Alma no Lodo : A pedra fundamental da exploração da Máfia nos cinemas

Alma no Lodo : A pedra fundamental da exploração da Máfia nos cinemasAlma no Lodo foi um dos primeiros filmes a abordar a temática da criminalidade organizada e as irmandades mafiosas de origem ítalo-americana. O longa-metragem serviu não só de entretenimento, mas também participou de um esforço das autoridades e dos serviços que veiculavam arte no país no sentido de denunciar esse secto como um mal moderno para o estilo de vida ocidental.

Seu nome original, Litte Cesar remete a um título e sinônimo de poder do soberano imperador romano. O termo alude tanto a estatura do seu protagonista Rico Bandello, que é baixo, quanto ajuda a determinar que uma autoridade suprema e sem contestação tem potencial de vilão.

Apesar das implicações que remetem a política, o enfoque da história é o drama, que é desenrolado de forma simples e direta. O texto mostra dois amigos, Rico e Joe Massara, ambos jovens, de origem europeia, com famílias imigrantes oriundas da Itália. A dupla tem ambições grandiosas, cometem crimes mas querem expandir, vendo em Chicago um potencial de lugar onde poderiam trabalhar.

A programação original do longa-metragem era ser lançado ainda em 1930, para a época de festas de fim ano, mas os estúdios First National Pictures e Warner Bros acharam que não cairia bem em uma época de natal um filme tão melancólico e pesado.

Foi lançado então em 1931, época ainda perto das guerras de gangue na cidade de Chicago. Esses eventos incluíram uma grande onda de assassinatos dentro das organizações criminosas de origem mafiosas, italianas e gangsteres. Por volta de 1919 até os anos das décadas seguinte, vários figurões e bandidos caíram naquele cenário violento e urbano.

Entre os casos mais lembrado há Jim Colosimo, o Big Boy em maio de 1920. Já em novembro de 1924 Dion “Deanie” O’Banion foi morto depois de roubar caminhões de álcool dos irmãos Genna. Também havia ocorrido o Massacre do Dia de São Valentim em fevereiro de 1929.

Não faltam exemplos de como a sociedade e poder público tinham dificuldades em lidar com questões ligadas ao crime organizado, sobretudo com as sociedades secretas da Máfia.

O longa adapta o livro Little Caesar do escritor e romancista estadunidense W. R. Burnett. O autor se acostumou a escrever histórias sobre violência urbana. Ao longo do tempo ele fez outros escritos semelhantes, como The Asphalt Jungle, Little Men, Big World e Good Bye Chicago. Ao longo de sua vida, teve outros filmes adaptados a partir de suas obras.

Seu trabalho mais conhecido certamente foi Scarface: A Vergonha de uma nação (1932), onde trabalhou adaptando diálogos, a fim de fazer com que eles soassem mais naturais.

Entre as obras em que trabalhou como roteirista há Quem com Ferro Fere (1941) e Fugindo do Inferno (1963) de John Sturges. Foi argumentista em Mergulho no Inferno (1943) e teve alguns outros livros adaptados, sendo um deles O Segredo das Joias (1950) de John Huston.

É sabido que na época da produção, Burnett ficou bastante irritado por não ter nenhum italiano envolvido no filme. Não havia nenhum ator ou membro da produção cuja origem fosse a dos personagens retratados em tela e essa preocupação era legítima, afinal, era precisa fazer crer que aquela história era possível.

A direção desse ficou a cargo de Mervyn LeRoy, o diretor do épico Quo Vadis, de 1951. Ele acabou se tornando um cineasta bastante requisitado em um futuro próximo, mas aqui, estava no início de carreira. Ainda nos anos trinta, colaborou com sequências de transição em O Mágico de Oz (1939). Outro trabalho seu bastante lembrado é Tara Maldita, um clássico de horror lançado em 1954 que ajudaria a pavimentar parte dos clichês de gênero, especialmente no que tange o terror familiar.

Já o protagonismo recaiu sobre o icônico Edward G. Robinson, que se tornaria sinônimo de filmes de máfia, fazendo outros gangsteres, como em Fora da Lei e Precioso Ridículo.

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Robinson e LeRoy ainda trabalhariam juntos em produções como Sede de Escândalo, Dois Segundos e A Suprema Cartada, todos os filmes lançados entre as décadas de 1930 e 40.

Como lida com um assunto tabu e controverso, seria natural que a produção buscasse "santificar" sua temática. Para isso, a primeira inserção de texto é uma citação bíblica, do evangelho de São Mateus 26:52 "pois todo que tomar a espada, morrerá à espada".

A ideia é condenar a violência de véspera, deixando claro que a recompensa para o crime é a morte, tal qual é dito também na Bíblia, que o salário do pecado é a morte, Romanos 6, que é uma epístola de São Paulo.

A cena imediatamente posterior a citação é bem agressiva e violenta, ainda que um pouco tímida e nada expositiva. Um carro para em um posto de gasolina, alguém desce do carro e ao longe a câmera registra tiros na parte interna da loja.

