Duelo em Hiroshima é um filme japonês que faz parte da saga conhecida no ocidente como Yakuza Papers, sendo chamada de Documentos da Yakuza ou série Yakuza no Brasil. Lançado em 1973 com direção de Kinji Fukasaku e com elenco recheado de nomes conhecidos é uma história sobre violência urbana, criminalidade e ação nas ruas.
A trama se passa cinco anos após o termino da segunda guerra mundial e esse é o segundo volume da cinessérie, logo após Luta Sem Código de Honra, dirigido pelo mesmo diretor e lançado no mesmo ano, com o primeiro chegando aos cinemas em janeiro e esse analisado, estreando em 28 de abril.
O grupo de atores é repleto de gente conhecida, como Kinya Kitaoji, que faz o bandido Shoji Yamanaka, Bunta Sugawara que retorna como o anti-herói Shozo Hirono e o artista marcial Shinichi Chiba, mais conhecido como Sonny Chiba, que aqui faz um papel de gangster, como Katsutoshi Otomo, um personagem bem diferente dos heróis que ele costumava fazer.
A narrativa segue o ponto onde o primeiro parou, mostra a formação de novos grupos de bandidos, dessa vez na área de Hiroshima, além da cidade de Kure. Essa continuação segue mostrando a Yakuza de tempos mais antigos, cinco anos após a segunda guerra mundial, embora as primeiras cenas contenham um grande recordatório, que remonta aos anos 1940.
Há uma grande diferença de estilo entre esse o primeiro filme, mesmo que ele parta das mesmas cabeças pensantes entre uma obra e a outra, já que repete não só o realizador como também os escritores. Uma grande diferença certamente é o panteão de personagens, já que o personagem de Sugawara Bunta não é mais o protagonista, apesar de ter uma grande participação aqui, servindo como um elo entre as obras.
Há quem defenda que Takeshi Kitano se inspirou bastante nessas obras para fazer sua série Outrage, a começar por O Ultraje, filme de 2010 que lida com a temática da Yakuza moderna.
Entre os rostos mais conhecidos estão obviamente Bunta, também Chiba, que está particularmente engraçado, meio bufão, utilizando jaquetas de couro e óculos escuro, liderando um grupo pequeno de marginais que se vestem de maneira espalhafatosa.
Também há a cantora e atriz Meiko Kaji, a protagonista de Lady Snowblood: Vingança na Neve, que faz uma personagem bem diferente das damas fatais que geralmente entregava, interpretando a frágil Yasuko Uehara.
Também se destaca Mikio Narita que já trabalhou ao lado do Sonny Chiba, em obras como Mensagem do Espaço. Também há o veterano Yoshi Katô de Lute Zatoichi, Lute, que esteve com Kaji em A Maldição da Mulher Cega.
O título original do filme é Hiroshima shitô hen, mas ele é mais conhecido pelo nome em inglês Battles Without Honor and Humanity: Deathmatch in Hiroshima ou como The Yakuza Papers, Vol. 2: Deadly Fight in Hiroshima especialmente no Canadá e no lançamento em DVD nos Estados Unidos, onde também é chamado de Hiroshima Death Match ou Deadly Fight in Hiroshima. Na França seu nome é Qui sera le boss à Hiroshima? e Смертельная схватка в Хиросиме na União Soviética.
O longa teve cenas filmadas em Kure e Hiroshima City, também em Iizuka, Fukuoka e em Motomachi, Kobe, Hyogo. Foi produzido e distribuído pela Toei Company.
Kinji Fukasaku é um diretor conhecido por transitar entre vários gêneros, mas até então, havia feito Guerra de Gangues em Okinawa, Sob a Bandeira do Sol Nascente e Mafioso de Rua, além de obviamente Luta Sem Código de Honra.
O roteiro é de Kazuo Kasahara, roteirista de toda a série e também de O Jogo Presidencial. O argumento é de Koichi Iiboshi, que fez a história base dos cinco volumes, incluindo os futuros Guerra por Procuração, Estratégias Policiais e Episódio Final.
