Há uma reclamação constante por parte de críticos e estudiosos do cinema quanto à produção recente na sétima arte. Parece haver um consenso de que filmes feitos para massa não tem nada a dizer à sua audiência, além daquilo que já é esperado. E o público não sente a falta de uma "mensagem" mais profunda por estar confortável com a situação e aparentemente não exige muito, nem das tramas, nem de si mesmos, uma vez que o "algo mais" pode levar a momentos de reflexão acerca dos mais variados temas. Por isso, chega a ser surpreendente que a adaptação do livro Jogos Vorazes surja como uma produção visivelmente voltada à adolescentes, mas ainda assim com algo a dizer. Na verdade, com muito a dizer. E há tantas nuances na trama que o roteiro chega a se perder um pouco em meio a elas. Não pela história ser complexa, pois nem é dotada de grandes novidades. O futuro pós-guerra em que, pra manter a população controlada e alienada, o governo usa um "reality show" de sobrevivência, já foi tema de outros longas como o oitentista O Sobrevivente ou o japonês Battle Royale. O que realmente faz o texto perder o foco é a quantidade de mensagens que a autora da série de livros, Suzanne Collins, tenta passar aos seus leitores e que aqui são emuladas de forma fílmica pelo diretor Gary Ross, a partir de roteiro da própria escritora.
O longa se passa, boa parte, sob o ponto de vista da protagonista, Katniss (Jennifer Lawrence), mantendo, competentemente, um dos elementos narrativos de sua contraparte literária (a série é narrada em primeira pessoa). E caminha de forma satisfatória, passando por bons momentos como o vídeo produzido pelo governo de Panem, que remete imediatamente à 1984, obra fundamental de George Orwell, ou a crueldade da classe mais alta, os mais interessados em ver os Jogos Vorazes do título, onde 24 jovens lutam entre si até a sobrevivência de apenas um. Toda a preparação para o evento, transmitido ao vivo para os 12 Distritos, é um dos pontos altos da fita. Justamente aqui são expostos os paralelos com a sociedade atual como futilidade, total falta de respeito para com a vida humana e, claro, o controle a partir da velha política do pão e circo (panem et circenses, não à toa, referenciado no nome do próprio país), desde a Roma Antiga, se provando tão eficaz.
Porém, a partir do momento que os Jogos começam pra valer, o texto perde seu teor contestador para assumir uma narrativa simplória, focada apenas na sobrevivência da protagonista e no romance com o jovem Peeta, o outro "tributo" de seu distrito, vivido por Josh Hutcherson. Não que isso seja desnecessário, pois ao contrário de outras histórias com o público-alvo de mesma faixa etária, o amor na obra de Collins não é levado como empecílho para o desenvolvimento da trama, mas como uma força que a move. Além do mais, faz parte da própria evolução dos personagens, principalmente do interpretado por Hutcherson, já que seu arco dramático só cresce a partir do momento que revela sua "queda" por Katniss. O problema é o filme ficar apenas focado nisso por tanto tempo, quando, em várias sequências, se faz necessária a intromissão do espectador que acompanha, de fora, aqueles jovens se matando, mesmo que pra demonstrar sua passividade em relação a tudo que ocorre naquele cenário de sobrevivência (já que essa parece ser uma das mensagens pretendidas pelo texto). Principalmente porque cada um deles é o irmão, sobrinho, neto ou filho de alguém dos Distritos de Panem. Por conta disso, sente-se uma certa estranheza quando essas reações passam a acontecer sem mais nem menos, por conta de uma das ações mais trágicas do longa. Ora, toda morte ali é, por sua própria natureza, uma tragédia. Soa como manipulação por parte do roteiro que o espectador tenha de perceber isso apenas quando algo acontece com um personagem que desenvolveu alguma ligação com a protagonista.
Mas, o filme de Gary Ross é forte em outros sentidos. O já citado desenvolvimento de personagens é um deles, principalmente graças a Lawrence, uma atriz que ainda tem muito a mostrar, já que é evidente seu talento como intérprete. A forma como, apenas com olhares, consegue mostrar como sua Katniss é uma protagonista forte e sem interesse em ser submissa, nem às regras cruéis da sociedade onde vive, ou ao romance central, é uma de suas características mais marcantes. Hutcherson também cria uma dinâmica interessante com a garota e o tempo que ambos estão em tela não soa artificial. Isso sem mencionar os coadjuvantes. A começar pela figura do Presidente Snow, encarnado por Donald Sutherland, governante cuja presença é sentida a todo momento na trama. Woody Harrelson, como o mentor dos jovens, Haymitch, está memorável com seu cinismo em relação aos Jogos. Stanley Tucci se diverte com o papel que lhe coube como uma luva, o apresentador do programa de TV, Cesar Flickerman, com seu sorriso artificial evidenciado por uma prótese dentária. Quem parece abraçar a natureza de seu personagem também é Elizabeth Banks, irreconhecível por baixo da pesada maquiagem que a transforma em Effie. Até mesmo Lenny Kravitz, uma escolha de elenco improvável, se sai bem como o simpático Cinna, responsável por cuidar do figurino e da aparência do casal principal. O que leva ao competente design de produção e a direção de arte, que criam cenários e roupas extremamente criativos e misturam elementos dos mais variados momentos da história humana. Isso fica evidente nos figurinos, que evocam, da contemporaneidade até o exagero da sociedade francesa governada por Luis XVI e Maria Antonieta, e na grandiosidade das paradas no centro da Capital, referências tanto ao Império Romano quanto aos famosos desfiles militares alemães na época de Hitler. Eficiente também é o contraste de cores entre os Distritos mais pobres, sempre em tons acinzentados, e a riqueza colorida dos cidadãos da cidade grande.
Jogos Vorazes faz bonito em momentos que dependem da competência de sua edição e isso fica claro quando os participantes do programa recebem o sinal de que a competição começou. O absurdo da luta, com cortes rápidos ausentes de qualquer trilha sonora, é retratado com uma "beleza" cruel. Assim como a montagem paralela na, já citada, sequência em que finalmente o espectador é confrontado com as reações da população de Panem aos acontecimentos na arena.
Há um outro detalhe sobre a obra de Collins que influencia na experiência cinematográfica. É um fator externo, fora do alcance de seus idealizadores, mas que mesmo assim pode comprometer a função da obra. A verdade é que mesmo os livros quanto o filme (ou filmes, a segunda parte já está em desenvolvimento) foram vendidos pra geração que vê a literatura menor dos Crepúsculos da vida, como algo a ser celebrado. Por isso, não estranhe se na sala de cinema, boa parte de quem estiver assistindo se importe mais com a forma como uma cena de beijo será mostrada do que com a real intenção da trama.
O papel da sociedade frente ao controle dos governos, o uso da mídia para propagar a apatia, a degradação humana retratada como diversão. Há realmente muito sendo dito em Jogos Vorazes. Pena que de forma trôpega, que só não falha ao incitar alguma reflexão em seus espectadores por se tratar de uma alegoria a algo tão próximo à atualidade. Resta saber, no entanto, se seu público está disposto a ler tudo que está nas entrelinhas.
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