Cinerama: Martin Scorsese - O Homem por trás da cortina puxando os fios

Um médico entrou correndo no quarto, com uma amostra de sangue nas mãos e gritando: “Este sangue é seu?”

“É”, respondeu Martin Scorsese, deitado em uma cama, secando o sangue que jorrava de suas narinas.

“Você sabe que não tem mais plaqueta?” – reforçou, ainda em desespero, o médico.

 “Não sei o que isso significa.”

 “Significa que você está sangrando internamente.”

 “Quero voltar ao trabalho.” – disse Scorsese já levantando da maca.

 “Você não pode ir a lugar algum, pode ter uma hemorragia cerebral a qualquer momento.”

 O estado de Scorsese parecia o resultado da interação entre sua medicação para asma, outros remédios que ingeria e a cocaína malhada que aspirara durante o fim de semana no festival de cinema de Telluride. Estava pesando uns 50 quilos. O médico suspendeu todos os outros remédios e o encheu de cortisona. Puseram-no num quarto suntuoso que havia sido ocupado pelo xá do Irã, mas Scorsese não conseguia dormir, e nas primeiras três noites ficou acordado vendo filmes, entre eles, muito a propósito, O Médico e o Monstro. Só então a cortisona fez efeito, e as plaquetas começaram a subir, parando a hemorragia.

“Foi horrível”, relembra Robbie Robertson, ex-guitarrista do grupo The Band e grande amigo do diretor, que morava com ele na época: “Quando Martin chegou ao hospital, ele sangrava pela boca, pelo nariz, sangrava pelos olhos, pela bunda... Estava semimorto, e encontrara um médico que lhe disse com toda clareza, que ou ele mudava sua vida ou ia morrer. Nós sabiamos que tínhamos que mudar. Nossas vidas eram extremas demais. Os riscos eram absurdos. Eu voltei pra minha família na esperança que minhas tolices fossem esquecidas”.

Robert De Niro, é claro, foi ver Scorsese e disse: “Qual é o seu problema, Marty? Você não quer viver pra ver sua filha crescer e se casar? Você vai ser mais um desses diretores descartáveis que fazem uns dois bons filmes e pronto, acabou?”. O cineasta, ainda deitado, olhava para os cantos se encolhendo e sabia onde De Niro queria chegar. Bob olhou para Martin seriamente e se sentou ao seu lado sem tirar seus olhos do pálido amigo a sua frente e mudou o assunto para “Touro Indomável”, dizendo: “Sabe de uma coisa? Vai dar pra fazer esse filme. Sei que podemos fazer um trabalho maravilhoso. Vamos ou não vamos fazer esse filme?” Scorsese respondeu: “Sim.” Ele finalmente tinha achado a perspectiva que buscava: o impulso autodestrutivo, o sofrimento gratuito imposto de maneira tão banal e injustificado a todos a sua volta. Ele pensou: eu sou Jake LaMotta, agora encontrei o vínculo que precisava, agora sei sobre o que é o filme.

Martin Scorsese

O homem por trás da cortina puxando os fios

Se Scorsese fosse um personagem de filmes, seria um personagem de um seus filmes: Nascido em Little Italy no Lower East Side de Nova York, Martin era o típico filho de imigrantes Italianos que morava em um apartamento quente e sem elevador nas ruas sujas e cheias dos arredores de Elizabeth Street. Seus pais eram trabalhadores e davam duro. Seu pai, Charlie, era alfaiate e sua mãe, Catherine, costureira. Era o filho mais novo do casal que tinha apenas mais um filho, sete anos mais velho, Frank. Diferente dos outros meninos de sua idade, não era do tipo “descolado”, que conhecia bem as ruas; pelo contrário, Scorsese era fraco, ruim com esportes, altamente alérgico e asmático. Sua alergia a animais era tão grave que toda vez que afagava um cachorrinho, corria sérios riscos de vida. Todas essas limitações tornaram Martin um garoto quieto, muito introvertido, o que resultava em seu péssimo rendimento escolar e sua indisposição para qualquer coisa que não fosse ir a um surrado cinema, onde assistia a classicos como “Como era verde o meu vale”, “O delator”, “As Vinhas da Ira” e tantos outros de John Ford. Ao chegar em casa, sua segunda preferida atividade era desenhar seus “filmes imaginários”, que eram sempre épicos medievais que contavam inclusive com a cartela “Dirigido por Martin Scorsese”: “Quando uma criança vai ao cinema, não sabe que existe alguém atrás da câmera, alguém ‘puxando os fios’, parece que os atores fazem tudo sozinhos. De repente, você percebe: ‘Perai. Isso é lindo. Esse nome aparece toda hora. Esses filmes parecem ser sobre a mesma coisa. Parece que esse tal Ford é o cara que faz todos esse filmes, todas essas histórias’. Foi quando eu descobri que existia alguém por trás de tudo aquilo que me fascinava.”

