Ainda em um mundo supostamente civilizado, apesar das arruaças de um grupo de punks, o filme de George Miller estreava no fim dos anos setenta, mostrando jovens munidos de couro, dirigindo máquinas possantes e ainda repletas de cor, a busca de uma identidade visual que ainda não estava madura. O protagonista não é mostrado em close, os primeiros enquadramentos são em suas mãos e jaqueta, preparando-se para o embate que em breve chegaria.
Miller não engana seu público, seu filme - que resultaria em uma franquia até bem recebida pela crítica de cinema dos Estados Unidos - já começa com perseguições de carros, desafiando a lógica e o comum cinema hollywoodiano, sem receio de representar a violência de modo gráfico, separando o produto australiano da patuléia comum dos espécimes da época. O Interceptor de Max não é visualmente diferente do restante do corpo de policiais, mas todo seu comportamento postural é. Mel Gibson ainda estava se livrando de sua crueza, a beira do colapso da civilização mundial e da sua própria. Max somente observa os criminosos se estatelando, destruindo a si mesmos, sem qualquer esforço externo, num simbolismo enorme de que pessoas como eles, se queimariam sozinhas.
O colapso social é mostrado através das ações de Toecutter - interpretado por Hugh Keays-Byrne - e seu bando, recém assumindo o poder após a morte trágica de seu antecessor, que deflagram carros, em cenas plasticamente belas, de vandalismo a máquinas possantes e cromadas, seguidas de fortes insinuações de estupro, provando o total amoralismo dos sujeitos, mesmo que em quadros anteriores, houvesse uma clara alusão a orientação sexual homo em suas ações. Apesar de se aproximar de uma vilanização da figura homo afetiva, o efeito ao homem gay é outro, o de não aplacar nada, mostrando-os como figuras ameaçadoras, dignas do medo entregue a qualquer outro marginal, igualando-os ao que as pessoas “normativas” dos setentista julgavam habitual e ordinário.
Max, apesar de já demonstrar a predileção pela violência e assassinato, aparenta ser um homem normal, que incorre uma pequena crise conjugal, de proporções moderadas claro, uma vez que sobra amor nas cenas em que acompanha sua esposa Jessie Rockatansky (Joanne Samuel), e claro, seu pequeno filhote. Apesar da pequena crise que passa, se nota o alento que ele tem nela, e o quanto ela é a âncora que o mantém ligado a um mundo civilizado que insiste em decair.
O carrasco toma a vida de Max de assalto, usando as figuras dos opositores do modo mais cruel e dilascerante possível, em cenas de absoluto grafismo visual e crueldade mórbida. A partir do crime hediondo, o protagonista muda de postura, a começar pelo tingimento em sua máquina, saindo as cores vibrantes para enfim tingir-se de preto, remetendo ao luto e a crueza de alma que ele assume. Apesar de algumas cenas carregadas de comicidade, impingidas por seus inimigos, o tom de perseguição prossegue sério, tão imundo, cheio de graxa e cheirando a gasolina quanto o visual dos que habitam aquele mundo.
Apesar de a viuvez precoce colaborar demais para a falta de fé no sistema, Max já havia sentenciado para si um destino distante do corpo policial, motivado pela morte de seus amigos e especialmente pela inutilidade que os agentes da lei tinham sobre aquela estranha Austrália que se erguia, repleta da anarquia que tomava a Oceania e da falta de resistência governamental naquela visão de futuro, evoluído a partir do exacerbo do capitalismo, o dito “vencedor” da paranoica Guerra Fria. O cenário político se agravaria, ou no caso, se extinguiria, na bruta continuação de 1982.
As primeiras cenas do segundo episódio da saga, chamado Road Warrior, começa com uma narração em off, exibindo o paradigma que extinguiu a civilização como conhecemos, baseado na guerra por petróleo, a especiaria do mundo moderno, que foi a desculpa para o estopim de uma guerra de proporções dantescas, bem mais acachapantes que as vistas nos episódios da Primeira e Segunda Grandes Guerras. Restava aqueles que tinham condição de fugir, por estarem motorizados, o estrondo do motor, avatares do grito de independência daquele estilo de vida decadente, repleto de poeira e pelos grisalhos. Max era um desses “felizardos”, que insistiam em resistir aos neo-punks coloridos que faziam das poucas roupas seu estilo pessoal, além é claro de amis paralelos ainda com o comportamento homo afetivo, livre das hipocrisias comuns a atualidade, mesmo a dos anos pós 2010.
No segundo filme, o cotidiano de Max se resume a somente sobreviver, vagando pelas estradas em busca de suprimentos, se desassociando de qualquer resquício de humanidade e companhia, mas não deixando de se compadecer dos atos maléficos dos malfeitões, que insistem em saquear, estuprar e abusar de homens, mulheres e quaisquer seres viventes, repetindo a exaustão a ultra violência vista no livro de Burgess e no clássico cinematográfico kubrickiano Laranja Mecânica, ainda que a ambientação seja bem mais desolada neste Mad Max 2: A Caçada Continua.
