Criador do mangá Rurouni Kenshin, o desenhista e roteirista japonês Nobuhiro Watsuki esteve neste fim de semana em São Paulo para uma série de palestras, como parte das comemorações dos 120 anos do Tratado de Amizade assinado entre Brasil e Japão. O mangá, lançado originalmente nos anos 90, chegou ao Brasil primeiramente no formato de anime no início dos anos 2000 com o título Samurai X, e recentemente foi transformado em uma trilogia de filmes live action bem recebida por público e crítica. Watsuki veio acompanhado de sua esposa, a também roteirista Kaworu Kurosaki (responsável pelo roteiro do anime de futebol Captain Tsubasa/Super Campeões e por auxiliar no roteiro do próprio Rurouni Kenshin).
Nas palestras, Watsuki mostrava fotos de seu pequeno estúdio – uma salinha que divide com quatro assistentes – e contava detalhes sobre seu processo criativo, com direito a explicações detalhadas a partir de imagens dos storyboards e cadernos de rascunhos de roteiro. Divertindo-se com o caloroso público brasileiro, e sempre apoiado pelos comentários bem humorados de sua esposa, o mangaka mostrou fotos de sua invejável coleção de action figures de robôs gigantes (imagine a cristaleira da sua avó cheia de bonecos bacanudos de Getter Robo – que disse ser seu mangá favorito -, Transformers, Mazinger Z, e até mesmo do americano Gigante de Ferro) e respondeu a perguntas sobre sua carreira e sua obra a centenas de fãs de todas as idades. Muitos, emocionados, mal conseguiam formular frases; outros, trajando cosplays caprichados de personagens de Rurouni Kenshin, arriscavam até mesmo iniciar as perguntas em japonês.

No Centro Cultural São Paulo, Watsuki mostra ao público sua coleção de action figures de robôs gigantes
Esbanjando simpatia, apesar do jeito formal e polido, retratado até mesmo pelas vestimentas típicas japonesas que trajavam, o casal concedeu uma coletiva de imprensa no Centro Cultural São Paulo antes da primeira palestra. Avesso a fotografias (tanto é que nenhuma das fotos liberadas para a imprensa mostra seu rosto) e aparentemente tímido, Watsuki falou pelos cotovelos no bate-papo com os jornalistas. O artista compartilhou um pouquinho de sua história e de suas inspirações – prometendo até mesmo um novo personagem com influências do “jeito alegre dos brasileiros”. Leia a entrevista a seguir.
Você sempre acompanha quadrinhos e cultura pop em geral, e acaba repassando essas influências para as suas obras. Está acompanhando algo agora que deverá influenciar seus futuros trabalhos?
Nobuhiro Watsuki: Atualmente estou lendo um mangá chamado Hyouge Mono, que se passa no início do Período Edo, cerca de 300 anos antes da época retratada em Rurouni Kenshin. O personagem principal é também um artista. Considero a obra bastante divertida, e por isso tenho acompanhado. Estou acompanhando também o anime Steins;Gate, baseado em um game. Quando assisto, esqueço que sou dessa área, e me divirto muito. Essas duas obras devem exercer alguma influência nos meus trabalhos futuros, de alguma forma.
Em Rurouni Kenshin, vemos muito da história do Japão, o que é algo pouco conhecido por nós, ocidentais. Mesmo assim, quando tivemos contato com sua obra, passamos por uma experiência prazerosa e familiar, que nos permitiu acompanhá-la, como se fosse um trabalho de linguagem universal. A mesma empatia do público ocidental não ocorreu com suas outras obras posteriores, como Buso Renkin. Você pretende retomar esse estilo futuramente, para provocar novamente esse interesse em fãs de fora do Japão?