A partir daqui falaremos sobre as muitas tramas do filme. Não há nada muito revelador, mas se o leitor se incomodar com spoilers, recomenda-se ler depois de assistir o filme. O aviso está dado.
A narrativa começa após a simbólica e emblemática vinheta da Toei, em uma praia em que ondas batem na areia. Logo após ela começa um recordatório, que parte de 1945, quando Hirono e um grupo de jovens retornou da guerra.
Nesse monólogo se reflete brevemente de como a violência se tornou uma válvula de escape para o ódio no país. Também fala do clã liderado por Yamamori, que tomou o controle da cidade de Kure, após batalhas com Hirono, que ao final de uma convivência turbulenta, repleta de brigas internas, deixou o clã.
Ainda em meio a essa fala introdutória, se chega a 1950, na cidade de Hiroshima, onde o clã, Muraoka adquiriu muito poder, sob a liderança de Tsuneo Muraoka, personagem de Hiroshi Nawa.
Também há nesse cenário o tempero de uma época pós-guerra, mas não a mundial e sim o conflito no país vizinho, a Coréia, que envolveu os jovens alistados japoneses.
Fukasaku é pontual ao mostrar a juventude transviada como consequência do ingresso do país em conflitos externos. São exibidas jogatinas, exploração de prostituição, uso de entorpecentes, todas atividades típicas da criminalidade ocidental.
Não há muito gore nesse início, a direção é esperta, eventualmente pausa a ação e congela a imagem, permitindo que o público julgue e entenda a violência como quiser.
Outra marca curiosa é a apresentação de personagens com cartelas explicativas, que dão o nome do sujeito e sua função na cadeia de criminosos, tal qual ocorreu em Lady Snowblood, semelhante também a homenagem que Quentin Tarantino faria em vários de seus filmes, especialmente Kill Bill e Bastardos Inglórios.
Entre os personagens introduzidos, se destaca Shoji Yamanaka, um futuro membro do clã Muraoka, que é interpretado Kitaoji e é apresentado como um jogador inveterado.
Ele perde o controle de suas próprias faculdades mentais, no meio da jogatina e acaba matando pessoas que estavam no mesmo ambiente de apostas que ele, cortando várias delas com uma espécie de cutelo. O destino desse novo personagem cruza com o de Hirono, na prisão. Esse último cumpre pena depois de ter matado um yakuza.
Outro personagem que recebe destaque é Katsutoshi Otomo, futuro chefão do clã Otomo, interpretado pelo membro mais famoso do elenco, o lutador Shinichi Chiba.
Aos poucos é mostrado como ele ascende ao poder em seu clã, também mostra o sujeito se envolvendo com bandidos de baixo escalão, fazendo exibições agressivas e infantis, eventualmente até se exibindo diante da imprensa, conversando francamente com jornalistas e entrevistadores, como se não tivesse nenhum débito com a sociedade.
Se na América o jornalismo é chamado de quarto poder, no Japão não parece ser exatamente isso, ao menos não nessa demonstração da sociedade nipônica nos anos 1950.
Embora tenha importância, especialmente no sentido de divulgar o que esses grupos de poder tem a dizer para a população. Há uma cena emblemática, onde um dos asseclas de Otomo resolve se exibir, mostrando uma arma para os entrevistadores, que até tiram fotos dele, posando junto a peça.
A postura imatura e fagueira dos bandidos e o exibicionismo lembram, de certa forma, a mesma vontade de aparecer que contraventores e foras da lei teriam no cinema, como o bando de Zé Pequeno em Cidade de Deus, que posou para um foto do personagem Buscapé, ou na vida real, como recentemente aconteceu com alguns bicheiros, que deram depoimentos para a série documentário Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho do canal de streaming Globoplay.
