Um bom filme consegue ser ainda melhor quando nos desafia. E consegue ser ótimo e sair do lugar comum de tantas outras produções quando desafia a si mesmo. Creiam-me: Mais Pesado é o Céu, mais novo longa-metragem do cineasta Petrus Cariry, alcança estas duplas conquistas. Em primeiro lugar, porque o filme é bom em nos desafiar, não nos dando exatamente o melhor e mais perfeito destino que pintamos em nossas mentes para as vidas transmutadas na tela. E, de quebra, não se aquieta e nem se mostra engavetado dentro do próprio subgênero que abraçou narrativa e visualmente para si: o road movie (filme de estrada).
Ora, se uma das grandes emoções que o filme de estrada nos permite ter é justamente saber que, após tantas agruras, personagens possivelmente encontrarão um oásis de redenção ou um fio de esperança, Mais Pesado é o Céu não segue regras ou nenhuma cartilha pré-definida acerca do que esperar de um road movie. Seus 98 minutos carregam, sim, um sortilégio de emoções e sensações: desesperança, incredulidade, a formação de laços, o reavivamento da esperança, a violência, a falta, o desejo, o amor, o ódio, o horror.
Na história, acompanhamos as incertas trajetórias e as migalhas restantes dos sonhos de dois personagens, a Teresa, pluralmente interpretada pela fantástica Ana Luiza Rios, em um papel que lhe valeu o Prêmio Especial do Júri, em Gramado, e Antônio, sensivelmente vivido por Matheus Nachtergaele.
A tour de force dos dois ganha ainda uma terceira e importante adição: um bebê. Juntos, os três vão em busca de algo no qual se apegar — seja um afeto, a comida ou o leite que forra o estômago, um lar ou um olhar. O apego a um porvir menos doloso faz, na jornada de Antônio e Teresa, por assim dizer, das migalhas de sonhos, uma escada para o céu. Que pode não ser exatamente uma escada, e muito menos para o céu.
É um filme que brilha por muitos fatores. Como dito anteriormente, Mais Pesado é o Céu nos desafia e desafia a si mesmo, pois é um road movie que torcemos para que não seja. Repleto das belezas e minimalismos visuais do sertão nordestino, belamente fotografados e filmados em uma razão de aspecto de tela que valoriza os cenários naturais, e ainda opera ora preenchendo a tela com o elenco em cenas mais fechadas e closes, ora empurrando-os para os cantos da tela, oprimindo-os tanto quanto a vida. Ainda assim, o filme, em prol da dramaturgia e da linguagem cinematográfica, sabiamente apequena seus personagens nos cantos enquanto valoriza a vastidão dos seus cenários.
Caso fosse um típico road movie, significaria que tudo acabaria sendo efêmero, pois sempre haveria um destino outro a se seguir, com novos personagens, desafios e até mesmo alegrias a serem vivenciadas. No caso de Mais Pesado é o Céu, a estrada massacra seus personagens. E o que eles menos querem é, justamente, estarem ali. A busca não é pelo movimento, dessa forma. É pela paz de ter onde fincar o corpo e no que se deitar, descansar e dormir.
Assim, contra todas as melhores expectativas deste subgênero representado pelo filme de estrada, nos vemos torcendo para que a estrada e o destino tenham fim sem que precisemos vivenciar o subgênero em todos os tropos, clichês e reviravoltas, pois desejamos a paz daquelas três figuras centrais.
E provando o quão interessante, intrigante e bom é, o filme nos impõe que tenhamos esse desejo de paz. Queremos o respiro e a calmaria porque, em muitos momentos, os personagens são postos nos cantos da tela, como a imagem um pouco mais acima. Ou a imagem que se segue:
Com a razão de aspecto em 2:39 (o que espaça nossa visão, dá senso de profundidade e valoriza os closes e cenas mais fechadas), tal decisão deixa a personagem ainda mais acuada, sem saída para fazer o quase nada que lhe resta para tentar minimamente sobreviver diante das agruras dos penosos dias que lhe afugentam a cada gota de desesperança e solavanco de fome.
Ainda assim, o filme é hábil em dosar a opressão com relances de esperança. Quando ambos sonham e conversam sobre a expectativa de dias melhores, o longa-metragem não mais os oprime na tela, como lhes dá a tela toda em um canto que favorece o olhar para o horizonte, na busca de um sentido e do valor do viver.
Outro aspecto deveras interessante da parte técnica é a sua trilha-sonora. Em muitos momentos, a trilha ou está olhando para músicas mais antigas e que fazem parte do leque cultural do Nordeste, ou abraça gêneros que quase situam o filme em um campo distópico, com a trilha fazendo uso de sintetizadores e outras artimanhas técnicas de uma trilha mais voltada ao eletrônico, quase emulando o pós-punk.
Em determinado momento, quando acontece algo que é sutilmente construído ao longo do filme, no lugar de vibrarmos e ficarmos felizes, é justamente a incômoda trilha-sonora, aliada à fotografia mais pesada e apocalíptica que acaba substituindo a possível sensação de paz e contentamento por uma sensação clara de estranheza e de que algo não está ou ficará bem.
Filmado em 2021, em um momento em que a pandemia da Covid-19 havia dado certa trégua, Mais Pesado é o Céu, de forma bastante contida, aborda também, vez ou outra, as dores e dissabores vivenciados pelos momentos de trevas que o Brasil real viveu. O filme posiciona-se sem ser necessariamente explícito, deixando com que o(a) espectador(a) entenda o que está sendo dito, seja verbal ou visualmente.
Além disso, a obra ainda aborda diversos fenômenos da exploração do trabalho no Brasil. A dinâmica do subemprego, por exemplo,está lá, seja a partir da uberização, da prostituição ou da indevida exploração da mão de obra alheia.
Se não é uma obra definitiva sobre o próprio Brasil, Mais Pesado é o Céu é um trabalho definidor. Ele basta em si mesmo, sendo um retrato fidedigno daquela realidade que abarca e na qual desaguam (e a água, bem, é parte integrante do filme em alguns contextos) Teresa, Antônio e um bebê.
É um filme raro, pois desafia muitas lógicas e consegue se sair bem em todas elas, seja pela coragem ou pela originalidade na busca de outros fins para novos meios. No mundo de Antônio, de Teresa e de um bebê, cabem também o Nordeste e o Brasil.
Ao fim, é um filme sobre nossos antepassados, sobre alguns milhões de nós e mais ainda sobre os futuros que não desejamos. Justamente por tudo isso e por tantas dores, é um filme real: um documento sobre a vida.
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