A trajetória de Elvira, a Rainha das Trevas

A trajetória de Elvira, a Rainha das TrevasElvira a Rainha das Trevas é um filme que mistura elementos de horror, comédia e sedução. Quando chegou ao Brasil fez algum barulho no cinema, mas ganhou fama mesmo como um dos grandes clássicos da Sessão da Tarde e Cinema Em Casa, além de ser um fenômeno dos tempos das videolocadoras.

O longa é uma espécie de continuação do televisivo Elvira's Movie Macabre, capitaneado pela própria Cassandra Peterson que interpreta Elvira, e desenvolve a mitologia estabelecida no programa que foi ao ar entre 1981 e 86.

Para nós brasileiros, a personagem não era tão conhecida, era vista apenas como a bela e icônica protagonista do filme de James Signorelli. Em seu país natal era bem conhecida e popular, uma criação de sua própria interprete que por sua vez, sempre foi uma moça multifacetada e talentosa, que fez de tudo um pouco até alcançar a fama.

O Movie Macabre era bem simples, tinha um formato parecido com o que é explorado na trama do personagem Peter Vincent de Roddy McDowall em A Hora do Espanto, padrão esse copiado a exaustão, utilizado até no Brasil vide o Cine Trash da Band que tinha apresentação de Zé do Caixão.

Elvira apresentava filmes de baixo orçamento, em programação local, e fazia comentários sobre as produções entre curiosidades e interpretações próprias a respeito da narrativa e demais aspectos técnicos das fitas antigas. Ele fez tanto sucesso que entrou em regime de Sindication, ultrapassando as barreiras da tv local sendo veiculado em mais redes.

A trajetória de Elvira, a Rainha das Trevas

Ela que, apesar de timidez de Peterson, ela sempre quis ser artista. Trabalhou como mestres de cerimônias, se arriscou em apresentações de rock na Europa, fato que proporcionou a ela a chance de estar em Roma de Federico Fellini. Também participou brevemente de As Novas Aventuras de Cheech and Chong e 007: Os Diamantes são Eternos.

Fez um sem número de espetáculos dentro do circuito LGBT, especialmente no segmento Drag Queen, e isso a fez incorporar e importar vários elementos para suas performances, principalmente com Elvira.

A medida que o programa ia fazendo sucesso, ela exigia ou aumento ou a possibilidades de explorar mais a personagem que criou. Como o programa era barato, ela ia ganhando mais autonomia e mais cessão de direitos de imagem, de modo que próximo do fim do programa, ela já era dona de todos os direitos, a despeito dos problemas jurídicos da emissora original.

Elvira: A Rainha das Trevas

O roteiro ficou a cargo de três pessoas: Peterson, John Paragon que era ator e escritor de Movie Macabre, Sam Egan que vinha de Incrível Hulk e Manimal.

Peterson queria Tim Burton para dirigir o filme. Os dois trabalharam juntos em As Aventuras de Pee-Wee mas o cineasta estava ocupado com Os Fantasmas se Divertem. A escolha de Signorelli - que vinha de Loucademia de Polícia 2 e de participações como câmera no Fantasma do Paraíso de Brian De Palma - foi por um cineasta acostumado a pegar filmes baratos e fluídos, basicamente para valorizar o texto que primava pelo formato de mini histórias e esquetes. A narrativa tinha uma linha guia e vários pequenos e breves momentos que demonstram como a personagem é singular e diferenciada.

Reza a lenda de que uma das ideias iniciais seria fazer da epopeia de Elvira uma versão de O Mágico de Oz, e há quem diga que no texto dá para notar isso. Confesso que achei quase nenhuma semelhança...

Os estúdios por trás do longa foram a New World Pictures, especializada em fitas baratas de horror, e a NBC Productions, um braço do canal de televisão. Pela equipe de Signorelli e pelos cenários, é fácil notar que esse foi um filme barateado sobretudo pelo uso de material da TV, e nada mais justo que iniciar o drama através de um programa na telinha.

As primeiras cenas são em preto e branco, com imagens do filme It Conquered the Word, produção que Roger Corman lançou em 1956, estrelada por Lee Van Cleef e Peter Graves.

O trecho mostrado põe frente a frente Van Cleef com monstros crustáceos gigantes, e diante desse momento dantesco, Peterson aparece toda montada, criticando a falta de qualidade da obra exibida, mesmo que durante a metragem ela viva elogiando o cinema do mestre Corman.