Há ainda espaço para um elemento poético, com a luz apagando na parte de dentro da loja, com o fogo da vida se esvaindo junto a ausência de iluminação.

Logo Joe (Douglas Fairbanks Jr.) e Rico se encontram em um café, depois de ter executado o golpe anteriormente demonstrado em tela. Os dois discutem sobre uma homenagem que o submundo fez a Diamond Pete Montana, um figurão do crime organizado urbano, que foi tão falado que seu obituário ganhou destaque nos jornais.

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É sabido que Montana é baseado em Jim Colosimo, o Big Boy, um dos grandes homens mortos nas guerras de gangue de Chicago na década de 1920.

Antes mesmo de sentar e discutir, Rico mexe no relógio da lanchonete, altera a hora para algo mais tarde. O ardil se dá possivelmente para pagar mais barato no prato de janta. Ele tinha dinheiro para pagar a refeição, mas é puramente desonesto mesmo sem necessidade. Esse trecho serve para deixar claro seu desejo de alterar seu destino de forma rápida, mesmo que tenha que lançar mão de subterfúgios para isso.

Rico vê Diamond Montana como um exemplo, enxerga em sua trajetória a possibilidade de sucesso, chegando a conclusão que ele e seu parceiro teriam maiores chances de sucesso se fossem para a cidade grande.

Curiosamente, esse papel de jornal serve também para determinar como os descendentes de italianos eram vistos na América do início do século XX, assim como serve para denunciar a visão deturpada de entidades malvadas, tais quais Cesario Enrico Bandello era.

Rico é tão mal quanto é insano e isso é bem grafado no personagem que Robinson faz. Muitos confundem a inspiração do personagem, associando-o naturalmente a Al Capone.

Burnett se inspirou na verdade Salvatore "Sam" Cardinella, conhecido como Il Diavolo (o diabo), que foi um extorsionário e líder da Gangue Cardinelli durante a década de 1920, grupo esse que foi um dos mais dominantes da Mão Negra (nome da máfia na época) em Chicago antes da Lei Seca.

O chamado a aventura dentro do filme ocorre quando Joe se apaixona por uma bela dançarina Olga Stassoff (Glenda Farrell), e decide deixar para trás a vida bandida, mesmo sabendo que isso seria impossível.

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Sendo esse um produto após a fase do Cinema Mudo, é natural e até necessário que haja um apelo a diversos gêneros, fato que justifica o grande enfoque no desenrolar romântico entre o casal.

Esse é um dos primeiros filmes a abordar a temática do crime organizado, há poucos mais antigos do que ele, Caminhos do Inferno, que a Warner Bros lançou um ano antes, em 1930.

A parte que envolve a criminalidade organizada tem uma importância grande. Rico tem ambição, tem vontade de crescer, é munido de grande audácia e disposição para alcançar esse objetivo.

Ele é mostrado como alguém irrequieto, mas também desaforado, já que não respeita dogmas ou etiquetas com os membros das altas rodas. Sua postura inconformada parece ser o norte para diversos dos heróis falidos presentes nos filmes criminais do futuro.

Há um bocado de Santino Corleone de O Poderoso Chefão, também parece ser o precursor de Tony Montana do Scarface que Brian De Palma dirigiu.

Mas a maior e mais fácil referência desse é a relação de amizade e parceria de Joe e Rico. A simbiose dos dois lembra bastante o visto com a dupla Bené e Zé Pequeno, interpretados por Phelipe Haagensen e Leandro Firmino em Cidade de Deus (2002).

De fato, há muitas semelhanças e há uma clara inspiração, talvez não nesse filme em si, mas em uma espécie de “refilmagem” dos anos 1970. Em O Chefão de Nova York - ou Black Caesar - também baseada no livro de W.R. Burnett, há inspiração não só esse drama entre amigos, mas também paralelos visuais entre a obra dirigida por Larry Cohen e o longa brasileiro de Kátia Lund e Fernando Meirelles, incluindo a sequência de morte do bandido principal.

Referências externas à parte, Joe e Rico são grandes amigos, tem em comum a a carreira de vilões, mas um deles tem uma motivação externa para largar essa rotina estressante e estafante de viver colado no perigo.

A história foca obviamente mais em Cesario, na ascensão que ele constrói aos poucos e na popularização de seu nome. A imprensa passa a fazer matérias com ele, ao passo que ele também desperta ciúmes da parte de outros grupos criminosos, como a facção rival de Little Arnie Roch, mas o tempo de tela é de fato dividido com seu companheiro Joe, que sonha em se aposentar ainda que não encontre forma.

O sujeito repete sempre a mesma frase, quase em tom de mantra: é impossível sair de uma gangue.

Fato é que essa afirmativa o faz paralisar. Ele se torna letárgico, refém da própria condição, o que é pitoresco por si só, já que quem mais dá importância a essa questão é ele próprio.