Nobuhiro Watsuki: Quando criei Kenshin, a minha intenção não era atingir os fãs fora do Japão. Eu escrevia pensando em algo que estava à minha volta – ou seja, eu estava no Japão e aquilo era voltado aos leitores japoneses. Em primeiro lugar, penso que qualquer obra minha tem que ser primeiramente bem avaliada pelo público do Japão, onde eu vivo, para que seja posteriormente reconhecida no exterior, como aconteceu com Kenshin. Então, não foi algo que pensei na hora da criação: “Isso tem que ser uma obra universal” ou “tem que ser uma obra bem avaliada fora do Japão”. No caso de Buso Renkin, também tive a mesma intenção. Por algum motivo, com Kenshin, tive esse bom resultado com leitores fora do Japão, mas ocorreu de forma natural, e não planejada. Quando crio uma obra, penso que o importante é que eu me divirta com aquilo, para então compartilhar com os meus leitores. Se eles compartilharem desta minha diversão, outros leitores fora do Japão também irão. Então eu penso que é algo assim, que naturalmente flui. Inclusive, agradeço pelo seu comentário sobre Buso Renkin, que foi uma obra um pouco diferente dentre as minhas criações, talvez de mais difícil compreensão. É importante que eu possa observar onde eu poderia ter melhorado.
Alguns fãs estão aqui desde as cinco horas de amanhã, na fila para comprar ingressos para a palestra, vindos inclusive de outros estados. O que você trouxe de novo para os fãs que vieram ver você no Brasil?
Nobuhiro Watsuki: Agora em abril, terminei finalmente minha obra Embalming, e estou trabalhando em uma próxima criação que devo lançar ano que vem, mas que ainda está em uma fase inicial e não posso revelar detalhes. Espero ter algo muito legal para revelar em breve.
Hoje em dia, a profissão de desenhista de quadrinhos é uma das profissões dos sonhos para os jovens. Poderia contar um pouco sobre como é sua rotina de mangaka e teria algum conselho para dar aos jovens que sonham em trabalhar com quadrinhos?
Nobuhiro Watsuki: O mais importante não é simplesmente ficar desenhando, mas sim desenhar com a missão de produzir algo que possa satisfazer aos leitores. Eu posso dizer que nesses meus 20 anos de carreira como mangaka, o sucesso não é graças ao meu trabalho, mas é graças aos meus leitores que me dão toda a força para que eu possa continuar desenhando. O primeiro passo para se tornar um profissional é não simplesmente desenhar apenas aquilo que você gosta, mas sim ouvir o que o leitor está buscando, para que ele possa se divertir com o que você cria. Esse é o primeiro passo: pensar no leitor. Outro ponto muito importante é manter-se saudável. Nós, desenhistas, muitas vezes não dormimos bem, por isso é necessário cuidar da saúde para ter a energia necessária.
Como você cuida da sua saúde?
Nobuhiro Watsuki: Desde que me tornei mangaka, acabei ficando um pouco gordinho, mas resolvi que cheguei ao meu limite. Agora entrei na academia e estou tomando cuidado com a alimentação.
[Neste momento, sua esposa Kaworu Kurosaki chega ao recinto e silenciosamente senta-se ao seu lado].
Kaworu Kurosaki : Posso fazer um complemento? [risos] Eu fiquei um tempo sem vê-lo enquanto ele estava terminando Rurouni Kenshin, e quando o vi novamente, tomei um susto e pensei: “Quem é essa pessoa, assim tão crescida para os lados?”. Cheguei a pensar que aquele Watsuki-Sensei, que era tão magrinho e esbelto até então, foi sacrificado aos deuses em troca do grande sucesso de Rurouni Kenshin. [risos do casal]
A trilha sonora do anime Rurouni Kenshin acabou ajudando muitas bandas a se divulgarem, não apenas dentro do Japão, mas também entre fãs de cultura japonesa em outros países. Muitas dessas bandas acabaram ficando muito famosas, como L’Arc~en~Ciel, Siam Shade e The Yellow Monkey, dentre outras. O que você achou da responsabilidade em ter ajudado essas bandas a chegarem ao público?
Nobuhiro Watsuki: Que essas bandas tenham se tornado mais conhecidas fora do Japão graças ao Kenshin, acho que é fato. Mas penso que a divulgação com o anime foi apenas um empurrãozinho para essas bandas, que já eram boas. Acho que se elas não fossem realmente boas, não teriam feito sucesso, mesmo com suas músicas estando na trilha sonora. Penso que se, de alguma forma, contribuímos para esse sucesso, isso me deixa feliz. Eu não conhecia essas bandas até então.