Ainda em dúvida sobre o que fazer quando crescesse, não sabia se queria ser desenhista, se queria fazer filmes ou se queria ser padre, afinal: “Tudo que eu mais tinha contato eram Gânsters e Padres, e quanto à primeira opção eu tinha certeza que não queria ser, afinal, meu pai fazia questão de nos contar toda vez que alguém morria nas ruas por causa de brigas entre gânsters ou porque se meteram com gânsters. Não era algo que eu queria pra mim”.

Constantemente reprimido por seu pai, super-protegido por sua mãe e humilhado por seu irmão mais velho, que tinha raiva da super atenção que Martin recebia por estar constantemente tendo ataques de asma, sua adolecência seguiu e ao sair do colegial, Scorsese entrou para um seminário e estudou para ser padre, mas movido por uma paixão obsessiva pelo cinema, matriculou-se na New York University em 1960. Era um mundo totalmente novo para o garoto de 19 anos: “Eu vinha de Lower East Side, onde meu pai não tinha dinheiro nem para comprar uma câmera 8mm, e não podia fazer como os outros garotos que tinham câmeras de 16mm e faziam seus filminhos nas casa de campo deles. Mas a diferença era que eu tinha algo a dizer e consegui equipamento para usar.”

O amargo/ doce começo:

Na NYU, Scorsese ficou fascinado com Haig Manoogian, professor do curso de Televisão, Cinema e Radio que ensinava seus alunos a fazer filmes sobre suas vidas, sobre aquilo que conheciam. Ele dizia: “Digamos que você saiba como se come uma maçã. Tente fazer um filme de seis ou sete minutos sobre isso. É muito dificil!”. Influenciado pelo neorrealismo italiano e o movimento documentarista americano dos anos 30, Manoogiam discorria sobre os filmes de Paul Strand, Leo Hurwitz e Pare Lorentz, diretores que embelezavam a imagem ao máximo, que acreditavam em composição e iluminação imaculadas, mas Scorsese também absorvia o estilo de filmagem espontânea do movimento cinema-verdade proposto por Donn Pennebaker e Ricky Leacock, que reforçavam o filmar exatamente o que está ao seu redor. Esse realismo viria a aparecer claramente em seus filmes estudantis e depois isso seria reforçado em sua participação em “Woodstock” de 1970 e mais tarde na aspereza de “Caminhos Perigosos”, “Taxi Driver” e “Touro Indomável”.

Marty logo tornou-se o astro da turma. O diretor Jim McBride certa vez disse: “Ele estava nun nível acima de todos nós. Citava filmes, descrevia-os tomada a tomada. Enqunto nós ainda estavamos quebrando a cabeça, tentando achar a abertura correta do diafragma, ele já estava fazendo pequenas obras-primas.” Apesar de sua paixão e o evidente talento, as perspectivas para Scorsese eram minguadas. “Realisticamente, tudo o que eu podia esperar era fazer um curta e talvez trabalhar para a USIA – United States Information Agency, agencia de relações públicas do poder executivo norte-americano. Mas eu estava determinado a fazer filmes, projetos pessoais, sobre a minha vida.”

