May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKee

May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKeeMay: Obsessão Assassina é uma pequena pérola do início dos anos 2000 infelizmente esquecida, até entre o público que gosta de cinema B. Filme de horror localizado na época do dia das bruxas, a trama acompanha a personagem título passando por uma jornada de inadequação, aceitação depravação e obsessão.

Idealizado pelo criativo Lucky McKee, o filme acompanha a doce e bela May Dove Canady, uma moça desajustada e rejeitada, que desde pequena vivia isolada, graças a superproteção de seus pais, que piora quando eles percebem que ela possui um leve estrabismo em um dos seus olhos.

Quando fica adulta ela segue sua vida e se torna ainda mais solitária do que antes, já que seus pais não aparecem. A parte em que é feita pela icônica Angela Bettis tem enfim um conserto para o seu olhar, que não garante a menina uma imunidade para suas inadequações.

Lançado em 2002, o longa foi feito pelo estúdio 2Loop Films, foi distribuído pela Lions Gate Films e rodado em Los Angeles. Tem como produtores executivos a dupla Eric Koskin e John Veague, que juntos fizeram The Elder Son. Os produtores são Scott Sturgeon, que também foi produtor e redator em The Elder Son, além de Marius Vaysberg, que é produtor e diretor do recente Destinos Traçados.

McKee também escreveu o roteiro desse, baseado em suas próprias experiências, já que ele sofreu muito bullying quando jovem, graças ao fato de ter um leve estrabismo quando era criança.

Esse é seu longa de estreia no cinema, depois fez o elogiado A Floresta em 2006, The Woman - Nem Todo Monstro Vive na Selva em 2011, Todas as Cheerleaders Devem Morrer, que adapta o filme homônimo feito direto para vídeo, a antologia Tales of Halloween e O Homem da Cabana do ano passado. Também dirigiu um episódio de Poker Face, seriado de Rian Johnson, que também trabalhou nesse.

É uma pena que a carreira do diretor não decolou, tanto que seus últimos trabalhos dependeram da confiança de amigos, como foi com Johnson. É sabido que Tobe Hooper (O Massacre da Serra Elétrica e Poltergeist: O Fenômeno) gostava muito dele, tanto que o indicou para Mick Garris, e ele participou da primeira temporada de Mestres do Terror, inclusive participou dos jantares com outros cineastas do gênero, que acabaram resultando nessa antologia seriada.

A narrativa começa histérica, com uma cena gritada, com uma menina sangrando, pelo olho, em frente ao espelho.

Ela é May, mas a versão já adulta da personagem, interpretada por Angela Bettis, ainda com um semblante semelhante ao que foi visto dela no telefime Carrie: A Estranha também de 2002.

Depois retorna a infância da personagem, mostrando ela usando um tapa olho, para esconder seu olhar torto. A menina é interpretada por Chandler Riley Hecht. Ela recebe de sua mãe (Merle Kennedy) uma boneca, envolta em uma redoma de vidro, que ela chama de Suzie.

May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKee

A matriarca é irritante, até mesmo para o seu marido, já que reclama até da forma que a criança rasga o papel. O tal brinquedo era um item frágil, uma boneca de colecionador, que deve ficar dentro da caixa, intocada.

Também é dito que foi a primeira boneca que a mãe da protagonista fez. Em algum ponto da produção se pensou em começar o filme com uma introdução mais longa, mas se percebeu que atrapalharia o ritmo, demorando demais a chegar no ponto nevrálgico da história.

O brinquedo se torna confidente da garota, desde cedo até quando ela cresce. Quando está adulta ela segue se sentindo preterida de tudo, não consegue sequer flertar, já que o olhar torto é visto de maneira negativa por todos.

Seus dias são bem demarcados e rotineiros, muda pouco e são sempre os mesmos. Ela lida com um cirurgião veterinário estrangeiro o doutor interpretado por Ken Davitian (que fez Borat), lida com a recepcionista atiradinha e mega engraçada Polly, de Anna Faris.

Quando está de folga, May tenta uma aproximação com Adam Stubbs, personagem de Jeremy Sisto, que fez Pânico na Floresta. Ela sente tanto vergonha que utiliza óculos escuros até em ambientes fechados, como na clínica veterinária Sarkizan.

May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKee

Não demora até que seu oftalmologista traga a ela uma solução paliativa, implementando uma lente de contato corretora. A partir daí ela ganha confiança, por conta de virar uma moça com mais confiança, que se apronta e se veste de maneira provocativa, que se torna automaticamente interessante para flertes ou gracejos.

Nesse ponto McKee atinge o clichê de comédias românticas, pautadas na questão da "linda garota feia", jargão esse que é típico das comédias, que colocam uma atriz bonita para fingir ser feia, só por conta esconder o rosto atrás de óculos feios ou de um penteado mal pensado, com cabelos desidratados.

Bettis não é exatamente uma menina dentro do ideal de beleza das mulheres dos anos 2000, mas está longe de ser uma menina feia. É branca, magra, tem um corpo dentro do padrão, tem cabelos bem tratados, sabe conversar, tem um sorriso convidativo. O seu "defeito" é apenas o olho e um mal jeito de agir e se apresentar.

