Nos idos dos anos 1970 filmes sobre máfia voltaram a moda, muito por conta da literatura de Mario Puzo e também graças ao filme O Poderoso Chefão, que Francis Ford Coppola lançou, que adaptava o principal livro do autor italiano citado.
Essa questão modal atingiu também o cinema oriental, e em 1973 começou a saga cinematográfica conhecida como The Yakuza Papers, ou Documentos da Yakuza, a famosa Série Yakuza.
Dirigida pelo mestre do cinema de ação Kinji Fukasaku, o primeiro exemplar dessa cinessérie é Luta Sem Código de Honra, do original Jingi Naki Tatakai.
Normalmente, o longa é encontrado com o nome em inglês The Yakuza Papers, Vol. 1: Battles Without Honor and Humanity, ou apenas Battles Without Honor and Humanity, e mostra um cenário de Japão pós-guerra, nos anos 1940, que é um cenário perfeito para a chegada do crime organizado, que toma das ruas do país.
Jingi é a palavra em japonês que expressa o código de honra da Yakuza, ou seja, o filme narra a história anterior ao código moral e de conduta da organização. O roteiro de Kazuo Kasahara e Koji Shundo se baseia nas matérias do jornalista Kōichi Iiboshi.
O foco dramático é no veterano de guerra Shozo Hirono, interpretado por Bunta Sugawara, um sujeito que já tem seus próprios problemas por conta da experiência após sua saída do campo de batalha, e que prestava serviços gerais para a família Yamamori.
Nesse interim ele sobe, cresce, se envolve em mais questões no serviço entre as famílias da Yakuza. No seu procedimento há um ideal honrado, uma ética rígida e uma vocação quase religiosa, fato que não é compartilhado pelos outros contraventores, já que essa é uma era pré-Jingi.
Levando em conta o código de honra, dá para inferir que essa é outra semelhança entre essa produção e os filmes de máfia, já que na Cosa Nostra a lei da Omertá (ou a lei do silêncio), prepondera.
O declínio dos mafiosos americanos se deu quando as prisões passaram a ter uma longa duração, já que penas por tráfico são maiores, e é com o tráfico de drogas no Japão que a Yakuza passa a ter maior poder e agressividade pelo mapa. As referências cruzadas se invertem em lógica.
Essa é uma adaptação de uma série de artigos de jornal que foram editadas a partir de um manuscrito original de Kozo Mino, sujeito que foi da irmandade Yakuza de fato.
Vale lembrar que essa obra se afasta do tradicional no que tange o cinema sobre gângsteres japoneses, que em sua maioria, são ambientados no Japão pré-guerra, como os famosos filmes de Ken Takakura, dos anos 60, o Contos Brutais de Honra (conhecido como Brutal Tales of Chivalry), que também teve uma série de filmes, e mostra uma organização mais antiga da Yakuza.
O filme se dedica a mostrar como funcionava a cadeia alimentar da criminalidade japonesa, sob o olhar da mídia, já que é filmado em estilo de telejornal, com uma pegada inegavelmente documental. A trama começa em 1946, com uma narração que atravessa a trama, e traz cartelas de apresentação para os personagens.
A ideia é mostrar o Japão antigo como uma terra de pecados, onde até eventos como violência sexual eram comuns. Já no início é registrada um abuso, com a câmera balançando na mesma frequência da extrema violência, emulando a condição da maldade daqueles tempos, de um país que chora suas lágrimas e mágoas, cuja violência só aumenta com o passar dos anos.
A territorialidade provoca nos criminosos a liberação dos instintos mais primitivos, e isso é visto já no início. Com menos de cinco minutos, dois integrantes dos Yamomori, tem seus braços cortados por rivais, do clã Doi. Servem de exemplo, caem diante do povo para mostrar quem manda em Hiroshima.
A ação é pontuada pela trilha sonora. A música composta por Toshiaki Tsushima tem belos metais, com trompetes e trombones evocam um sensacionalismo ao estilo dos bangue-bangue à italiana, mas com uma identidade própria, que também guarda semelhanças com os seriados de matinê japoneses.