Como muitas editoras têm lançado concursos de mangá em nível mundial, você acha que algum criador fora da Ásia pode eventualmente conseguir uma publicação em uma editora japonesa?
Nobuhiro Watsuki: O próprio formato do mangá é um formato de quadrinhos tipicamente japonês. No caso do Brasil, talvez pelo fato de ter uma comunidade de descendência japonesa muito grande, essa linha japonesa de quadrinhos está muito presente, talvez até mais do que a linha americana. Como o mangá está se espalhando pelo mundo todo, eu penso que com certeza haverá criadores de outros países tendo suas obras publicadas no Japão em um futuro próximo. Acredito que há duas formas para se chegar a isso. A primeira seria um principiante ir estudar mangá no Japão e trilhar o caminho por lá. Outra maneira seria buscar o reconhecimento em seu próprio país, para então ter a oportunidade de fazer algum trabalho no Japão. Isso porque lá há muitas pessoas querendo seguir carreira na área, e a competição é muito grande. Por isso penso que a segunda opção é a mais viável. De qualquer forma, sei que o mercado brasileiro é difícil para criadores de quadrinhos. Mas vocês podem ter certeza que caso surja um Osamu Tezuka [artista considerado o "pai do mangá moderno"] do Brasil, ele não irá passar despercebido no Japão. Fico na expectativa de que surja tal pessoa aqui.
Na época em que você trabalhou como assistente de Takeshi Obata [desenhista de Hikaru no Go, Death Note, Bakuman, All You Need is Kill, dentre outros], o que você aprendeu que foi extremamente importante na sua carreira? E o que você repassou para seus assistentes Hiroyuki Takei [autor de Shaman King] e Eichiro Oda [autor de One Piece]? Sente orgulho por eles terem alcançado grande sucesso?
Nobuhiro Watsuki: Quando tive a oportunidade de ser assistente do Obata-Sensei, a primeira coisa que pensei foi: “Como pode existir alguém tão habilidoso em desenhar?”. Pensei que nunca fosse conseguir desenhar da forma como ele desenha. Deste então, passei a não focar apenas no desenho, mas sim em dar maiores detalhes à construção dos personagens. Sinceramente falando, Obata-Sensei é uma pessoa única. Ele é tão bom no que faz que seria impossível chegarmos ao seu nível. Por isso, não havia chance alguma de aprender algo das suas técnicas de desenho, mas o impacto de ter trabalhado com ele me fez buscar esse outro foco. Sobre Takei e Oda, eu não me lembro de ter ensinado algo específico a eles, mas lembro de ter tentado passar-lhes a sensação de o quanto é divertido ser um mangaka. O fato de Oda-Sensei ter conseguido um sucesso tão grande é algo que me deixa muito feliz. Ver que nossos sucessores alcançaram o sucesso é sempre algo muito gratificante e prazeroso. Da mesma forma, eu gostaria de ter alcançado o sucesso dos meus antecessores, algo que particularmente não consegui. Por exemplo, na época da publicação de Dragon Ball, a revista Shonen Jump [coletânea semanal onde são publicados os mangás mais populares direcionados ao público jovem masculino] tinha uma tiragem de seis milhões de exemplares – algo que o mangá de Kenshin infelizmente não conseguiu alcançar. Mas, de qualquer forma, alguém a quem eu ajudei a inserir no mercado, no caso, Oda-Sensei, com sua obra, conseguiu isso. Na época do Kenshin, a população de jovens no Japão estava diminuindo, e por isso estávamos preocupados que o mercado de mangá sofresse uma compactação. Com o sucesso de One Piece, ficamos muito felizes que esse mundo do mangá tenha voltado a ter aquela energia.
Essa passagem pelo Brasil de alguma forma serviu de inspiração para você?
Nobuhiro Watsuki: Observei que aqui tudo e todos são alegres. É algo meio “sem regras”, mas de forma positiva. Essa alegria é bastante contagiante, e tenho certeza que isso será refletido em algum novo personagem. Meus personagens costumam ter um aspecto mais sombrio, não são tão alegres.