E para provar sua determinação, Marty se esforçou muito e conseguiu realizar: “What's a Nice Girl Like You Doing in a Place Like This?” (1963), “It's Not Just You, Murray!” (1964) e “The Big Shave” (1967), esse último mais conhecido e premiado, embora “It’s Not Just You, Murray!” tenha também sido muito bem recebido pela crítica dos festivais de curtas-metragens. Todos eles mostram uma preferência clara, um modo muito pessoal de se fazer cinema e uma linguagem bem única, que seria ainda melhor desenvolvida e ficaria conhecida como uma marca registrada de Martin.

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Scorsese também estava lutando desde 1965 com um projeto chamado “Quem Bate à Minha Porta?”, para o qual, durante o verão, já filmara uns setenta minutos. Com Harvey Keitel como ator principal, que na época trabalhava como Estenógrafo Judicial, o filme levou quatro anos para ficar pronto. Os atrasos e empecilhos tornaram a filmagem quase impossível: “Vivíamos começando e parando”, ele relembra. “Filmávamos uma cena e, dois meses depois, quando queríamos refilmar um trecho, os atores tinham cortado o cabelo ou estavam com um emprego novo e não podiam trabalhar no filme. Era um pesadelo”.

Apesar de sempre lhe dizer que deveria arrumar um emprego de homem e parar de fazer “essas coisas sem futuro de cinema”, o pai de Scorsese ajudou em seu esforço para fazer “Quem Bate à Minha Porta?” e pagou de seu bolso a conta do laboratório de todo o filme. A parte da grana necessária para as gravações, Scorsese conseguia fazendo alguns bicos de edição e também com o trabalho de instrutor em um curso de filme em 16mm, onde deu aula para Oliver Stone, Michael Wadleigh, Thelma Schoonmaker e tantos outros: “Eram 30 dólares por semana que salvaram a minha pele. Logo depois comecei a dar aulas mesmo na NYU e aí o salário aumentou para 55 dólares por semana, o que salvou as diárias de “Quem Bate” e a vida de minha mulher e minha filha do primeiro casamento – 1965 -1971. Eram anos difíceis mas novamente Haig havia salvado minha pele e me posto nos trilhos.”

Quem bate à Minha Porta?” era uma imersão na vida de qualquer rapaz que passou sua vida nas ruas do velho bairro e não deu para ser gângster, é o caso de J.R (Harvey Keitel), que é um jovem tipicamente Ítalo-americano/católico, que encontra uma jovem por quem se apaixona perdidamente, por isso decide não transar com ela, para seguir os princípios católicos que lhe foram plantados desde muito cedo por sua família, mas pouco tempo depois descobre que a mesma foi violentada sexualmente há algum tempo, o que o leva a entrar em parafuso, questionando seus princípios como pessoa e seus princípios como católico praticante. Trata-se de um filme que só poderia ter sido feito por uma pessoa que conhece exatamente como aquele ambiente é, um filme sobre coisas que acontecem.

As marcas estavam lá, as músicas de rock, a aspereza visual, a violência, as câmeras lentas, os ousados takes e é claro a edição apurada, desta vez por Thelma Schoonmaker, que se tornaria editora de todos os seus filmes um pouco mais tarde. Scorsese era um diretor e era talentoso.

Com o filme pronto, mas ainda sem distribuidor, precisou inserir uma cena de nudez para atrair um que lhe fez a oferta. A cena não dizia muito e nem tinha peso na história, mas era o que iria garantir que o filme teria telas para ser projetado, o que deu certo, mas graças ao milagroso acordo que ele conseguiu assinar com Harry Ufland, agente que trabalhava para a William Morris – famosa agência de talentos – e o filme foi lançado, foi bem recebido pelos críticos e recebeu uma entusiasmada análise do famoso Roger Ebert, que disse: “Um trabalho que é absolutamente genuíno, artisticamente satisfatório e tecnicamente comparável aos melhores filmes sendo feitos em qualquer lugar. Não tenho quaisquer reservas em descrevê-lo como um grande momento nos filmes americanos”. Martin sorria de orelha a orelha. Seu filme estava na frente e maior do que “Bande à Part” de Godard nos letreiros do “Chicago Film Festival” – no qual saiu vencedor – e quando Jay Cocks, amigo de Scorsese e crítico na época, conseguiu que John Cassavetes assistisse “Quem Bate”, Martin alcançou seu maior momento como realizador: “Esse filme é tão bom quanto ‘Cidadão Kane’. Não, é melhor que ‘Cidadão Kane’, tem mais emoção”. Marty quase desmaiou: “Ele não podia acreditar que o cara que o levou a fazer cinema – depois de assistir a “Shadows” de 1959 – estivesse dizendo essas coisas a seu respeito”, Cocks recorda. “E John falou isso com toda a sinceridade, e daquele dia em diante passou a gostar de Marty como um filho”.