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Aqui se notam algumas das marcas da personagem, primeiro, nos comentários ácidos, que ocorriam com as obras exibidas e que permearão as percepções de Elvira ao longo do filme. Segundo, a exibição do belo corpo da interprete, que à época, tinha por volta de 35 anos.

Peterson não se interpreta, ela basicamente encarna Elvira, e Elvira não tem receio de usar decotes, não teme em fazer piadas com seu próprio corpo e com sua feminilidade.

A atriz tem queimaduras nos pescoços e ombros, datadas de sua infância, de modo que seu figurino e cabelo cobrem as cicatrizes. Robert Allen Redding, amigo pessoal da atriz, a ajudou a compor o visual da personagem. Ele morreu pouco antes do filme estrear, e o longa é dedicado a sua memória.

Ela se sexualiza porque quer, e se alguém tiver que "comercializar" as partes íntimas de sua encarnação enquanto símbolo sexual, tudo bem, desde que fosse ela mesma a lucrar com isso.

Pode parecer frívolo e tolo, mas em tempos tão conservadores, de Guerra Fria, sob a batuta do presidente republicano Ronald Reagan, isso era de fato algo digno de nota, uma movimentação audaciosa.

A história segue com a personagem se mostrando indócil a investidas não desejadas de homens, inclusive com senhores tocando em seus fartos seios. O filme pune todos que se engraçam para cima dela, quebrando a máxima de que um decote generoso é como um imã para tarados. Todos assediadores recebem a violência como retribuição, claro, de forma comedida, afinal é um filme humorístico.

Vendo hoje, as cenas parecem agressivas, e nem o tom pastelão aplaca essa sensação, e por mais que haja um caráter satírico, não há como negar o tom de denúncia quanto a abusos sexuais.

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Elvira segue reta, decide tentar arrumar-se para dar shows em Las Vegas, e atende a uma carta que diz que ela tem uma herança oriunda de uma tia avó que ela sequer conhecia.

Tudo que a envolve prima por uma inversão de expectativas tremenda. A caminho da pequena cidade de Falwell, ela dá carona a um estranho, a um pretenso assassino que acha que ela será presa fácil. Além de não ser, ela ainda avisa o sujeito que ele esqueceu seu machado, depois de fracassar em fazer mal a moça.

Há questões pontuais que ajudam a formar a identidade galhofeira e única do filme, o primeiro deles, é a música de James Campbell, e o segundo, são elementos de cena pequenos, que ajudam a demonstrar a graça do texto.

Exemplo disso é a placa escrita Kick Ass, no carro dela. O Macabre Mobile, é quase um personagem, um conversível tunado e personalizado, feito sob encomenda para o filme baseado em um Thunderbird 85 preto, que era Sedan mas foi retirado o teto para virar um conversível.

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Seu volante lembra as asas e o corpo de um morcego, até o estofado parece costumes de monstros e vampiros, tudo evoca os clichês de filmes de monstro da Hammer ou Universal.

A pequena cidade Falwell em Massachusetts é o lar do conservadorismo bobo e típico da época e a recepção a figura de Elvira - especialmente pelos adultos - lembra um pouco da trama da novela Tieta do Agreste, com todos olhando para ela como uma profana uma mundana, a mulher perdida da cidade grande que acha que uma vida de pecados pode ser vivida também em um lugar tão ridiculamente pequeno e provinciano.

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Ao longo do filme subtramas banais aparecem, rivalidades com locais, outras tentativas de assédio. Todos giram em torno da bela pin up que é um cruzo de Mortícia e Drácula, seja por sua aparência ou meramente por ela ter uma personalidade própria.

As melhores sacadas do roteiro são dela. Ao falar sobre filmes familiares com o bonitão Bob (Daniel Greene) que trabalha no cinema local, ela diz:

"não tenho nada contra cinema de censura livre, contanto que tenha sexo e violência."

Ela não esconde suas preferências por artes mais saidinhas. No entanto até ela tem seus planos frustrados, encontrando uma cidade onde tudo é proibido, uma espécie de Footlose bizarro.

Outra boa sacada são as profecias que o roteiro jogou e que infelizmente se cumpriram.

Há uma personagem alarmista e defensora da moral, que propaga um boato exagerado, dizendo que haverá distribuição camisinhas no Jardim de Infância do mais absoluto nada, não muito diferente das mentiras contadas atualmente, sobretudo em lugar mais reacionários na época de eleição.

