Crítica: O Som ao Redor

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“Uma das mais engenhosas e representativas obras do cinema nacional, sobre o estudo do comportamento social humano.”

É bem verdade que o cinema brasileiro cresce em ampla escala atualmente. Mesmo nos tempos áureos do Cinema Novo – movimento criado por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos – os lançamentos não chegavam nem à metade do que se tem hoje. E, os que se destacavam pela sua qualidade artística, a melhor da época, podiam se contar nos dedos. Agora, mesmo com a grande autocracia da Globo Filmes, diretores, de vários lugares do país, fazem seus trabalhos de forma independente. Alguns apoiados pelas leis de incentivo à cultura (ainda deficiente) podem divulgá-los através de vários festivais. Conseguindo, talvez, uma produtora que os coloque em ênfase dentro do circuito. Obviamente há muito que se melhorar, mas estamos, pouco a pouco, conseguindo o nosso espaço. Especialmente o cinema pernambucano que vive um ótimo momento, lançando, no último ano, cerca de dez produções.

É nesse contexto que o ex-crítico de cinema e diretor, Kleber Mendonça Filho, lança seu primeiro longa-metragem. O filme, antes de estrear por aqui, percorreu os cinco continentes, passando por inúmeros festivais, sendo muitíssimo elogiado e conquistando vários prêmios. Talvez por sua já intimidade em coberturas de eventos, como jornalista, e lançando quatro curtas e um documentário (A Menina do Algodão, Vinil Verde, Eletrodoméstica, Recife Frio e O Crítico), Mendonça soube quando, como e onde noticiar sua obra. O que de maneira nenhuma diminui sua competência; vejo justamente o contrário, pois, dessa forma, ele nos dá uma aula de como preparar a plateia para assistir seu show. Porque, no final de tudo, o que realmente importa é saber pôr em tela suas ideias e pensamentos, no intuito que o público se identifique e crie interesse.

Ousando descomedidamente, por ser sua primeira investida num longo filme de 131 minutos, Kleber nos entrega um roteiro repleto de personagens intrigantes, miscigenado por diversas subtramas que se interligam. O que, geralmente, tende a ir por um caminho deveras intricado, onde, fatalmente, acaba sendo concluído de forma negativa, dentro da proposta esperada. Recentemente, tivemos o exemplo de 360, do cineasta Fernando Meireles, que se arriscou, novamente, por esse rumo – já havia feito bem isso em Cidade de Deus-, e agora errou feio. Porém, felizmente, isso está longe de acontecer por aqui. Além de desenvolver, perfeitamente bem, cada personagem, dilatando gradativamente o texto, a fita imprime pungências críticas e sociais a todo o momento.

O título O Som ao Redor, obviamente, não é dado por acaso. Embora seja uma irônica reflexão sobre história, violência e humanidade, este é, acima de tudo, um estudo sobre o barulho. O som que está ao redor de cada personagem, faz fração e reflete totalmente em seu cotidiano. Tudo que escutamos ao nosso redor são vivências e experiências; é exatamente sentir a vida e seus acontecimentos, através de uma linguagem sonora e visual. Sem mesmo precisar de diálogos. Algo que muitos diretores tardam a desenvolver, chamado domínio da linguagem visual narrativa, que muito foi utilizado por mestres como Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock, ou hoje com Terrence Malick e Paul Thomas Anderson. E, já citando referências, talvez a maior delas aqui seja mesmo John Carpenter, precisamente pela construção das cenas. A forma e estilo de suspense explorado nos fazem, imediatamente, lembrarmo-nos de seus antigos trabalhos.

Kleber Mendonça Filho cria uma das mais representativas obras do cinema nacional, realizada nos últimos anos. Engendrando uma narrativa firme, muito seguro em suas escolhas e direcionamentos, sem deslizar ou perde a mão, percebe-se que o diretor realmente compreende o que está fazendo e entende bem da sétima arte. Quadro a quadro é estrategicamente preparado, um primor de mise en scène. Esteticamente impecável, a clara fotografia de Pedro Sotero (Um Lugar ao Sol) conjectura brilhantemente as edificações, transmitindo, quase que instantaneamente, sua frieza que é travestida por uma falsa beleza. Já a trilha sonora, composta pelo musico Dj Dolores (Tatuagem), torna-se fundamental dentro da trama. Quase que inexistindo de forma incidental, Dolores, claramente instruindo pelo curador, foca em criar, através de sons diegéticos, a atmosfera de cada cidadão daqueles condomínios.