Martin participou ativamente da produção e edição do famoso documentário “Woodstock” onde esteve ao lado de Thelma e Michael Wadleigh dirigindo os operadores para um registro apurado das sete câmeras que estavam no palco naquele imenso evento: “Inicialmente combinamos de ir lá exclusivamente para registrar alguns pedaços e curtir os shows, mas quando pensamos estávamos com uma base para recarga das câmeras, com os sete operadores trabalhando loucamente e seguindo nossas instruções com precisão e com Thelma na mesa de luz junto de Chip Monck que era o melhor iluminador que se tinha notícia na época, pressionando ele para nos dar mais luz em algumas faixas. Era uma loucura. Não nos mexemos por três dias, precisávamos de todos para tudo, para conseguir comida e etc. Chegou uma hora que não conseguíamos nem comer, e aí chegaram alguns hambúrgueres. Deus, nunca vou esquecer daqueles hambúrgueres, que na verdade era apenas um para cada, mas já era o bastante, pois também estávamos possuídos por aquela energia fantástica que o festival trazia. Foi maravilhoso”. Durante a montagem do material, quando ele foi vendido para a Warner, Martin acabou por ser despedido, já que Michael, que a essa altura tinha recebido o crédito de diretor, estava incomodado com as interferências e sugestões do colega. Mesmo assim, ainda lhe foi dado o crédito de Editor, junto de Thelma.

Com o casamento em ruínas e sua filha recém-nascida sem um pai presente, Martin estava em frangalhos emocionais. Se separar e deixar uma filha não batia com suas convicções e seus princípios católicos, mas ou era isso ou abrir mão de seu sonho de se tornar Diretor; no interesse de sua carreira, ele foi impiedoso.

Abalado pela separação, Scorsese mudou-se para Los Angeles no começo de 1971 a convite de Fred Weintraub para dar um jeito em “Medicine Ball Caravan” documentário sobre um grupo de pessoas em uma Kombi, disseminando a paz e amor no interior dos Estados Unidos. Lá, ele conheceu Brian DePalma, que lhe apresentou a todos da época: Coppola, Friedkin, Bogdanovich, Spielberg e mais um monte de gente. Diversas festas aconteciam e era sempre a mesma galera que estava nelas. Em uma dessas festas Scorsese conheceu Sandy Weintraub, que nas palavras de DePalma: “Era uma das duas filhas peitudas do Fred”. Sandy era uma hippie de 19 anos que não tinha a menor ideia do que fazer da vida e estava visitando o pai em L.A.: “Assim que vi o Marty, o achei a coisa mais fofa que já tinha visto.” Ela relembra: “Era gorducho, com cabelo comprido, não tinha pescoço, e era mais baixo que eu. Fui até onde ele estava e me sentei no chão e lhe disse: ‘Se eu pedir emprestado um dinheiro com meu pai, você me leva pra jantar?’ E ele respondeu: ‘Uau, ok’ Eram os anos 60 e tudo o que eu tinha comigo eram os jeans com que tinha viajado e umas camisetas. Mas eu queria usar um vestido. Então, eu fui a uma loja de tecidos, comprei um metro de pano e enrolei em volta do corpo, feito uma toga. Ele, é claro, foi com um de seus ternos brancos imaculados. Esse foi nosso primeiro encontro”. Foram ao cinema, lógico.

