A Coisa ê um filme com uma premissa peculiar, focada no consumo de uma substância estranha, que serve de alimento para as massas e recebe o nome de stuff/coisa. A execução cinematográfica é bastante bagunçada, fato que não impediu que os fãs de cinema B de amar o longa. A abordagem mistura elementos de terror, comédia e ficção científica e é bastante lembrada por seu pôster característico, com um sujeito derretendo supostamente graças ao material que dá nome ao filme.
A história parte uma realidade não tão diferente da nossa, mostrando uma sociedade mergulhada na mania de consumo e nas paranoias da modernidade, e conta com um elenco cheio de famosos, entre eles, o saudoso Paul Sorvino. A direção fica a cargo de Larry Cohen, experiente cineasta de obras que brincam com comédia e sustos.
O longa é conhecido como o "filme do iogurte assassino", e seu início mostra um simpático velhinho, que encontra um material viscoso e branco na neve. O idoso leva essa substância desconhecida a boca, tal qual uma pessoa nem um pouco cuidadosa, entretanto percebe que o gosto era bom, atestando que aquilo poderia ser comercializado.
Não há muita cerimônia no filme, logo a cena corta para um tempo no futuro onde a substância branca ganha o seu nome de marca, e está presente no cotidiano de todo americano médio, sendo vendido largamente em qualquer mercado.
Stuff então vira mania entre cidades pequenas, e a empresa que a comercializa vai timidamente indo até cidades maiores, migrando das paisagens suburbanas e pacatas mostradas no início, para ganhar mais espaço e projeção.
A trama central se dá em um distrito pequeno, onde quase todas as pessoas consomem sem parar a Coisa. A exceção é uma criança, o pequeno Jason, interpretado por Scott Bloom.
O susto do menino não é à toa, afinal, quando está acordado no meio da noite ele vê o alimento se movimentando na prateleira da geladeira, mas ao indagar seus pais sobre aquilo, tem seu testemunho diminuído, afinal, era apenas uma criança.
Aproveitando que há toda uma exploração bizarra e engraçada o detetive David "Mo" Rutherford é introduzido no final do primeiro terço. O investigador particular e ex-agente do FBI, interpretado por Michael Moriarty (de O Cavaleiro Solitário e Q- A Serpente, também obra de Cohen) é peculiar e estranho, adora fazer trocadilhos terríveis e tem uma lógica moral bem particular.
Mo é contratado por um concorrente da empresa que que comercializa o alimento , e vai atrás de informações no melhor estilo Hunther Thompson como jornalista gonzo, mesmo que ele não seja da área de comunicação. Ele não se apresenta como um agente da lei, só tenta persuadir as pessoas com lábia e na maioria das vezes, tem êxito.
O personagem de Moriarty é o que mais se aproxima do arquétipo do heroi, ele é o sujeito melhor resolvido, e mesmo tendo um caráter dúbio, é o mais moralista entre os que aparecem. Todo o resto dos personagens, parece refém de pensamentos de conspiração.
Investigando ele percebe alguns fatos estranhos. O governo por exemplo, nada faz para esclarecer do que a Coisa é feita. Não há obrigação da fábrica em explicar os ingredientes, inclusive há uma comparação aqui com a formula da Coca Cola, produto também carente de informações de como é processado.
The Stuff tem um gosto agradável e não mancha, é consumida por homens e mulheres de diversas idades, se torna a marca preferida de seus clientes, que usam praticamente só ela. Em suma, é quase tão popular e desejada quanto a cocaína era no auge dos anos 70 e 80, com o agravante de que aqui é legalizada.
No entanto, a riqueza do filme reside em Mo. Ele é o autêntico pastiche do detetive noir. É engraçado, irônico, desconfiado e está acima de todos os personagens, uma mente que flutua tanto sobre os ricaços engravatados quanto dos caipiras que o cercam.
Ele é uma piada ambulante, durona e canastrona, que em alguns momentos, é acompanhado de um sidekick negro, Chocolate Chip Charlie, interpretado por Garrett Morris, um sujeito engraçado, que se apresentava dando golpes de kung fu. A união dos personagens é pontual, e ocorre porque Charlie viu seu negócio de doces ruir graças a contratação de gente para manufaturar a Coisa.
Com o decorrer da trama os paralelos entre Stuff e drogas viciantes deixam de ser discretas. As redes de lanchonete estão cheias durante a madrugada. Membros das famílias obrigam as outras pessoas a usarem a substância.
A partir daí o subtexto abandona as sutilezas. Algo muito errado ocorre e esse espírito se resume bem no cartaz de anúncio de Stuff, que diz "America's taste sensation. Number one across the nation", que traduzido, seria A sensação dos Estados Unidos, número um em todo país.
Nesse momento o maior destaque certamente é uma cena onde um cão embebecido pela Coisa ataca seu tutor e se torna um monstro de efeitos práticos mal feitos.
A sequência é maravilhosa para o fã de cinema de baixo custo e mesmo carecendo de lógica e cuidado, segue divertida até hoje, especialmente por ser protagonizada por Danny Aiello.
Cohen tem uma carreira um tanto curiosa. Seus filmes mais lembrados são do cinema blaxpolitation: O Chefão de Nova York e Inferno no Harlém. Dentro do filão do terror, dirigiu Nasce um Monstro e A Volta do Monstro, e os quase cômicos A Madrasta e A Ambulância.
Sua obra mais conhecida provavelmente é o roteiro de Maniac Cop, filme de William Lustig , também escreveu Vampiros de Salem, O Retorno, que continua a história que Tobe Hooper dirigiu nos anos 1970 em Os Vampiros de Salém.
