A Rainha Diaba: Carnaval, Carioquice, Violência Urbana e Glitter

A Rainha Diaba: Carnaval, Carioquice, Violência Urbana e Glitter

Rainha Diaba é um filme brasileiro de drama e ação, que narra a história de um personagem criminoso do cenário do Rio de Janeiro, livremente baseado em uma pessoa real.

A sinopse fala de um bandido conhecido como Rainha Diaba, que comanda a criminalidade organizada da região fluminense a partir de um quarto dos fundos de um bordel.

Suas garras arranham vários tipos de crimes e contravenções, desde assaltos, roubos e furtos, até a distribuição de drogas na cidade.

Ao saber que um de seus homens está prestes a ser preso, ele resolve "fabricar" um novo culpado, utilizando a pressa e tolice de um bandido peixe pequeno para receber a culpa, também para enganar a polícia.

Nesse interim, acaba sofrendo tentativas de traição das mesmas pessoas que lhe juraram lealdade, mostrando assim que esse cenário é permeado de pessoas nada confiáveis.

Protagonizado por Milton Gonçalves, o filme foi dirigido e roteirizado por Antonio Carlos da Fontoura tem argumento de Plínio Marcos, produzido por Roberto Farias. Também foram produtores não creditados Fontoura e Paulo Porto, com Maurício Nabuco, como produtor executivo.

O filme teve sua première no Festival de Cinema de Brasília, em sua oitava edição. Também integrou a Seleção Oficial de Cannes - Quinzena dos Realizadores 1974.

A estreia no Brasil foi em 27 de maio de 1974, no Rio de Janeiro, que é a cidade onde a história se passa.

A obra foi restaurada alguns anos trás, passando no Berlin International Film Festival em 17 de fevereiro de 2023. Passou também em Portugal, no mês de junho de 2024 na Batalha Centro de Cinema, no Porto. Nessa época, também passou no Japão em 10 de agosto de 2024.

A Ideia original

A figura central do filme é inspirada nos feitos do transformista Madame Satã.

A Rainha Diaba: Carnaval, Carioquice, Violência Urbana e Glitter

Ele era João Francisco dos Santos, conhecido popularmente como Madame Satã, figura emblemática da boemia carioca dos anos 1930.

Vale lembrar que esse A Rainha Diaba não é exatamente uma cinebiografia.

Ele se tornou realidade graças ao sucesso do primeiro filme do diretor, Copacabana Me Engana. A produtora de filmes de Roberto Farias iniciou as negociações para produzir o filme a partir das ideias iniciais de enredo de Fontoura.

O roteirista Plínio Marcos escreveu seu argumento baseando-se em relatos reais que ele conheceu, durante uma viagem à Santos, no Litoral de São Paulo, onde conversou com pessoas que testemunharam a convivência com a Madame Satã real.

Até se pensou em gravar em Santos, no lugar do Rio de Janeiro, mas sabiamente se optou por rodar e situar a história em terras cariocas.

A finalização do roteiro foi feita pelo diretor, que foi peça chave na opção de transferir a trama para a Lapa, uma região boêmia do Rio.

A Composição da Rainha

O visual de Diaba consistia em um homem gay que controla o narcotráfico dessa versão fantasiosa do Brasil e do Rio de Janeiro, que tem é claro vários componentes irreais, mas que são em parte justificados por tudo que corre nos festejos de Carnaval, em algum fevereiro ou março antigo.

Diante da luz vista hoje com a teoria queer, talvez o personagem fosse encarado como trans ou gênero não binário. Na época era um homem gay.

O personagem foi livremente inspirado na história do já citado bandido, o mesmo personagem que foi referenciado o filme Madame Satã de Karim Aïnouz, com Lázaro Ramos no papel central.

A Rainha Diaba: Carnaval, Carioquice, Violência Urbana e Glitter
Arte promocional de Madame Satã

João Francisco destacou-se por ter uma personalidade audaciosa, justamente no bairro da Lapa, no Centro da Cidade que é conhecido por ter uma noite agitada no ano inteiro.

