Louca Obsessão: Um trabalho primoroso de James Caan e Kathy Bates

Dias atrás o icônico ator James Caan nos deixou. Dono de dezenas de bons personagens e performances, ele é normalmente associado ao Sonny Corleone em O Poderoso Chefão, pudera, foi indicado ao Oscar de ator coadjuvante por ele. Seu papel mais lembrado fora o mafioso é o do escritor Paul Sheldon, o autor de livros best sellers, românticos e de thriller, que co-protagoniza junto a Kathy Bates, a adaptação de Kinguiana Louca Obsessão, do original Misery.

A obra de Rob Reiner mostra o cotidiano de Sheldon, que acabara de redigir um manuscrito de seu mais recente livro ficcional, a caminho da editora ele sofre um acidente e se vê cuidado por uma boa e simpática enfermeira, que o resgatou de morrer congelado.

É meio que sabido que Stephen King, autor do livro onde o roteiro de William Goldman se baseia, gosta de se inserir como parte das histórias.

Em O Iluminado, ele usou e experiência de Jack Torrance como pretenso escritor e como homem viciado em álcool em um exercício de auto exorcismo.

Aqui ele referencia também um dos seus receios, tornando o papel genérico do romancista em um alvo de sequestro e cárcere privado.

A outra protagonista do filme é Annie Wilkes, interpretada brilhantemente em cada de suas camadas por Kathy Bates, que viria a ganhar o Oscar no ano seguinte por este papel.

Ela se apresenta como alguém afável, inofensiva, servil e de simpatia fácil, em um primeiro momento ela não é nada ameaçadora, tanto fisicamente, já que parece uma senhorinha de meia idade que gasta seu tempo costurando ou vendo novelas, quanto por seu cotidiano pacato, típico da vida rural. A mulher é tão simples que até seu animal de estimação é peculiar, uma leitoa castanha, de nome Misery, tal qual o nome do filme e o nome da personagem dos livros de Paul Sheldon que ela tanto ama.

Misery a Porquinha de Annie Wilkes (Louca Obsessão 1990) - YouTube

Esse é um filme cujo horror não é gráfico. Não há tanto gore, embora hajam cenas violentas, a construção do medo é gradual e o catalisador do mal é meramente humano, exibindo o quão perigoso pode ser o intento humano.

Por ajudar seu "ídolo" Wilkes acaba ganhando o direito de ler o texto ainda rascunhado, a única cópia do novo livro, que traz mais uma história de Misery Chastain. Reiner faz questão de deixar claro que toda adulação e sentimentalismo do filme tem a ver com a escrita, não à toa ele inicia sua trama com um belo plano detalhe sobre a máquina de escrever barulhenta de Paul.

É a escrita o motivo da aproximação de idolatria entre os dois personagens, e possivelmente, foi a escrita que causou o acidente da tempestade, já que todo comportamento de Annie faz público e o cativo se perguntarem se até o pretexto dos cuidados não foi arquitetado por ela.

Para um ator dramático, adentrar nos subgêneros de horror e suspense pode parecer um movimento de recuo, de rebaixamento, mas dada a qualidade da condução do elenco, o que se percebe é o inverso, essa é uma boa oportunidade para Caan brilhar, mesmo que ele fique ofuscado pelo desempenho de sua colega de tela.

STEPHEN KING | 5 curiosidades sobre Misery - Louca Obsessão

O longa traz inúmeras referências as marcas de King enquanto autor. A trama se passa em uma configuração urbana de cidade pequena interiorana, perto de Silver Creek, igual e dezenas de histórias de horror dele, também perverte a confiança geral da sociedade civil em funções conhecidas por serem confiáveis, colocando uma enfermeira para ser a vilania encarnada, há de fato um bom cuidado para referenciar os clichês e as marcas do autor.

King ficou positivamente impressionado com a atuação de Kathy Bates, tanto que resolveu chamá-la para mais produções que envolvessem seu nome.

A Dolores Claiborne de Eclipse Total foi escrita com a atriz em mente, e foi ela quem fez a personagem no cinema. O autor também escreveu o roteiro de A Dança da Morte para ela, mudando o gênero do protagonista básica e somente para encaixa-la mais uma vez.