O diretor não é muito dado a cerimônias, e seu roteiro também. Não há muito trabalho em justificar a reunião entre Jason e Mo, e a partir desse ponto, eles passam a ser atacados pelos consumidores da Coisa de maneira mais direta.
Os vitimados se deformam, agem como zumbis possuídos, que regeneram instantaneamente e tem comportamento de manada, controlados por algo ou alguém que permanece em sigilo.
As cenas de pele derretida são ótimas, construídas da maneira mais sem vergonha possível, com efeitos especiais tão fajutos que (reza a lenda) não foram pagos por Cohen e sua equipe de tão ruins que ficaram.
A direção de arte de Marleen Marte e George Stoll acerta no uso das cores. Há dezenas de cenas onde as tonalidades de rosa, marrom e roxo presentes na embalagem do produto, ganham espaço. Isso se vê tanto nas luzes quanto em plataformas, paredes e nas roupas.
Os comerciais de Stuff também são ótimos, alguns fazem referências as coisas populares como hip hop, esportes e música Disco. Também tem participações especiais como uma de Abe Vigoda o Tessio de O Poderoso Chefão e Clara Peller, uma senhora que fazia propagandas da marca Wendy's. O tom de ironia faz lembrar de leve o que Paul Verhoeven faria tanto em Robocop: O Policial do Futuro quanto em Tropas Estelares anos depois deste.
Os ataques de gosma branca assustam, principalmente quando perseguem o menino. Há nela um aspecto de entidade, de ser com uma consciência coletiva, que se comunica, antecipando os possíveis sabotadores de seus intuitos.
No entanto, em vários momentos os possuídos não parecem ter clarividência sobre quem é ou não usuário, é meio confuso como a ideia de pensamento compartilhado é exposta.
Há da parte de Cohen o desejo de emular Stanley Kubrick em O Iluminado, especialmente a cena do elevador cheio de sangue, aqui substituído ingenuamente por cabanas repletas de pasta branca. O diretor presta homenagem, mas claramente não é pretensioso, é apenas reverencial, sabendo que seu produto é inferior.
Há momentos grotescos, onde personagens tacam fogo um no outro para livrar da influência da gosma, sem se preocupar se ele sobreviverá após um incêndio eu seu rosto.
O nonsense predomina não só nas cenas de sobrevivência e também nas discussões filosóficas, já que a crítica a indústria de manufaturados perde força, ao estabelecer que a Coisa é cultivada em um lago, de maneira natural, indo para laboratório apenas na fase de embalagem.
Não há preocupação em dar uma origem ou intenção para aquilo. Toda seriedade é zerada, e analisando com o peso do tempo, manter o mistério em torno disso é bom, pois mantém o mistério vivo.
Há ainda mais um arco a ser explorado, a do grupo de militares, liderados pelo coronel Spears, de Paul Sorvino, que aparece apenas nos vinte minutos finais. Ele é uma piada sobre lideranças de ultradireita, que acreditam que todo mal do mundo advém dos comunistas soviéticos.
É nesse momento que se percebe que a Coisa não se alastrou pelo mundo, já que essa fortaleza repleta de soldados sequer sabia do vício geral até que Mo chegasse. Estavam encastelados com medo dos vermelhos adentrarem a vida e estilo americano de ser.
Desse momento em diante a produção se perde no estilo filme de ação da Cannon, vira um de chauvinismo, machismo e nacionalismo barato, que culpa a KGB por todo o mal do mundo. O comentário é até esperto, mas soa bobo.
O pior é que seria fácil associar Spears aos personagens, pois ele tem uma rádio, que poderia ser ouvida por Mo e seus amigos, mas não, ele brota no enredo convenientemente, aliás como a maioria dos outros personagens, que retornam diante da necessidade do roteiro de usá-los.
Antes de terminar sua trama, ainda há espaço para o momento mais vergonhoso e maravilhoso do filme, onde Charlie, o ex-comerciante de doces, gratuitamente explode no estúdio de rádio, em um movimento que de nada serviria, uma vez que só mataria uma pessoa, o que não impediria a transmissão do segredo a respeito da Coisa.
Vale demais pela cara de pau da equipe de efeitos nesse momento de deixar algo tão grotesco ir para os cinemas desse jeito.
Muitos fãs comparam o longa de Cohen com as obras de John Carpenter, no sentido de criar um mistério no começo, e pontuar com ironia depois. De fato, o início estabelece bem as dúvidas, mas não responde muito.
Quanto a desfechos, há duas ótimas sacadas, com os mocinhos obrigando os velhos engravatados a consumir seu próprio produto, já que os mesmos queriam diluir a fórmula e lançar uma versão menos concentrada com o nome The Taste - não há limites para o capitalismo - sob a mira de uma arma, e outro, como cena pós crédito, onde pessoas traficam o que sobrou do produto, afinal, causou e causa dependência em quem o consome.
Mesmo que essas questões soem convenientes já que é difícil imaginar que a mansão onde o personagem de Patrick O'Neal deveria ter dezenas de seguranças, em prol da galhofa oitentista, dá para acreditar que um menino e um canastrão renderiam os magnatas.
The Stuff não se leva a sério, e acerta exatamente por isso. Acaba sendo uma capitulação sobre o primitivismo do consumismo, exacerbando as consequências deles, mostrando como uma criatura pode manipular as circunstâncias das crises do sistema e como é fácil usar a ganância corporativa como trampolim para dominação.