É o lar da boemia carioca, que fica entre a parte nobre da cidade - Zona Sul - e subúrbio da capital fluminense, dando acesso até a Zona Oeste e Zona Norte.

Em comum entre Diaba e Satã há o estilo excêntrico, a estética provocativa, além de uma aura de mistério e transgressão, afinal, ambos iam de encontro a uma luta contra o status quo.

As palavras do diretor

Fontoura classificava seu filme como um thriller pop-gay-black, se referindo diretamente às culturas marginalizadas que, nos anos 1970, passaram a ocupar espaço crescente nas produções artísticas, especialmente nos Estados Unidos.

Também há uma clara conexão a estética dos blaxploitation que despontava na época, estilo esse caracterizado por thrillers policiais, muito sexualizados, protagonizados por atores e atrizes negros, que incorporavam referências sociais e culturais das comunidades pretas norte-americanas.

A Rainha Diaba: Carnaval, Carioquice, Violência Urbana e Glitter

O título original é A Rainha Diaba.

No mundo teve variações como Kuningatarpaholainen na Finlândia, ou デビルクイーン no Japão. Na maioria dos países, se chama The Devil Queen.

A Censura e exibição fora do Brasil

O filme inicialmente não atraiu a atenção dos censores, que o ignoraram em sua estreia nacional em Brasília.

No entanto, convite para exibição no maior festival de cinema do mundo despertou uma nova preocupação no regime.

O filme passou a ser encarado como inadequado para representar o país no exterior. Os censores consideravam ele "excessivamente gay" e potencialmente prejudicial à imagem do país, basicamente por conta de estar programado para passar no estrangeiro.

Os militares investiram na burocracia, para tentar atrasar o processo, a fim de impossibilitar que o filme fosse inscrito dentro do prazo da mostra competitiva de Cannes. Ele então foi excluído da disputa pela Palma de Ouro.

Os organizadores franceses encontraram uma solução alternativa, sugerindo que A Rainha Diaba fosse para a Quinzena dos Realizadores, uma seção paralela do festival, que traz obras de diretores promissores e inovadores.

Dessa forma, o longa-metragem teve espaço no festival de maior prestígio da sétima arte no mundo.

Estúdios e Quem Fez:

A obra foi feita pelos estúdios Canto Claro Produções Artísticas, Filmes De Lírio, Lanterna Magica, R.F. Farias e Ventania Filmes, distribuído pela Ipanema Filmes e Embrafilme.

Fontoura dirigiu Copacabana me Engana, o curta Os Mutantes e Meu Nome é Gal, Espelho de Carne, episódios em Você Decide, também a comédia trash Uma Aventura do Zico, Gatão de Meia Idade e a cinebiografia da banda Legião Urbana em Somos Tão Jovens.

Plínio Marcos escreveu Querô, 2 Perdidos numa Noite Suja e Navalha na Carne.

Roberto Farias produziu Toda Nudez Será Castigada, Quem Tem Medo de Lobisomem?, Aguenta Coração e Os Trapalhões no Auto da Compadecida. Dirigiu Roberto Carlos em Ritmo de Fuga, O Fabuloso Fittipaldi e Pra Frente Brasil.

Paulo Porto produziu Toda Nudez Será Castigada, O Casamento, Fim de Festa, As Borboletas Também Amam.

Gonçalves fez bastante cinema, é lembrado por Na Mira do Assassino, Macunaíma, É Simonal, Natal da Portela e Carandiru, mas fez também novelas e séries, como Irmãos Coragem, Selva de Pedra, O Bem-Amado, Gabriela e À Sombra dos Laranjais,

Bilheteria

Segundo Fontoura, lançamento comercial do filme em 1974 foi um sucesso, registrando 700 mil ingressos vendidos.

A declaração foi dada após a exibição do filme em um festival alemão, em Berlim.