O longa é, assertivamente, repleto de atores competentes, que alcançam um realismo espantoso em várias cenas. Como é o exemplo do sempre excelente Irandhir Santos (Tropa de Elite 2), que com seu Clodoaldo, dá outro norte a história. Ou a nova Maeve Jinkings (Amor, plástico e barulho), que vive Bia, uma figura marcante, que é atormentada por latidos e sua vizinha. É conveniente citar que quem assistiu a Eletrodoméstica, do próprio KMF, verá em Bia grandes semelhanças com a personagem do curta. Claro, não podemos deixar de mencionar o nosso protagonista João, interpretado por Gustavo Jahn (Os Residentes), que confere um ar elegante e discreto a seu personagem, e parece ser o único consciente naquela sociedade - e curiosamente ou não, tem o estilo pessoal semelhante ao do seu criador. Mas é em Waldemar José Solha (Era uma vez eu, Verônica), o Sr. Franciso, que reside uma espécie de Don Corleone do conto. Tudo gira ao seu redor. Nada acontece sem que o mesmo autorize. Representa bem o coronelismo latente em pleno mundo globalizado.

É sublime como o cineasta consegue captar a essência de cada figura, seja ela boa ou má, e transpor tudo isso de maneira sutil. A todo o momento somos surpreendidos com situações corriqueiras, do nosso dia a dia, que podem parecer normais, mas sendo vista pela ótica do diretor, torna-se algo sórdido, mesquinho e desumano. Como o fato de utilizarmos falácias para próprio benefício. Ou nos livrando de algo que nos incomoda, superficialmente, dando tolas desculpas. Pequenos detalhes da nossa índole são sutilmente analisados e explanados. E, sabendo que a mudança é uma quase utopia, esse filme é apenas um grito dado, no meio do mato, embaixo de uma cachoeira de sangue, onde ninguém estará ao redor e nem mesmo ouvirá o seu som.

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4 comments

  1. Avatar
    @elaclarissa 7 janeiro, 2013 at 18:17 Responder

    Indo na contramão, se as "centenas de milhares de pessoas" permitirem, digo: "O som" não tem nada demais. Nada. Mas, passa longe de ser ruim, pelo contrário, é um bom filme, apenas um bom filme. O filme que excita pela metade, tipo, um tesão incompleto, porque quando você espera alguma coisa de extraordinária dele, quando vc aguarda… não vem nada, não era pra vir, não foi feito pra ter algo genial. E talvez seja isso que o faça ser bom filme, porque ao sair do cinema, não estava decepcionada, longe disso, estava satisfeita com que o Kleber podia me dar. Como dito, "o som" não foi feito pra ser genial e isso provavelmente foi o que tornou fenomenal para algumas "centenas de milhares de pessoas" Não para mim, para mim ele não passa de um bom filme. Apenas.

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    clausius 25 janeiro, 2013 at 18:49 Responder

    como cinéfilo de carteirinha observo que a muito tempo não vejo um filme ser tão analisado e a cada analise que leio há um novo ponto de vista sociológico-econômico-antropológico-filosófico . Quando algo assim ocorre me diz (mesmo sem a poeira baixar !) que estou diante de algo inovador , logo não se trata apenas de um bom filme , ele é muito mais do que isso pode ter certeza !

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    eduardo 5 fevereiro, 2013 at 05:04 Responder

    Acho que o que gera tamanho interesse pelo filme é a casca aparentemente simples. Parece apenas um filme que fala de uma comunidade, mas o diretor consegue imprimir sentidos maiores, amplos, interessantes e inteligentes dando ao filme um tom social-politico-histórico. Para quem gosta de entender subjetividades é um prato cheio, mas quem gosta de tudo grandioso e claramente brilhante ou explicito é uma obra apenas correta, mas o filme é mais. É só perceber que à cada crítica, novos pontos são citados.

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