Depois de perseguir o rapaz, May consegue enfim conversar com Adam. Quando ela toma coragem de falar com ele simplesmente elogia as mãos do rapaz, mesmo que essa seja uma parte do corpo normalmente não adjetivada por pessoas distas normais.

Como ela é isolada desde sempre, não tem sequer noção de que isso é estranho, tanto que vive falando das partes do corpo das pessoas, como o pescoço de Polly ou as pernas de outra personagem, futuramente abordada.

Ao conversar com a protagonista Adam revela ter um gosto peculiar por arte e cultura. É fã de filmes de horror, especialmente os splatter. É fã declarado de Dario Argento, até tem uma foto dele pendurada, possui um pôster de Opera, chega a citar que vai assistir um dos filmes mais agressivos do diretor, que é Trauma.

Ele assumidamente gosta de coisas estranhas e alternativas, é o típico sujeito que se orgulha de não ser óbvio e de não se render a convenções. Muito por isso ele se interessa por May.

Há outros personagens com afeição pelo mórbido, como Polly, que primeiro acha estranho ver May se automutilando, mas acaba bebendo o sangue dela, sentindo prazer nisso. Essa pode ser uma tentativa do filme em demonstrar que ela gostava de sadomasoquismo e BDSM.

A sexualidade da personagem é demonstrada de maneira bem explícita, já que ela é lésbica e não tem receio de se mostrar assim. É uma menina madura, divertida e muito livre.

May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKee

O texto se desenrola de maneira óbvia, optando quase sempre para o que já se espera o desenrolar sentimental. May consegue conversar com o rapaz, sendo retribuída por ele. Em seu tempo livre ela age como uma adolescente comum, mas graças a sua timidez não tem como quem compartilhar suas ideias e segredos, só o faz com a boneca.

Em casa ela até pega outras bonecas, estilo Barbie, para ensaiar interações amorosas, como beijos, amassos e transas. Tudo que é idealizado por ela é feito antes com brinquedos.

A relação de May e Adam é toda pautada por estranhezas, tanto que o momento onde eles ficam mais íntimos envolve ele demonstrando uma gravação sua, de um filme chamado Jack and Jill, onde um casal se pega ao som de Hanky Panky, canção de Tommy James & the Shondells.

Na transa entre os dois, May morde o garoto, de forma tão agressiva que até arranca sangue dele. Adam se afasta, percebe que não gostou da sensação de se machucar e sangrar.

Quando ele saiu estranhou que May gritou sozinha, aparentemente resmungando com a boneca, como se ela fosse viva. Saiu para não mais retornar para a casa dela, percebeu enfim que não era uma boa ideia estar ali e estar com ela.

May não se restringe a sexualidade heterossexual, tanto que dá margem para ficar com Polly. As duas até combinam em cena, tem química, não só por conta do modo alternativo de vestir que ambas tem.

Há uma mensagem de inclusão ao dar enfoque a essa troca de amores e fluídos, embora soe esquisita, já que parece efêmera também, especialmente por conta da personagem de Faris não ser exatamente monogâmica.

May: Obsessão Assassina aponta para o futuro, evocando a fluidez das relações que seriam comuns na década de 2020, utilizando a valorização do diferente e do excluído para incluir o pouco usual e o grotesco, mesmo que o esquisito se resuma a uma menina com olhos meio tortos.

A protagonista não lida bem nem com rejeição e nem com a não exclusividade da por seus amantes. Ela se senta triste depois de levar um fora de Adam e fica com ciúmes de Polly, após perceber que ela tem outras parceiras sexuais. Ela até parece possessiva, mas revela apenas que é inexperiente, que não tem muito costume de lidar com outras pessoas.

Seus momentos agressivos e de raiva. Ao se ver solitária novamente ela se culpa e ataca os que a cercam. Arremessa um objeto em seu gato de estimação, Loop e acaba matando ele.

A partir desse ponto, o filme abraça o especulativo, tenta ligar para Adam do banheiro e ao não ser atendida ela ouve ao fundo um barulho de vidro rachando, que parece ser a da caixa da boneca.

A montagem de Debra Goldfield, Rian Johnson (ele mesmo, o diretor de Entre Facas e Segredos e Os Últimos Jedi) e Chris Sivertson faz parecer que é isso, mas não fica exatamente claro se isso está ocorrendo ou se é meramente uma ilusão dela.

A boneca é alvo do ódio de sua antiga amiga. Fica a dúvida de qual é a função dela. Talvez ela tenha sido colocada por sua mãe como uma guardiã, protetora de May, que supriria a falta da parente, que não reaparece depois da primeira parte do filme, já que possivelmente morreu.

Há muitas teorias em torno disso, que vamos descortinar mais à frente.

A moça leva Suzie para que sua turma de crianças cegas possa ter contato com o brinquedo.