Esse é possivelmente o elemento que que rompe de maneira mais visceral o estilo de documentário do filme. Esse formato inclusive serviria para inspirar até produções brasileiras, como Cidade de Deus e Tropa de Elite nos anos 2000, que também apelam para um registro mais jornalístico mirando a visceralidade.
Sugawara era um ator bastante requisitado. Além de ter feito todos os cinco filmes da saga Yakuza Papers, esteve também em uma nova série de filmes, que veio após o sucesso dessa, chamada "New Battles Without Honor and Humanity", sendo essa uma trilogia.
Na prisão, seu personagem conhece Hiroshi Wakasugi, um capitão do clã Doi, interpretado por Tatsuo Umemiya, e ela se afeiçoa por esse companheiro de cela, mesmo com a rivalidade entre as famílias.
Wakasugi tem um plano de ser retirado da prisão através do hospital, e para isso, faria uma tentativa de suicídio, a fim de ser liberado, para tentar arrumar uma pessoa para pagar a fiança do amigo. É uma atitude agressiva, nonsense e rocambolesca, faz pouco ou nenhum sentido, e que dá a medida do quão insana é a atmosfera dessa época e cenário.
A reunião das famílias de bandidos chega a ser engraçada. Os personagens usam roupas supostamente finas, mas malfeitas, reflexo das exportações precárias de um perdedor da 2° Guerra.
Essa sequência é montada de uma maneira tão sensacionalista que beira a artificialidade. Rola muito dinheiro exposto, e as brigas entre os soldados rasos são histriônicas, com muitos gritos. Os adeptos agem como batedores de carteira imaturas e novatos.
Mais do que uma peça que narra histórias de criminalidade, esse é um filme que busca ser um registro da realidade, que passa por momentos pontuais da realidade nacional.
Isso se vê além da estética documental e do registro dos mortos no conflito do crime organizado, e se fortalece especialmente ao falar da Guerra da Coréia nos anos 1950 e da colaboração do governo japonês aos militares estadunidenses, fornecendo munição.
A nova guerra deu vazão a novos e péssimos hábitos, como o uso de Philipon, droga que carrega esse nome possivelmente em referência ao seu país de origem, as Filipinas.
O tráfico da substância gerou dinheiro, e aumentou a violência, curiosamente coincidindo com o declínio da Cosa Nostra, com a diferença de que nos Estados Unidos, as drogas negociadas eram cocaína e heroína, e aqui eram metanfetaminas.
A montagem parece confusa graças a ideia de experimentação. Fukasaku usa esse modo anárquico de narrar propositalmente. Uma das suas intenções claramente é a de emular a bagunça que era a vida bandida na terra do sol nascente no fim da primeira metade do século XX.
A saga se desenrolaria de forma mais violenta, e com momentos ainda mais épicos, mas já nesse primeiro tomo da saga se percebe o declínio moral e a transformação pela qual o protagonista passa.
Shozo começa como um homem vítima das circunstâncias, e que aos poucos, se molda a uma nova realidade.
Ele era um homem que sabia o seu lugar, que tinha uma visão bem lúcida de como o mundo funcionava, e seguia bem apesar de claramente ter traços de ingenuidade. Sabiamente ele as deixa de lado a partir do momento que a violência invade os seus dias.
O protagonista se fortalece, endurece sua casca, se torna um homem tão mal e cruel quanto aqueles que via com maus olhos, se torna exatamente o que ele condenava. Em determinado ponto, sai de cena jurando a Yamomori que ainda restam algumas balas na arma, caso o mesmo resolva atacá-lo.
Luta sem código de honra é uma boa introdução ao cenário do cinema de ação e drama japonês. É uma obra agridoce, violenta e cheia de curvas dramáticas, e poetiza a construção da Jingi e do modo civilizado de agir como criminoso no Japão.