O filão de cinebiografias normalmente produz filmes mornos, sem graça, com pouco espaço para especulação e criatividade já que se lida com histórias reais. Por mais que toda obra feita para o cinema tenha um bocado de ficção e viés - incluindo aí até documentários, que dirá histórias baseadas em personagens reais - sempre há comparações, seja com a realidade ou mesmo com outras versões anteriores do personagem biografado.
Eis que dez anos atrás, em 2013 o diretor Wong Kar-wai trouxe a luz O Grande Mestre, que é mais uma das versões sobre a vida e obra do fenômeno de artes marciais que foi Yip Man, ou Ip Man. Conhecido como o mestre de Bruce Lee, o mentor é celebrado como um grande instrutor do Wing Chum, sistema de luta oriundo do sul da China criado por Ng Mui.
O modo de luta se distingue dos demais estilos de Wu Shu e outras artes marciais pela economia de movimentos, sendo no caso de Ip Man reduzido a três deles: espada, pino e bainha. É um sistema de defesa pessoal, que descarta movimentos acrobáticos, mas a abordagem aqui é obviamente diferenciada, afinal é um filme de um artesão do cinema, seria preciso aludir a um viés mais mágico na hora de retratar fatos e acontecimentos.
A trama começa na China dos anos 1930 e já no início o Yip Man de Tony Leung é celebrado como um grande mestre. A forma como Kar-wai faz seu registro referencia só um drama histórico, mas também algo em uma escala grandiosa, poucas vezes vista e abordada até então dentro da filmografia dele.
Em comum com seus outros filmes há claro a dedicação aos sentimentos de afeto e honra em seus personagens, um uso de trilha sonora soberbo, com a música composta por Nathaniel Méchaly e Shigeru Umebayashi.
O som se une as imagens de escala grande e a exploração de cenários com cores baseadas em tons acinzentados que ficam muito bonitos. Esse conjunto forma um belo quadro, que por sua vez invade o imaginário do público, conseguindo com poucos tons o mesmo encanto do estilo normalmente multicolorido do Wuxia.
O cuidado com o visual o difere demais da outra cinebiografia do mestre, no caso, O Grande Mestre (2008) com Donnie Yen. Nesse início, há semelhanças com Street Fighter, filme protagonizado por Sonny Chiba em 1974.
Outra boa base para o longa é o desempenho de Leung. O ator tinha experiência em produções de diversos gêneros como o policial Conflitos Internos, o romântico Amor à Flor da Pele, o drama de guerra Desejo e Perigo (de Ang Lee) e até o recente filme comercial de herói Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis.
A narrativa retorna a Foshan, uma província de Guangdong e se localiza em 1936. Já inicia com uma baita cena de luta, onde Ip Man enfrenta dezenas de personagens em um ambiente cinza, chuvoso, com quase todos usando roupas pretas enquanto são enquadrados.
Depois dessa apresentação, cada um dos personagens é trazido a tela. Nenhum em particular é apresentado com grande alarde, mas há um destaque para alguns, especialmente com Gong Ruo Mei, feita pela musa dos filmes de ação Zhang Ziyi.
Ela recebe do seu pai, Gong Er (Wu Yixuan) um pedido, para que se dedique ao ofício de médica. Ele faz isso já visando que estava em uma idade avançada e em breve deixaria o mundo dos vivos. Ela, no entanto fica contrariada, mas não necessariamente em exercer seu trabalho, tanto que ela faz de bom grado, mas ela não queria deixar para trás a prática da luta, que seu pai também pediu.
Com a chegada da grande guerra mundial ela se vê obrigada a tratar muitas pessoas. O pecado do filme é o de mostrar pouco a guerra. É dito que ela tratou muitos pacientes, mas não são mostrados quase nada. A parte agressiva do conflito reside em alguns pontos que mostram a opressão das autoridades japonesas junto ao povo da China, mas os horrores mais viscerais são pincelados.
Ainda assim ela sempre aparece lutando ou treinando para tal e depois que seu pai falece, ela assume o nome Gong Er, para honrar a ele, mesmo que seu desejo fosse que ela se tornasse alguém pacífica e não uma ponta de lança em época de conflitos.