Marty e Sandy tornaram-se um casal e viveram juntos por quatro anos, dali até o meio da produção de “Taxi Driver” (tornaram-se parceiros também: ela ganhou crédito de produtora associada em “Alice Não Mora Mais Aqui”). “Íamos ver todos os filmes que estreavam. Sessões duplas, triplas. Nunca olhávamos para o cartaz, íamos logo entrando na sala, pouco importava o que passava. Marty respirava, comia e cagava cinema. Eu contava a ele meus sonhos e ele me contava o filme que tinha visto na televisão no dia anterior. Ele adorava seu trabalho. Se ele tinha algum medo, era o de algum dia não poder mais fazer o que amava tanto, e eu seguia ele bastante nisso, ajudava muito ele, por isso ficamos tanto tempo juntos.” Lembra Sandy.

Lá pela metade de 1971, Roger Corman ofereceu “Sexy e Marginal” para Scorsese dirigir. Era uma variação entre o tema de “Bonnie e Clyde”, um drama sobre um líder sindical (David Carradine) e uma sem-teto gostosona (Barbara Hershey), na época da Depressão, o tipo de mistura de política e sexo de tabloide que fazia o gosto de Corman. Sem dinheiro e nenhum modo de viabilizar seu projeto autoral “Seasons of the Witch” que escrevia junto de Mardik Martin desde 1965 e que era meio que uma continuação de “Quem Bate à Minha Porta?”, Martin aceitou trabalhar em “Sexy”: “De certo, me foi muito útil, não pelo resultado do filme e etc, mas sim pela experiência que foi filmar com uma equipe de pessoas que eu não conhecia, em uma filmagem complexa, sem dinheiro e longe de casa. Foi muito libertador e me deu a chance de experimentar bastante”, lembra Martin.

Mesmo não sendo um filme com a marca de Scorsese, algumas coisas lembram suas preferências, mas sua interferência foi pouca no processo, se limitando a revisar o texto e a enquadrar os planos da melhor forma possível, de modo a otimizar o tempo em set, que eram minguados 24 dias. É claro que eram vinte quatro intensos dias, pois se tratava de uma produção de Roger Corman, com pessoas não sindicalizadas e que, assim como Martin precisavam do dinheiro: “Trabalhei com pessoas que tinham rodado com Ed Wood, eram pessoas que estavam tão velhas que não tinham nada a perder, não tinham com quem mais trabalhar, então nossas diárias eram bem longas.”

Sexy e Marginal”, que havia sido filmado com apenas 600 mil dólares, estreou em Junho de 1972 num programa duplo com “1000 Convicts and a Woman” um exploitation típico dos anos 70 e da American International Pictures. Scorsese tinha vergonha do filme. Mostrou-o a Cassavetes, que externou algo que o próprio Scorsese estava pensando: “Bom trabalho, mas nunca mais faça uma porra dessas”. “Porque você não faz um filme sobre algo que realmente seja próximo a você?”. Martin sabia que estava na hora de tirar “Seasons of the Witch” do papel, de modo a provar para todos que tinha potencial para dirigir qualquer coisa que saísse de sua cabeça.

Martin não perdeu tempo, reescreveu o roteiro algumas vezes junto de Mardik, o filme mudou de nome para “Mean Streets” (Caminhos Perigosos) sugestão de Jay Cocks tomando emprestada uma frase de Raymondy Chandler “... mas por essas ruas perversas – mean streets – deve ir um homem que não é perverso, nem culpado, nem tem medo”, e começou a caça aos investidores. De cara, Roger Corman ofereceu 150 mil para que Scorsese dirigisse o filme, mas em contra partida, o roteiro deveria ser reescrito para um elenco negro, para aproveitar a onda “blaxsploitation”. Martin recusou: não faria outro filme para Corman.

Verna Bloom, esposa de Jay Cocks que era atriz, apresentou Scorsese para Jonathan Taplin, ex-road manager de Bob Dylan e The Band. Taplin queria entrar para a indústria do cinema e se comprometeu a levantar o dinheiro para produzir “Caminhos Perigosos”: “Eu era ingênuo o bastante para achar que se eu havia conseguido produzir 150 concertos, conseguiria produzir um filme fácil”.