May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKee

A ideia parecia péssima e se provou assim, já que elas quebram o recipiente, espalham vidro pelo chão e se ferem.

A sequência é cuidadosamente montada para incomodar o espectador, pois são crianças se cortando e sangrando, mas a música de Jammes Luckett pontua algo diferente, faz parecer que os alunos se divertem, mesmo com dor.

Quando a boneca quebra May se fere e acorda no dia seguinte, com os olhos ensanguentados, com fragmentos da boneca e com o cadáver de ao lado do gato falecido. A partir daí ela e o filme abraçam o caráter enlouquecido.

Parte dos fãs considera que tudo que ocorre após esse trecho é uma alucinação, um delírio da mente combalida da menina, que piorou graças a dor do contato do vidro com seus olhos.

Outra teoria muito aceita entre os aficionados é que Suzie é a representação da infância de May, sempre isolada, envolvida por um vidro frágil, que ainda tenta alertar a agora moça dos perigos da vida adulta, como a rejeição e a maldade alheia.

Pensando nisso, a possibilidade de ela ter assassinado seus pais é bem cabível, já que eles não aparecem depois que ela cresce, nem se justifica a solidão dela. Ela trabalha, se sustenta e tem tendências homicidas. Poderia ter o hábito de matar desde cedo, já que não apresenta qualquer remorso quando finalmente o faz, nem na primeira e nem nas outras tentativas.

A leitura mais comum é de que essa é uma sátira sobre a obsessão superficial da sociedade por vaidade e perfeição, resultando enfim em uma crítica ao narcisismo e alienação proveniente da busca das pessoas por esconder imperfeições físicas.

Depois que ela mata o gato e se machuca, o tabu do assassinato cai de fato, tanto que derruba um punk que deu em cima dela, pegando o Blank de James Duval após ele visitar sua casa. Parte do interesse dela é graças ao fato do rapaz ter uma tatuagem do monstro de Frankenstein.

A trilha sonora é muito boa, tem um caráter psicodélico, utilizando a parte instrumental das músicas, para fazer uma espécie de balada com rock progressivo de fundo.

Isso ajuda a pontuar a escalada de estranheza da menina, que mede as pessoas assim que as vê, incluindo Ambrosia, a nova namoradinha de Polly, interpretada aqui por Nichole Hiltz, elogia as pernas dela, fato que marca essa moça, com um alvo na testa.

Sequência onde mata duas vítimas é ótima, ela brinca de seduzir Polly, depois passa a lâmina de bisturi no pescoço da menina, de uma maneira que ela reage em silêncio, com tanta surpresa que a vítima fica incapaz de falar.

Algo semelhante ocorre com Ambrosia, mostrada em outro cômodo, com uma roupa curta e reveladora, fantasiada como uma cheerleader, tal qual uma líder de torcida zumbi com o mesmo traje e maquiagem do primeiro filme do diretor, All Cheerleaders Die de 2001, que ele refilmaria anos depois, em 2013.

McKee é poético, mostra ela golpeando a moça, com o silêncio de vozes reinando, com uma música estridente ao fundo e com o sangue se misturando poeticamente ao leite derramado.

May está tão perturbada que anda sangrando nas ruas. Ninguém a corrige ou estranha, afinal, é noite de Halloween. Ela escolhe se vestir tal qual Suzie, em uma referência visual a Era Vitoriana, mas modernizada. Usando isso ela assume a estranheza de sua infância como o padrão de sua vida.

May - Obsessão Assassina : O jovem e doido experimento de Lucky McKee

O diretor faz sua versão de Frankenstein moderno de maneira delicada. Ela reúne as partes em isopores e esquifes de plástico sujos de sangue, monta uma criatura aos poucos, usa tecido, máquinas de costura e muita linha.

Reúne também as partes preferidas dos corpos de conhecidos e amigos, mas também de seus amantes e dos outros amantes dessas. Nessa tentativa de fazer um ser idealizado, May se mostra como realmente é, como alguém frágil, patética e solitária, com muito mais problemas internos do que os externos.

Seu caráter em declínio chama bem mais atenção do que seus possíveis defeitos visuais e no torpor de sua loucura particular, ela acha que o amigo feito por um amontoado de peças humanas, que ela não vê essas imperfeições em plenitude por conta de não ter um olhar saudável, no momento.

Perto do fim o longa volta a cena inicial, dela ferindo a si mesma, para o olho bom para esse parceiro. Ainda há no final um momento idílico, onde a massa disforme move o braço para abraçar ela. Fica a dúvida se isso realmente ocorreu, se sobre alguém ainda vivo embaixo desse monstro, se May morreu ou se é uma ilusão dela, parcial, incluindo só esse trecho, ou total.

May: Obsessão Assassina é uma pérola dramática, foi elogiada por Wes Craven, que disse era - chocante, convincente, verdadeiramente original- e não à toa. Possui atuações exageradas e muita confusão mental no roteiro e é genial justamente graças a essa mentalidade anárquica com que ele foi levado. É um filme que merece ser visto e louvado bem mais do que normalmente é e que é mais triste do que assustador.

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