Crítica: Vidas ao Vento

373214.jpg-r_640_600-b_1_D6D6D6-f_jpg-q_x-xxyxxMesmo delicado, tocante e sutil, filme é honesto nos vários temas pesados que aborda.

Não é exagero dizer que Hayao Miyazaki é o principal e mais conceituado cineasta da história, quando se fala em animações. Além de elevar a outro patamar o estilo, não sendo esse mais encarado como uma mídia infantil, Miyazaki conseguiu fazer com que acreditássemos, piamente, em suas obras fortes e humanas, a ponto de podermos compará-las a qualquer título live-action, sejam eles de quaisquer gêneros e temas.

Logo em uma de suas primeiras empreitadas em longa-metragem, Nausicaä do Vale dos Ventos (1984), nos deparamos com o conto de uma princesa que – vivendo num futuro distante onde a civilização humana e a maior parte do ecossistema do planeta fora, praticamente, destruída e inabitável, devido a um ar tóxico climático, e restando, apenas, alguns pequenos grupos isolados pela forte corrupção –, tenta compreender os efeitos nocivos da atmosfera e, ao mesmo tempo, salvar seu povo do regime militar de alguns desses bandos. Depois, também, no encantador Meu Vizinho Totoro (1988), que abordou tópicos como amizade e família de forma incomum e singela. Ou, mesmo, em obras-primas como o espiritual, e oscarizado, A Viagem de Chihiro (2001), e o fascinante Princesa Mononoke (1997), que traz um dos debates ambientais mais interessantes e profundos já feitos na sétima arte. Enfim, fica claro como, citando apenas alguns títulos de sua carreira, Hayao se tornou um profissional tão prestigiado.

E, pra felicidade e atinente tristeza de fãs e admiradores, Hayao Miyazaki lança o seu novo e último filme, Vidas ao Vento. Anos atrás, ele havia dito que encerraria a carreira com o bom Ponyo - Uma Amizade que Veio do Mar (2008), mas nada foi, de fato, confirmado. Porém, no último Festival de Veneza, o presidente do estúdio Ghibli, Koji Hoshino, declarou, lendo uma carta do próprio diretor, que depois desse trabalho, Hayao estaria, realmente, se aposentando. E, apesar da enorme lacuna deixada, muitos se perguntaram como seria, então, sua despedida nos cinemas. Uma obra que refletiria essa decisão ou algo longe disso?

Felizmente, Vidas ao Vento é como os demais títulos do diretor – apesar da história ser bem definida em sua plot principal, a fita detêm de um enorme leque de temas e subtramas complexos e pesados que, obviamente, enriquece, ainda mais, o enredo já delicado e encantador. A inocência, clareza e verdade passada nos personagens cria, de imediato, o processo de identificação com o espectador, que, rapidamente, se vê apegado e preocupado com os problemas que estes enfrentam. Principalmente o protagonista do conto, Jirô Horikoshi, que com sua total despretensão e ingenuidade, conquista a plateia. Ainda que isso o torne um pouco distante, mal se envolvendo com outras pessoas, dedicando-se, totalmente, a sua paixão: a aviação.

O que, imediatamente, nos leva a um dos tópicos mais presentes na carreira do diretor, pois seu amor pelo ar está presente em várias de suas obras. A já citada Nausicaä utiliza do voo de aeroplanos para se locomover, principalmente por sempre precisar estar no ar. Mas isso é ainda mais evidenciado no divertidíssimo Porco Rosso - O Último Herói Romântico (1992), que traz a história de um piloto de caça, italiano, que foi transformado em porco. Já em Vidas ao Vento, Jirô, desde criança, sonhava em ser piloto, mas devido a sua miopia não é permitido. Restando, então, a função de engenheiro de aeronaves. Quando não podendo realizar, literalmente, sua paixão, tem a chance de dar forma a esta. Não fosse essa uma espécie de biografia adaptada do designer de avião de caça, Jiro Horikoshi, modelo Mitsubishi A6M Zero, usado durante a Segunda Guerra Mundial pelo Japão, podíamos dizer que, também, seria uma ideia pessoal do diretor. Mesmo porque os sonhos são um dos pontos mais lembrados aqui.

Já falando sobre o plano de fundo, onde vemos pessoas trabalhando, em plena guerra, no intuito de construir eficientes engenhocas que possam facilitar a derrota inimiga, é, no mínimo, curioso, digamos assim, presenciar uma tocante história de amor – que enfrentou um problema patológico gravíssimo ocorrido naquele período – se passar num país que, por determinação política e militar, apoiou o lado nazista. Notamos corriqueiramente, alemãs em bares, morando nos apartamentos locais e trocando diálogos engraçados, no cotidiano. A questão de humanizar um povo, injustamente condenado, que pouco teve a ver com o estado de guerra, são ideias deveras corajosas por parte de Miyazaki.

A narrativa, por si, caminha de forma lenta e intimista, mas nunca aborrecida, demostrando a experiência e domínio de linguagem do cineasta. A natureza, novamente, é bastante explorada. A fita é repleta de planos abertos belíssimos que, em muitas vezes, existem no intuito de despontar a beleza natural do nosso mundo. O preciosismo de detalhes, em alguns enquadramentos, como o gotejar da chuva nas folhas, a fração do sol nos terrenos e o dançar dos ventos são momentos chaves para que embarquemos no universo. Tudo isso auxiliado por uma linda fotografia muito clara, que confere um ar alegre a vívido ao local. Mas é na trilha de Joe Hisaishi que está uma boa porcentagem do poder do conto. Num clássico tom nipônico, combinado a música italiana, temos composições absolutamente fascinantes, do ponto de vista estético. Hisaishi conduz e pontua, com maestria, as várias etapas fílmicas.

No fim, temos ainda um confronto histórico do amor e altruísmo contra uma paixão pessoal quase que obsessiva. Seria nosso protagonista, Jirô, uma figura egoísta? Aliás, será que, lá no fundo, todos nós não somos, de certa maneira, presos aos nossos egos e nunca dispostos a abrir mão de tudo pelo amor? Essas e muitas outras indagações extremamente humanas ficam em aberto para o pensamento após o fim dos créditos. Assim como, também, nos bate a já saudade de ficarmos sem inéditas obras atemporais como essa do eterno mestre Hayao Miyazaki. O legado deixado por esse homem já está e ficará marcado para sempre na cinematografia mundial.

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