O roteiro tinha dois papéis suculentos: Charlie, o alter ego de Marty, que havia sido escrito para Harvey Keitel e Johnny Boy, o amigo fanfarrão meio pirado. Scorsese havia conhecido De Niro através de Brian DePalma e de Verna Bloom: “Os dois eram perfeitos, haviam crescido no mesmo bairro, na verdade a poucas quadras um do outro, tinham amigos em comum e eram de um talento inflamável” lembra Verna. De Niro era quieto, e assim como Scorsese levava seu trabalho muito a sério, então conversa fiada não era com ele. Por falar muito pouco geralmente era difícil vendê-lo, pois não interagia bem com desconhecidos: “A comunicação com Bob exigia muitos gestos e toques, pouquíssimas palavras. Nas festas, ele costumava se sentar no sofá e cair no sono, esse era Bob De Niro”. Na noite que Martin e Bob se conheceram, em um jantar na casa de Jay Cocks, os dois logo se entenderam, e esqueceram o jantar e se trancaram no banheiro por duas horas, para falar de filmes e de “Caminhos Perigosos”. Inicialmente De Niro queria o papel de Charlie, mas Scorsese estava seguro de que Johnny Boy era o melhor para ele, e não aceitou o papel.

Os investidores gostaram do roteiro e no total Taplin conseguiu levantar cerca de 600 mil dólares, mas queriam alguém mais conhecido como Charlie, como Jon Voight, que não estava disponível, então no último minuto o papel passou novamente para Harvey Keitel e De Niro aceitou fazer Johnny Boy, por acreditar na profundidade do personagem e no bom roteiro de Scorsese e Mardik.

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As filmagens começaram em abril de 1972 em Nova York, onde precisavam filmar por 6 dias todas as externas e prosseguirem para Los Angeles, onde gravariam as internas que poderiam ser falseadas. As gravações se mostraram extremamente difíceis, primeiro porque não era tão fácil entrar com câmeras no “velho bairro”, os moradores olhavam feio, achavam de mal gosto gravações daquilo pelas ruas e resmungaram muito, inclusive sendo necessário ser pago uma “conta” de 5 mil dólares pelo uso das ruas, em locais específicos e na festa de San Genaro. “Eu não tinha dinheiro para pagar aqueles 5 mil dólares, então pedi a Francis (Coppola), e ele me deu, assim que vendi o filme lhe devolvi o dinheiro”.

Com luvas para não roer as unhas, as filmagens levaram Scorsese ao seu máximo, mas quando o filme ficou pronto, no começo de 1973, o resultado era o melhor possível. Embora a insegurança clássica de Scorsese intimidasse a todos e a si mesmo principalmente, ninguém negava, “Caminhos Perigosos”, faria de Scorsese uma estrela.

A Paramount tinha aceitado ver o filme em uma reunião em que Taplin e Scorsese estavam. Eles saíram de lá super entusiasmados, afinal Francis Ford Coppola havia colocado os italianos armados no auge novamente e não havia porque a Paramount não fechar o acordo. Harry – agente de Scorsese – também havia conseguido uma exibição com a Warner, para o mesmo dia. O diretor, que achava que todos da Paramount o adoravam e iam fechar o acordo com eles, pensou em desmarcar a exibição com a Warner, mas foi desencorajado por Taplin que acreditava que os dois estúdios iam ficar disputando o filme e isso seria ótimo no mercado, o que infelizmente não aconteceu, Peter Bart – vice-presidente de produção da Paramount, com menos de 10 minutos de projeção se esticou até o telefone da sala de projeção e mandou o projecionista interromper a sessão. Enquanto se levantava e abotoava seu terno, Bart dizia: “Não percam meu tempo, vão vender esse filme para John Calley. Não estou interessado.” Chocados, eles pegaram os enormes rolos de 35mm e foram embora “como mendigos, andando com umas latas de baixo do braço para cima e para baixo”, como recorda Martin. Por sorte, não haviam desmarcado a exibição com Calley – diretor de produção da Warner. Mais tarde, lá estavam Scorsese e Taplin: Filme no projetor e sentados como bons moços no fundo da sala. Calley e Leo Greenfield – chefe de distribuição, ambos ex-moradores de Nova York também estavam lá para a exibição, e “Foi incrível! Eles riram quando deveriam rir, apontavam para a tela o tempo todo falando animados sobre como aquele lugar permanecia igual, ou como o outro havia mudado e etc.” Lembra Taplin. No ápice do filme, onde a batida dos tiros rouba a cena, a sala era um silêncio total. O filme acabou, as luzes se acenderam e um clima pairava no ar, nem bom nem ruim, só absolutamente impregnado pelo filme. Seja lá do que se tratava o silêncio e o clima, eles haviam vendido “Caminhos Perigosos” para a Warner.