Os receios dos conservadores estadunidense em 1987-88 eram bem parecidos com o agir de Pânico Moral que assola o Brasil no pós 2018, com poucas diferenças visíveis. A bandeira de suposta não sexualização das crianças também era pauta, mas obviamente, como é hoje, serve só de fachada, de pretexto para veicular uma forma de pensamento e ação retrograda.

Os maiores elementos de horror são exatamente esses, o conservadorismo local, que enxerga no visual pálido e cheio de peças de roupa escuras de Elvira, um mal por si só.

Curiosamente, o figurino e postura dela lembram demais a personagem Vampira, de Maila Nurmi. A famosa interprete processou Peterson por plágio, perdendo na justiça, visto que elementos de personagens góticas eram anteriores a Nurmi, incluindo aí até A Noiva de Frankenstein, dos anos 1930.

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Aqui, Mortícia de Família Addams de 1964 (Carolyn Jones), Vampira (Nurmi) e claro, Elvira.

Também há alguns sonhos premonitórios de Elvira, especialmente quando toma posse da casa velha que lhe coube de herança.

No pesadelo aparecem velhos, bruxas, trovoadas, aparições que surgem do nada. Eles servem de aviso para o que ocorrerá perto do final, mas materialista como é, Elvira simplesmente ignora, e busca tentar levantar a casa que tem para venda, além de ter que conviver com o pequeno poodle de sua tia avó, animalzinho fofo que é costumizado por ela, como uma tosa que faz ele parecer um cachorro punk.

Ela consegue ajuda dos jovens da cidade, que a abraçam, afinal, ela além de carismática e sedutora, é bem o que eles querem ser: Livre.

A trajetória de Elvira, a Rainha das Trevas

Os meninos e meninas ajudam ela a reformar o casarão e colocam o local de pé, dando assim prosseguimento a ideia de vender para financiar o sonho de ir a Las Vegas.

O filme possui participação de gente que ficaria famosa, ou ao menos teria alguma relevância. Kurt Fuller por exemplo, faz um sujeito do ramo imobiliário, e ganharia a vida na trupe de Adam Sandler. Outro rosto conhecido é Ira Heiden, que fez um dos internos do hospital psiquiátrico em A Hora do Pesadelo 3: Guerreiros dos Sonhos.

No final a trama toda é uma oportunidade de fazer piadas em tom de paródia, como no número de Flashdance onde Peterson exibe seu corpo escultural com roupas ainda mais curtas das que usava, e acaba despejando piche em si mesma...eram os anos oitenta, esse tipo de piada sempre prevalecia no besteirol.

Passada uma hora o componente fantástico passa a aparecer, a protagonista Elvira segue uma receita do livro da tia, achando que faria um jantar e acaba dando à luz a um monstro de efeitos práticos bem legal, conhecido como Puppets and Casserole.

A trajetória de Elvira, a Rainha das Trevas

Aparentemente ela é descendente de grandes bruxas, destinada a ser poderosíssima dentro da metafísica e do universo fantástico, mas ter ciência disso não facilita as coisas para ela, e heroína passa a descobrir seus poderes de modo acidental.

Não há nada de genial na trama, o roteiro segue tendo seus melhores momentos no deboche e ironia, especialmente na confraternização de um "clube de moralidade", onde graças a um prato que Elvira faz, começa uma espécie de orgia de idosos, claro, cheio de situações de duplo sentido, afinal o filme tinha classificação de 13 anos.

Há piadas com salsichas de linguiças, gente sentando na cara um do outro, trocas de casais. Para bom entendendor...

A sexualidade não é tabu tampouco para Elvira. A personagem sabe que é sexy, faz questão de verbalizar isso e de fazer piadas com o fato de ter belos peitos e coxas. Ela decide atacar os homens que lhe interessam, e age como uma súcubo, embora não obrigue ninguém a fazer o que não quer.

Apesar de não ser sério, os instantes finais guardam momentos assustadores, com o ataque do Tio Vincent, personagem que deveria ter sido de Vincent Price que recusou o papel por achar tudo bem bobo, cabendo a William Morgan Sheppard.

Há elementos de filmes de possessão/exorcismo, há ataques com sanguessugas a um possível abusador de Elvira, uma fogueira típica de histórias de bruxas.