É sabido também que a produção passou por maus bocados. Em determinado ponto, Caan foi gravar sua participação com uma ressaca terrível. Sua performance foi tão ruim que precisaram ser eliminadas do filme, e refeitas, sob o pretexto de que um problema no laboratório de revelação ocorreu. Depois de saber que isso havia sido apenas uma desculpa, o ator se ofereceu junto ao cineasta para pagar pelos rolos de película utilizados.

Reiner tem um papel fundamental aqui, pois além dele conduzir bem o crescimento do suspense e a transformação de Annie em uma predadora carnívora, ele ainda tem que determinar que o sujeito cativo vai percebendo que algo está errado, tudo de maneira gradativa e verossímil.

A experiência dele tanto como ator de séries quanto como condutor de obras como o drama Conta Comigo, comédias como Harry e Sally: Feitos Um Para o Outro e This Is Spinal Tap, o credenciaram para criar essa atmosfera de fábula e comedia de erros. Extrair boas interpretações de dois bons atores se tornou fácil, dada sua expertise em lidar com elencos imensos.

Outro bom aspecto é o modo como a fotografia e o uso de luz e sombra muda as perspectivas. A antes doce mulher na claridade se torna um monstro ameaçador, a tal Lady Dragon que seria revelada minutos depois de suas primeiras ameaças a integridade e liberdade de Sheldon.

Is Misery Based On A True Story?

O registro de Bates se dá em closes muito fechados, com uma expressão amarrada que lembra as de uma matrona, da mãe punidora que corrige seu filho, aqui motivada por rumos literários que ela simplesmente diverge.

Ela larga a docilidade basicamente por não concordar com o que o autor faz, e isso conversa bastante com a rejeição recorrente a obras populares e a pesada mão dos fãs, que perseguem e agridem pessoas ligadas diretamente ou indiretamente a produções que reúnem um grande número de aficionados.

Aos poucos o quarto de hóspedes se torna de fato o cenário de um cativeiro, mas não sem a interferência e astúcia de Paul, que mesmo com seus membros machucados e limitados, manipula a mulher, pedindo para que traga um papel que não borre. Assim, ele faz ela se sentir parte da escrita que ela tanto exige e ganha tempo para "conhecer o terreno".

A trilha sonora, assinada por Marc Shaiman tem momentos autenticamente inspirados, com acordes de tensão que lembram o mesmo desespero de quando o peixe assassino de Tubarão se aproximava dos homens sob a batuta de John Williams. Reiner também é referencial na construção dos cenários. A casa de Wilkes lembra uma versão diminuída da mansão Bates de Psicose de Alfred Hitchcock.

Dessa forma, o público já se ambienta para sustos semelhantes ao filme de assassinato, tornando então as aparições repentinas da enfermeira em momentos com mais força e vulto, com o diferencial das armas utilizadas, que incluem os facões de cozinha de Norman Bates, acrescido claro pelas seringas cheias de materiais que dopam.

Louca Obsessão | Obra de Stephen King que mostra o horror que fãs podem causar

Para plateias mais jovens talvez seja estranho assistir o desempenho de Kathy Bates, uma vez que ela delira de forma tão intensa que sua reação parece grotesca. Fato é que a performance marcou tanto que se tornou influência para a maioria das atrizes que encenaram pessoas insanas, obsessivas e neuróticas, tão meticulosa que reúne dentro de seus tesouros pessoais um álbum repleto de seus feitos, com um dossiê sobre todas as suas culpas do passado.

Ela faz monstro imortal, o que precisa de muitos golpes para desfalecer, e que mesmo após ser "encerrado", ainda assombra o sobrevivente.

Louca Obsessão é simples, direto, curto e cheio de camadas, mas seu maior sucesso certamente mora no desempenho da sua dupla de protagonistas, que tem química e conseguem fazer o público acreditar na quantidade absurda de bizarrices que ocorrem em tela. É uma bela homenagem ao desempenho sempre equilibrado de Caan, e uma boa forma de rememorar o seu talento.

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