Rico está preocupado em ascender, está ocupado sendo adulado ou sofrendo atentados, enquanto seu amigo fica em dúvida se dá ou não vazão a paixão que o arrebata.

A fama de Bandello é tanta que quando ele quase é morto na rua, todas as pessoas o cercam, tentam ampara-lo. Há algo de messiânico em sua figura, um apelo as massas que foi se repetindo ao longo do tempo, como com Pablo Escobar na Colômbia ou Nenê da Brasilândia em São Paulo.

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A noção da moralidade que condena o banditismo é bastante presente, especialmente graças a sua época. Era fácil para o povo enxergar os bandidos poderosos como pessoas deusificadas.

O esforço de filmes como esse era prestar um serviço de propaganda contra o crime, tanto que figuras como policiais e autoridades são mostradas brevemente e sempre como pessoas honradas.

Chega a ser curioso como O Poderoso Chefão quarenta anos depois seria acusado de glamourizar a máfia italiana, a Cosa Nostra e suas regras como a Lei do Silêncio da Omertá.

O século XX foi intenso e noções de civilização avançaram muito rápido durante essas décadas.

A parte dramática ganha mais importância quando reflete sobre a amizade desfeita entre Rico e Joe. O bandido não aceitou bem a aposentadoria do amigo e acabou atacando Joe.

A dúvida que fica é se Rico atacou seu parceiro por vaidade, por ciúmes ou por se sentir abandonado. Qualquer uma dessas possibilidades demonstra o ego inflado do sujeito, que chega ao ponto de crer de verdade que está acima do bem e do mal.

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O poder e a influência entorpeceram Rico, que não conseguiu aceitar que o amigo não está mais com ele. Esse foi o estopim para Massara, que colaborou com as autoridades, entregando assim o antigo parceiro e amigo.

Claro que falta complexidade na resolução dos problemas. Como a narrativa cinematográfica engatinhava era meio proibitivo tramas com desdobramentos grandiosos.

Ainda assim, o roteiro tem seus ardis, incluindo uma demonstração de Rico usando esconderijos secretos de qualidade alta em um primeiro momento. Enquanto tinha dinheiro, ele se escondia bem, quando não, simplesmente decaia o lugar onde o personagem-título pernoitava.

Sua decadência foi tão meteórica quando em sua ascensão.

O pequeno Cesar tem um fim tão trágico quanto dos czares russos e dos imperadores romanos. Ele termina mal, descabelado, fraco, com os olhos com olheiras e repletos de lágrimas, tendo apenas mendicantes como pessoas próximas.

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Para ele sobrou a tristeza e a sensação de que poderia estar bem, de que poderia permanecer com luxo e fama. A melancolia o fez perder até o seu status de foragido.

Ele é pego pela vaidade, o único sentimento pleno que lhe restou, mesmo que estivesse em penúria financeira, convivendo com pessoas sem teto.

Seu último ato como bandido é o de cair, agindo como um tolo principiante, vacilando em uma armadilha óbvia. Para os anos 1930, era importante colocar os bandidos em uma posição de inferioridade moral e intelectual. A ideia é usar o vilão como exemplo, mostrando ao grande público que viver uma vida criminosa é ruim.

LeRoy não é nada sútil nos atos finais. Cai na obviedade de comparar a vida entre Joe e Rico, mostrando um cartaz louvando os dançarinos Olga e Joe, no mesmo local em que o bandido cai morto.

A ideia de usar o exemplo dele como o de alguém sem brilho esbarra no fato de que o filme carrega seu apelido, além do que os supostos artistas em evidência não têm nem o mesmo tempo de tela do sujeito que perece, tampouco aparecem no desfecho da obra, como o trágico anti-herói.

O tiro saiu pela culatra e ironicamente o longa louva a jornada repleta de tropeços de Rico. Sua rápida ascensão e queda veloz serve mais como exemplo para todos os que aspiram subir na vida de crime e menos ao serviço de demonstrar que crime não compensa, uma vez que Cesare mesmo decadente, teve seus momentos de brilho, que é muito mais do que a maioria dos bandidos conseguem.

No desfecho do filme, havia duas versões das palavras finais sobre o destino de Rico. Ambas foram filmadas e na primeira, foi dito "Mãe de Deus, este é o fim de Rico?" e a outra "Mãe misericordiosa, este é o fim de Rico?".

Embora "Mãe de Deus" tenha sido tirado diretamente do romance de W.R. Burnett, foi decidido que a fala poderia ser encarada como blasfema, já que vinha de um gângster assassino e "mãe da misericórdia" foi usada.

Alma no Lodo resulta em uma produção repleta de camadas, bastante moderna em abordagem, contando com uma direção sóbria e uma atuação soberba de Robinson. É sem dúvida nenhuma um clássico do cinema sobre crime e policial, atendendo até mesmo as demandas atuais do público em relação a ação e aventura.

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