A estrutura de vida não é mostrada em detalhes explícitos ou didáticos, tudo o que se sabe é por pura observação, baseada nos diálogos das personagens. Nota-se incentivo a violência sexual e tráfico humano, como atos comuns dentro do comportamento rotineiro dos habitantes daquelas estalagens rústicas.
A exagerada violência piora em níveis drásticos neste momento, exagerando em grafismo e sangue os espectros de morte. Cada detalhe da produção artística faz lembrar o quão cru e visceral é aquele novo mundo, e o quanto essa nova ordem é pautada na bizarrice que seria um futuro distópico pautado no capitalismo. Mesmo as perseguições de carros contém um espírito mais rústico, em nada semelhante as pirotecnias visuais dos filmes de ação atuais, apresentando uma textura muito mais palpável aliás, fruto do extremo esmero em construir uma atmosfera diferenciada, por parte dos realizadores.
O vilão de Homungus é bem diferente do anterior, especialmente no quesito nível de ameaça e carisma. Kjell Nilsson interpreta o brutamontes que usa máscara de hockey, além visual amalgamado entre o tipo físico dos personagens de Masters of Universe e o underground drag queen dos Estados Unidos. Apesar do largo desperdício de gasolina, feito por seus capangas, que o fazem até para se vangloriar diante de seus inimigos, Homungus consegue transparecer uma calma que não é assemelhada por nenhum outro personagem, o que o diferencia de todo o resto dos homens. A vilania do personagem move Max rumo a maiores níveis de luta pela sobrevivência, e ajuda fundamentar um novo grupo social, que se envolve através dos espólios do que sobrou dos opositores do brucutu, o ódio aos seus modos espartanos foi a liga que faltava para uma reunião mais assertiva dos seguidores da lenda do Road Warrior.
O advento do dinheiro estadunidense na franchise só ocorreu no filme três, Mad Max Além da Cúpula do Trovão, que teve a régia dividida entre Miller e George Ogilvie. Nos primeiros takes grandiosos, nota-se o enorme acréscimo orçamentário, bem como uma escolha diferente para os planos de filmagem, mais concentrados em closes, detalhes ou planos americanos, explorando as minucias, mais acurados graças a maior quantidade de dinheiro, não que resulte em melhores pontos.
A miscelânea de personagens estranhos aumentou enormemente, mas o estilo de mostragem destoa dos outros filmes, resultando em pessoas grotescas convivendo com Max, a começar por The Master (Angelo Rossito) um anão tirânico e seu assecla brutamontes The Blaster (Paul Larsson), que obrigam Max a entrar nas brigas dentro do domo, muito por causa de sua recente parceria Aunty Entity (Tina Turner). Mesmo as figuras que atemorizam os aldeões têm seu caráter revelado, como as figuras grotescas e carente que são, tendo seu aspecto vilanesco profundamente reduzido e ridicularizado, mesmo com a comiseração do personagem título.
Outra tradição é corrida no terceiro episódio, que a exemplo do outro, também tem em Max um coadjuvante da própria história, já que é o cenário e a população em geral que tem os maiores enfoques de roteiro e das lentes. O conceito do menino feral, que narrava o momento anterior da saga evolui neste, fazendo com que o herói falido se encontre com um grupo de infantos, ávidos por um lugar onde seu alento pudesse ganhar contornos reais. Os jovens o chamam de Capitão Walken, que seria o resultado de uma profecia, que suas mentes confusas associaram ao Road Warrior.
O poderio feminino, visto em Mad Max A Estrada da Fúria já foi prenunciado no papel de Tina Turner, na terceira aparição de Rockatansky, aludindo de novo ao inóspito e mostrando em vias de fácil compreensão o futuro que o planeta teria caso os conflitos imbecis entre soviéticos e estadunidenses prosseguissem, fazendo uma crítica social as ideologias seguidas de modo torpe, mostrando que caso não haja uma preocupação genuína com o social, em breve, tudo estaria cerceado, inclusive os recursos básicos do planeta. A fala ecológica tem muito mais força do que os filmes propaganda “eco-chatos”, usando claro do medo para representar uma alternativa de pós-apocalipse, mas sem apelar para tantos clichês, ao contrário, gerando um sem número desses após seu lançamento, vide Waterworld e Crepúsculo de Aço.
Mad Max passa por um reformulação, com um novo interprete, em uma imaginação feita por seu próprio criador, George Miller e somente lançada em 2015, após uma conturbada edição e feitoria. Apesar das muitas críticas e dos argumentos imbecis de que o papel de Tom Hardy invalidava a masculinidade suprema – fator que somente pode ser encarado como piada de analistas inseguros – sua entrega enquanto protagonista foi plena, não causando qualquer transtorno a respeito da ausência de Gibson no filme, elaborando um novo campo de aventuras para aquele caótico novo mundo.
Com discussões atuais e ainda mais adultas, levando em consideração, claro, o público ávido pelo massavéio, mas ainda assim maturando todo seu conteúdo, o filme segue interessante, retornando com esplendor, magia e violência extrema, em um nível de qualidade típica das aventuras de Mad Max.
perfeita análise do drama do guerreiro da estrada