O final de Elvira: A Rainha das Trevas é bastante otimista, afinal, pudera, esse é um filme para toda a família, mas certamente é bem ousado, para além do esperado até, e apresenta para o mundo uma personagem muito conhecida para uma parcela do público dos Estados Unidos.

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As Loucas Aventuras de Elvira

Com o sucesso do primeiro filme, seria natural pensar em uma sequência, que saiu, ainda que bem tardiamente.

Em 2001 com direção de produções de baixo orçamento Sam Irvin e roteiro de o John Paragon, chegava aos cinemas As Loucas Aventuras de Elvira, ou Elvira's Haunted Hills, longa que abriu mão completamente da continuidade anterior.

Peterson retorna como produtora e principal financiadora do filme. Em entrevistas a própria disse que fez o filme basicamente por teimosia, porque achava que tinha mais histórias da personagem para contar.

O elenco conta com Mary Jo Smith, Scott Atkinson, mas o maior destaque certamente é o do compositor e criador do Rocky Horror Picture Show, o performancer Richard O'Brien, que faz o papel de um nobre que recluso, que vive em seu castelo e tem uma série de lacaios que servem aos seus estranhos caprichos.

O esquema do texto é bem parecido com o do clássico, exceto por um fator primordial: é um filme de época.

A trama se passa no século XIX, sem mais nem menos, e não há qualquer justificativa para a voluptuosa mulher que invadiu Massachussetts em 1988, adentrar em 1851 como se fosse daqueles tempos.

O anseio da personagem é o de abrir um teatro de revista parisiense (de fama mundial), e para isso aceita ajuda de estranhos, anda com uma criada e segue uma rotina que também envolve assédios e violências sexuais a sua pessoa.

Aqui, Elvira é menos agressiva com quem tenta apalpar ou bolinar seu belo corpo, e isso não possui uma explicação lógica, talvez seja fruto de ser de outra linha do tempo.

O filme tenta forçar uma trama boba, de uma suposta maldição no castelo de Hellsubus, mas tudo é levado demasiadamente para a galhofa e soa desimportante. Os cenários também são baratos, afinal, o investimento foi pequeno.

A trajetória de Elvira, a Rainha das Trevas

O pouco dinheiro que se tinha foi gasto levando a equipe de produção para filmar na Romênia, fato que pouco ajudou a investir em cenas de castelo, uma vez que tiveram que usar muito isopor e papelão para construir os cenários.

Elvira segue linda e é o diferencial dentro do filme, gosta de quebrar a quarta parede e de se exibir, e os poucos momentos de leveza são graças a ela, que transita bem entre a classificação indicativa livre e a adulta. Mas a maior parte do humor é infantil demais, semelhante a um teatro para crianças.

No final, Loucas Aventuras de Elvira é uma homenagem ao primeiro, mais audaciosa do que seus custos permitiam, servindo apenas para matar as saudades do público junto a personagem.

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A vida pós filmes

Peterson seguiu em apresentações, especialmente com sua personagem mais querida. Participou de realitys shows de programas, telefilmes, teve um revival de Elvira's Movie Macabre que foi ao ar entre 2010 e 2012.

Entre os trabalhos mais notáveis dela está a parceria com RuPaul em seus clipes Glamazon e Responsitrannity.

Também esteve em programas de tv como Face Off, participou como Elvira no seriado Os Goldberg e no especial Scooby-Doo! Halloween de 2020. Marcou presença em especiais como Elvira's Thriller Theatre (1990), 13 Nights of Elvira (2014), Elvira's 40th Anniversary, Very Scary, Very Special, Special (2021), Netflix and Chills with Dr. Elvira (2021), além de The Elvira Show, piloto de 1993 que infelizmente não se tornou série.

Recentemente, a atriz se assumiu bissexual, inclusive apresentando seu par romântico, com quem vive há mais de 20 anos.

Hoje, ela é bastante ativa nas redes sociais, segue fazendo breves aparições como sua personagem mais famosa e até faz participações em produções tarimbadas, tal qual o (peculiar) novo filme de Rob Zombie, Os Monstros.

Ela ficou marcada por Elvira, e jamais teve receio quanto a isso, visto que muito de sua personalidade é compartilhada com esse alter ego macabro, que é por si só uma boa desconstrução da simples donzela em perigo, que se recusa a ser vítima e prefere agir como Femme Fatale.

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