Quando a trama retorna ao protagonista, ele é louvado, após participar de uma competição.
Ip Man vence um torneio recebe o afeto de Gong Er, é reconhecido como um mestre da tradição de artes marciais do norte do país, por um dos seus pares, mas a invasão japonesa separa os dois amigos, colocando também o herói como alguém distante de sua amiga, a srta. Gong.
As histórias de ambos seguem paralelamente, sempre com a ideia de que eles se reunirão. Quando estão juntos, Gong e Ip Man lutam, protagonizando belos momentos de disputa.
As coreografias utilizam bastante o artifício de cordas e arames. A movimentação dos voos e o planar dos guerreiros é belamente enquadrado por Wong Kar-Wai. É tudo muito bem orquestrado, levado em tela de maneira bela.
Claro que o roteiro de Kar-wai, Zou Jingzhi e Xu Haofeng faz suas escolhas do que colocar em tela e o que excluir. Biografias no cinema não tem a necessidade de contar uma história exatamente como ela foi. As boas histórias reais levadas a grande tela, normalmente contam uma parcela da vivência de alguém e é o caso nesse, uma vez que desenvolve o amor de Ip Man pela sua arte, pela exploração dos múltiplos golpes e eventualmente, passa também pelos romances que ele viveu.
As relações sentimentais são mostradas de maneira aquém, algumas são enfadonhas inclusive.
A dedicação da direção são as lutas e nesse ponto, Zhang está muito bem novamente. Em alguns pontos até ofusca até Leung.
O melhor e mais divertido aspecto dramática certamente é a busca para tentar vingar o seu pai. Gong Er persegue Ma San (Zhang Jin) e quando ela finalmente o alcança a batalha é bem registrada, parecendo um balé agressivo e violento.
A parte da guerra que fica no imaginário é referente aos cortejos fúnebres dos personagens mais tradicionais, como é com o velho Gong-Er. Os cenários ficam belos, grandiosos, repletos de uma neve branca que remete a um cinema épico e antigo, da primeira metade do século XX.
Mesmo que o longa deva em drama, há uma carga emocional considerável em cima de Ip Man. É mostrado que ele se torna professor por necessidade, uma vez que precisa prover o sustento seu e de sua família durante e no pós-guerra.
Seu método era dado sem movimentos especiais, com os três golpes básicos, os já citados: espada, pino e bainha. Ele afirma que suas formas são entre o conceito a ponte e os dedos que furam, mas não utiliza tanto as armas, embora verbalize que poderia usar facas de oito cortes e o bastão de seis pontos e meio.
Ele não dá tantas lições quanto poderia, a ideia é mostrar ele lutando mais do que ensinando afinal, é um mestre em construção, não pronto. Cada confronto em que entra termina de forma bela. As lutas seguem parecendo números de dança mortal, com consequências sangrentas, até para quem as vencem.
O roteiro gasta muito tempo em uma melancolia, acaba destoando também do que se espera de um filme de luta, especialmente quando põe frente a frente Leung e Zhang. Por mais que haja um problema com o ritmo, o longa compensa pelo tom de poesia dado aos números de kung fu.
Acaba sendo tanto um filme sobre Ip Man quanto sobre a sua antiga amiga. É curioso como não há nenhum trabalho para envelhecer a atriz, ela é sempre retratada da mesma forma.
Parece que o filme tem mais preocupação em fazer uma ode ao saber da luta e menos em narrar uma trama com correção histórica. É um épico, que pega estilo e abordagem direta dos filmes de Sérgio Leone, em especial Três Homens em Conflito e Era Uma Vez na América.
O Grande Mestre tem seus bons momentos. Não é o auge da carreira de seu realizador, mas ainda assim consegue louvar a memória de um mestre que fez muito, que instruiu talvez o maior astro marcial da história e que foi fonte de inspiração para várias gerações de lutadores. Dentro do fazer cinematográfico, entrega tudo com muito estilo e poesia.
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