Para completar o pacote, o filme foi para Cannes e Martin, Bob e Taplin logo de cara foram apresentados a Fellini: “Quando o distribuidor dele entrou na sala para cumprimentá-lo ele logo disse: ‘Ah, você deveria comprar o filme desses meninos, é o melhor filme americano que já vi nos últimos dez anos’. Ele nem tinha visto, mas de todo modo, vendemos o filme”.

Em outubro de 1973, “Caminhos Perigosos” estreou no Festival de Cinema de Nova York: “Estávamos completamente duros, mais que duros, estávamos falidos”, Sandy recorda. “Harry Ufland me deu o cartão de crédito dele para comprar um vestido para usar nas entrevistas, e eu o usava todos os dias, lavava toda a noite e passava a ferro no chão. A noite de estreia foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Riram quando era pra rir, engasgaram-se quando era pra engasgar. No final do filme, iluminaram o camarote onde estávamos sentados. Marty foi aplaudido de pé. O The New York Times publicou uma crítica entusiasmada. Quando voltamos para o hotel, havia uma pilha de meio metro de altura de mensagens de gente querendo que Marty dirigisse os filmes deles.”. Pauline Kael, famosa crítica do The New Yorker, estabeleceu Scorsese como um talento de peso, escrevendo: “é uma obra verdadeiramente original da nossa época, o triunfo de um cinema pessoal, certamente o melhor filme americano de 1973”. Taplin recorda: “Ela jamais escrevera algo assim em toda a vida dela. Era incrível. Havia filas em volta do Cinema no dia seguinte. Kael lançou Caminhos Perigosos, lançou Marty, não há a menor dúvida”.

E de fato, “Caminhos Perigosos” é um filme único, uma mostra eloquente do que um diretor pode fazer. Ninguém tinha visto nada igual. Scorsese tinha seguido os conselhos de Manoogian ao pé da letra. Da abertura com os créditos sobre um filme caseiro até as cenas de Charlie na cama, numa trêmula câmera na mão, até a louca briga no clube, em uma única incrível tomada, Scorsese capturou a vida como ele a conhecia. “Caminhos Perigosos” oscila entre a autenticidade do documentário e o delírio febril das alucinações.

Com seu chapeuzinho, sua jaqueta de couro falsa, um sorriso idiota emplastrado no rosto, Johnny Boy, o bobo sagrado, é o espírito livre que Charlie não permite a si mesmo, um esboço para o Travis Bickle de “Taxi Driver” que é uma versão mais sombria e sinistra do mesmo personagem. Scorsese permitiu que De Niro expressasse seu lado mais sombrio. Como Spielberg notou com grande precisão, Marty “deixa que Bob perca o controle e passe dos limites para que ele, Marty, permaneça no controle. Acho que Bob é simplesmente maravilhoso como uma espécie de extensão do que Marty poderia ter sido se ele não tivesse se tornado um cineasta”. E realmente, em “Caminhos Perigosos” Scorsese interpreta o pistoleiro que do assento de trás do carro atira em Johnny Boy, assim como em “Taxi Driver” ele vive o passageiro armado no banco de trás do taxi de Travis. É a fantasia do diretor – o homem nas sombras, puxando os fios – como assassino. “Eu me criei com eles, os gângsters e os padres”, nas palavras de Scorsese “E agora, como artista, eu sou, de certa forma, gângster e padre ao mesmo tempo”.

Continua na Parte 2, em 15 dias!

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