Entre os personagens apresentados também aparecem Choji Otomo (Yoshi Katō), o presidente do clã, Toshio Kuramitsu (Kinji Nakamura), futuro vice-presidente e Keisuke Nakahara (Hideo Murota), subchefe do clã.
Da parte dos adversários de Otomo são mostrados Tsuneo Muraoka, o chefe dessa "família" e Hiroshi Matsunaga (Mikio Narita), capitão do clã, mas não é dado muito tempo de tela para desenvolver eles como personagens.
Nesse ponto a narrativa imita os jornais da época de lançamento, fazendo breves resumos das participações desses, além de falar como eles cuidam de suas famílias bandidas, mas não dá lastro para entender os motivos e os trâmites do cotidiano.
Quanto ao nível de ação não há do que reclamar, os confrontos melhoram de qualidade e a adrenalina sobe alguns degraus em sua exploração. Há cenas muito boas de confusão e luta coletiva, como a batalha de 1955, que deixou 2 mortos e 8 feridos.
O registro do cinematógrafo Sadaji Yoshida normalmente é caótico, recheado de embates agressivos, que imitam bem o clima de insegurança daquele cenário.
O país está amadurecendo, se tornando um lugar mais violento e em ebulição, enquanto a série Documentos da Yakuza se torna um alvo de denúncia, de como o passado recente da nação explica a crescente da violência urbana.
Para plateias mais novas, talvez esse seja um filme de digestão difícil, já que seu ritmo é diferente do cinema de ação da década seguinte. A estética não ajuda e a montagem é quebrada, cheia de interrupções para retratar os fatos históricos que complementam a narrativa.
O estilo que flerta com o documentário também é de se estranhar, especialmente se colocar em perspectiva as cenas de ação e os momentos expositivos e explicativos.
Outro fator curioso é que boa parte dos bandidos - especialmente os que cercam Sonny Chiba - usam roupas muito coloridas, se vestem de maneira espalhafatosa, com trajes de cores vibrantes e tonalidades gritantes, lembra o que seria comum entre filmes de gangsteres, desde os latino-americanos como Tony Montana em Scarface, quanto o visto no clássico Cassino de Martin Scorsese, nos tons pastéis que o personagem de Robert DeNiro veste.
Há uma diferença comportamental bem clara entre os clãs, enquanto Otomo é exagerado, dado a mídia e vaidoso, seu adversário, os Muraoja são quietos, bem mais discretos, quase low profile. Mesmo sem grande desenvolvimentos dramáticos se percebe esse esforço.
Há alguns cenários curiosos, como Motomachi, em Hiroshima, uma comunidade carente, conhecida como "Favela Bomba Atômica". Essa construção conversa bem com o que já se estabeleceu em Luta sem Código de Honra, expandindo aqui, apesar desses trechos serem curtos.
No entanto o principal chamariz sem dúvida são os momentos de mortes. A hostilidade é tamanha entre os bandidos que não se poupa um inimigo sequer em um momento de intimidade, como com Kunimatsu Takanashi (Asao Koike), morto enquanto transava com uma mulher.
O filme se encaminha para um desfecho melancólico, mostra personagens coadjuvantes, gente que cerca os bandidos, exibe o sofrimento de quem não pratica crimes, mas simplesmente convive com gente que o faz Por mais que a vida bandida seja uma escolha de quem participa, ninguém, nem mesmo um vilão é ausente de laços sanguíneos e afetivos, sejam amorosos, de amizade ou familiares.
Documentos da Yakuza é uma cinessérie que evolui ao longo dos seus episódios e Fukasaku evolui também como diretor, amadurecendo suas produções, dando novos e potentes ingredientes em meio a exploração temática da violência urbana como mola motor de um país desenvolvido.
Duelo em Hiroshima é bem diferente da obra anterior, mas é uma boa continuação. Expande o conceito, apresenta novos traços da mitologia e acrescenta muita violência e drama a fórmula geral, embora não exagere muito nos dois aspectos, ao menos não em comparação com seus pares.