Restauração

Os materiais originais passaram por um minucioso processo de restauração em resolução 4K. Os originais foram retirados do Arquivo Nacional e ao Centro Técnico Audiovisual, sendo tratado pela produtora Janela de Cinema de Recife, em colaboração com a organização Cinelimite e o laboratório especializado Link Digital/Mapa Filmes do Brasil.

Exibiram então essa versão na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2022 e em 2023 o longa foi digitalizado para passar em Berlinale.

O trabalho de preservação foi muito bom. As imagens desse estão muito nítidas, elas valorizam o trabalho da direção de arte e o design de produção.

A Trilha e ambientação

A trilha sonora é do compositor Guilherme Vaz, colaborador de cineastas como Júlio Bressane e Nelson Pereira dos Santos.

Sua ideia é referenciar ao cinema policial dos anos 1970, mesclando influências de jazz, rock e funk norte-americano.

Já a cenografia mira um estilo kitsch, inspirado na cultura dos cabarés brasileiros, por isso é repleta de cores vibrantes, também em atenção ao Carnaval, a mais popular festa do Brasil.

A direção de arte é de Ângelo de Aquino, enquanto a direção de fotografia é de José Medeiros.

Narrativa

Na abertura do filme, toca Índia de Roberto Carlos, enquanto passam os créditos. Pessoas transitam por um cenário estranho, multicolorido.

Há gente de todos os tipos, raças e estirpes, que convivem bem com cores gritantes, presentes nos seus figurinos e nos adereços pendurados pelo cenário.

Há quadros antigos, mesas de madeira, cortinas de papel com tiras de várias cores. Todos esperam o chamamento de alguém, da Diaba, que sequer tem uma introdução para além do fato de fazer os homens todos esperarem.

Entra meia dúzia de pessoas no quarto, que demora a mostrar Milton Gonçalves. Ele usa uma navalha, para cortar os seus pêlos da perna. Consegue parecer ameaçador até na hora de fazer higiene pessoal.

É um homem com postura delicada por um lado, agressiva do outro, que dá ordens aos mal encarados, faz o obeso Coisa Ruim (Procópio Mariano) falar.

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O grupo se preocupa com ações violentas e criminosas, que podem colocar os homens (gíria para a polícia) na cola da Diaba, consequentemente, na cola deles também.

Ela fala direto com Robertinho (Edgard Gurgel Aranha) lamenta que ele possa ser preso.

É por esse motivo que ela decide "plantar" um novo culpado.

Sobre o gênero da Diaba, é bom falar que no próprio filme não existe um consenso sobre o gênero utilizado. Em alguns pontos, se chama ela no feminino, em outros no masculino, embora esse último seja em menor número.

Os outros entes da malandragem

Em uma cena distante da Diaba, Berreco e Zeca Catitu discutem.

Os dois são personagens de figuras famosas do audiovisual brasileiro, no caso, Stepan Nercessian, muito novo, além do finado Nelson Xavier.

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Eles são dois "malucos" da vida bandida, de rotina completamente diferente e filiação distinta entre eles. Um é um assaltante, o outro também rouba, mas tem ações criminosas em outras frentes.

Os Gays:

O grupo das "bichinhas" (como elas próprias se chamam) é muito realista. Parece muito com grupos LGBTQIA + atuais. Nesse ponto o filme é irrepreensível, muito semelhante a realidade.

Toda a movimentação da Diaba visa salvar o seu "bofe", que não é chamado assim, obviamente, já que é um termo mais atual que cabe bem aqui.

É tudo feito para que Robertinho não seja preso. Depois de um assalto, assim que Berreco fica nervoso após vomitar no caminho para casa, ele acaba batendo em um colega seu.

Isso faz com que Berreco se torne o principal candidato a bode expiatório dos crimes que a Rainha Diaba quer imputar a alguém.

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Nercessian é ótimo, atua bem demais, consegue fazer um senhor dueto com o seu par, Isa Gonzalez (Odete Lara) vive entre tapas de beijos com ela, mostra desprezo, amor, desrespeito e ignorância, com todas essas sensações conflitando entre si.

