue.

Entre nojeiras como na tentativa de matar o bebê monstruoso com um liquidificador, Jackson reforça o clichê de filme zumbi onde os mortos são tão numerosos que acabam cercando e consumindo os vivos, trazendo a eles o mesmo destino trágico, com o agravante que aqui até as partes de órgãos são capazes de reagrupar, se organizar para atacar.

Jackson é sábio ao variar entre cenas com atores e manequins, fazendo transições que tornam naturais essas trocas através de artifícios sutis, como uma vítima colocando a mão no rosto antes de um pequeno corte onde se troca a pessoa por um boneco.

É bem pensado, e se torna um evento irônico já que boa parte do roteiro brinca com a conveniência de ser tosco quando quer ser engraçado e ser sério quando os realizadores simplesmente decidem assim.

Próximo do fim Lionel usa uma arma giratória baseada em aparelhos de cortar grama, para tentar chacinar os mortos mais rápido.

Se antes ele queria manter as pessoas por perto possivelmente para curá-las, agora ele quer abreviar esse caminho, para ficar livre o quanto antes e seguir sua vida com Paquita.

Em meio a essa bagunça, aparecem seres nojentos típicos da obra de Brian Yuzna e Screaming Mad George. Personagens comuns como o tio Les (Ian Watkin) tem o pescoço alongado, fato que lembra demais os efeitos em Sociedade dos Amigos do Diabo, enquanto o monstro mãe lembra demais o que Robert Rodriguez e Tom Savini construíram em Um Drink no Inferno de 1995, seis anos após esse.

A obra de Jackson bebeu de muitas fontes inspiradoras, mas inspirou tantas outras também.

No final, Lionel descobre segredos terríveis a respeito de sua família, fato que fecha as semelhanças com o romance Psicose de Robert Bloch. Esse certamente é o aspecto mais inteligente e profundo de toda a obra, que tem o diferencial óbvio na bruta exploração dos desmembramentos humanos.

Fome Animal é um clássico do cinema B visualmente inventivo, é uma das produções mais nojentas do século XX. Pavimenta o trabalho de Peter Jackson enquanto construtor de momentos épicos, atrelando o retorno dos mortos ao avanço colonialista europeu e a solução a artefatos mágicos, além de lidar de maneira bizarra com os conflitos familiares comuns e incomuns.

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