Em um desses momentos, quase é morto, em casa. Sua residência é arrombada e roubada, levaram toda a sua parte no assalto.

A ganância e o motim

Depois disso, se ensaia um golpe de estado, um motim, organizado por Catitu. O personagem malandro planeja roubar o lugar da Diaba, utilizando parte do seu plano, usando Berreca para isso.

Em determinado ponto, Berreco vai a favela, arrumar reforço. Esse ponto é bastante curioso, já que quando sobe o morro toca uma guitarrinha aguda, que embala bem esse trecho, enquanto mostra crianças brincando, praticando esportes, há centímetros de distância da violência dos traficantes armados.

É, de certa a forma, a síntese do que se entenderia por Favela Movies, em filmes policiais brasileiros, que usam comunidades carentes do Rio de Janeiro como cenário, tal qual Cidade De Deus, Tropa de Elite, Alemão etc.

Homicídios

Uma série de assassinatos e roubos começa. O cenário vira um pandemônio e Nercessian brilha bastante, ainda que a trama não acompanhe seu desempenho, já que segue um mistério como ele descobriu onde estava o seu dinheiro.

Aqui se percebe não só as influências do blaxploitation dos EUA - há um pouco de Foxy Brown e Cleopatra Jones - mas também previsões de tendências dentro do cinema americano, já que lembra Warriors: Os Selvagens da Noite, de Walter Hill, lançado em 1979, cinco anos após esse, especialmente no registro de gangues violentas, usando cores gritantes como vestuário.

As bichinhas enfim entram em ação, enquadrando a cantora Iza Gonzales, a namorada de Berreco. Elas convivem bem com a artista até certo ponto, mas viram a chave rapidamente, ameaçando ela para atrair o bandido foragido.

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Munidos dos seus figurinos cheios de purpurina e lantejoulas, torturam a moça, para que ela dê as informações que são necessárias para encontrar o personagem de Nercessian.

A violência que não chocou o Regime

Curioso que com cenas tão violentas, com demonstração de abusos e de várias formas de criminalidade, ainda assim passou pela censura, na hora de ir para o Festival de Brasília.

Talvez tenha passado por demonizar os setores de minorias do Brasil.

Bichas e pretos ameaçam, roubam, mandam no crime do Rio de Janeiro. Os excluídos pelas autoridades acabam se canibalizando, ao menos é assim na visão reacionária do Regime Militar.

Drama universal e atemporal

Ao passo que ocorre tudo dessa forma, o cenário dessa trama poderia ser em Santos, no Rio de Janeiro, em cidades latinas, europeias, asiáticas ou em qualquer lugar.

Fora a questão do carnaval, toda a história poderia se passar em qualquer cenário urbano. O drama é real e universal.

Claro que a festa da carne é algo importante na equação, já que ajuda justificar o fato das pessoas usarem roupas gritantes e maquiagens exageradas, mas a história do crime em si, a configuração de poder paralelo, a condição da lei que não funciona poderia ocorrer na Ásia, em países desenvolvidos na Europa, ou nas parcelas temporais dos Estados Unidos.

Ainda assim, faz diferença que tudo se passe no RJ, especialmente ao mostrar o final, que prescinde demais do personagem de Milton Gonçalves, que aliás, dá o seu sangue, literalmente, na cena de desfecho.

O carioca em essência é arrogante, sendo assim graças as suas praias, ao seu estilo de vida e extravagância. A Diaba é um bom avatar de todos esses sentimentos, um bom resumo da alma e da verve natural do Rio de Janeiro, sem deixar de lado a sua identidade e gênero

A Rainha Diaba ainda possui um final poético, mega violento e sanguinário. É um trabalho conjunto que representa bem a arte do Brasil e as tradições curiosíssimas de uma cidade que já foi o centro do país, mas que recusa ser relegada a irrelevância. É um bom e velho retrato da diversidade do Rio e um aceno a violência urbana que segue sendo um problema na cidade.

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