Lançado em 1982, Blade Runner é um exemplo de como o tempo pode ser importante para a recepção de uma obra de arte. Adaptado a partir do livro de Philip K. Dick, o filme de Ridley Scott precisou de alguns anos (e várias versões) para ser reconhecido como um grande clássico, sendo não só um excelente neo-noir, mas também uma ficção científica que mergulha de cabeça em discussões sobre humanidade, rendendo até hoje belos debates. Trata-se também de um filme que termina de maneira bem resolvida, fazendo a ideia de uma continuação naturalmente soar desnecessária. Por sorte, com Blade Runner 2049, o diretor Denis Villeneuve e sua equipe conseguem levar essa ideia às telonas em um longa que mantém o espírito do original, fazendo jus a este.
Escrito por Michael Green e Hampton Fancher (um dos roteiristas do original) a partir do argumento deste último, Blade Runner 2049 se situa trinta anos após os eventos do longa anterior e segue os passos de K (Ryan Gosling), replicante que trabalha como blade runner (ou caçador de androides) para a polícia de Los Angeles, no departamento liderado por Joshi (Robin Wright). Após um encontro com o fazendeiro Sapper Morton (Dave Bautista), K embarca em uma grande investigação que pode revelar segredos importantes e que ainda o leva até o antigo blade runner Rick Deckard (Harrison Ford).
É uma investigação muito bem estruturada, por sinal, permitindo que Denis Villeneuve até repita muito do que havia feito no excepcional Os Suspeitos. Ou seja, além de desenvolver a história com calma, o diretor apresenta determinadas peças com naturalidade e sutileza, de forma que elas podem aparentar não ter importância inicialmente, mas surpreendem ao ganharem sentido mais tarde. No entanto, vale dizer que tudo isso na verdade é usado mais como base narrativa pelo roteiro, cuja ambição principal nivela com aquela do filme original ao ter um interesse maior em dar continuidade aos temas com os quais nos familiarizamos há 35 anos, evitando seguir por caminhos simples para isso.
Sendo assim, Blade Runner 2049 aproveita a riqueza de seu universo para expandir ideias fascinantes, o que faz a investigação conduzida por K representar uma espécie de jornada tanto pela natureza humana quanto pela natureza replicante. E com humanos e replicantes se parecendo cada vez mais (estes até já contam com uma certa divisão ideológica), o filme levanta questões curiosas. Afinal, o que realmente diferencia um do outro? O fato de humanos nascerem e replicantes serem construídos? Isso faz os primeiros supostamente terem alma e os outros não? E se este é o caso, como seria se replicantes pudessem se reproduzir? Questões como essas sempre fizeram parte do cerne de Blade Runner (tanto do primeiro filme quanto do livro de Philip K. Dick), e aqui ajudam a tornar a narrativa muito intrigante, sendo capaz de nos fazer refletir sobre o que é ser humano no fim das contas. E o roteiro é inteligente ao instigar esses pontos sem sentir a necessidade de entregar respostas fáceis, presando muito pela ambiguidade e convidando o espectadora tirar suas próprias conclusões em cima de tudo o que é apresentado.
Ao mesmo tempo, assim como Ridley Scott havia feito em 1982, entrar nesse universo distópico não é uma experiência que Denis Villeneuve torna agradável, já que por mais que ele renda imagens esteticamente belas, ainda se trata de um mundo futurista desesperançoso, dominado por grandes corporações e habitado em boa parte por figuras renegadas. Com isso em mente, Villeneuve impõe um ritmo bastante cadenciado, o que ajuda na ambientação opressiva pela qual passamos durante todo o filme. Além disso, o design de produção faz um trabalho primoroso ao conceber a Los Angeles de 2049 como um lugar que, apesar de ter evoluído tecnologicamente ao longo dos anos, ainda é a metrópole imponente e desolada que conhecíamos, ao passo que a belíssima fotografia do mestre Roger Deakins (desde já um forte concorrente ao Oscar) preenche aqueles espaços com tons sombrios que refletem o estado de espírito dos personagens e da própria narrativa. Isso entra em contraste direto com locais como a empresa do vilão Niander Wallace (Jared Leto) e o esconderijo de Deckard, que surgem na tela com tons mais vivaz que ressaltam o poder do primeiro e o deserto que domina os arredores do segundo. Já a trilha composta por Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch consegue dar toques melancólicos e tensos a narrativa, sendo eficiente também em seus esforços para manter o estilo da clássica trilha que Vangelis fez para o primeiro filme.
Mostrando admirável segurança interpretando K, Ryan Gosling faz do novo protagonista uma figura que se deixa agir pela frieza, evitando exibir um senso de empatia até por outros replicantes, algo que naturalmente o ajuda em seu trabalho. É como se o fato de ele saber que é um replicante o fizesse não ver razão para exibir humanidade, algo sinalizado até pelo desinteresse dele em querer compartilhar uma de suas memórias em determinada cena (“Não são reais, são só implantes”, ele diz). Exatamente por conta desses detalhes é que o arco dramático percorrido por ele se revela tão rico. E se Ana de Armas vive Joi, a namorada digital de K, com uma bem-vinda doçura, formando com Gosling um elo emocional que ajuda a dar peso dramático aos dois personagens, Harrison Ford retorna ao papel de Rick Deckard com uma sensibilidade até maior que a da primeira vez em que encarnou o velho blade runner, dando mais densidade àquele que é, ao lado de Indiana Jones e Han Solo, um dos personagens icônicos de sua carreira. Fechando o elenco principal, Robin Wright se destaca ao fazer de Joshi uma figura forte em sua autoridade, ao passo que Jared Leto vive o ambicioso Niander Wallace de maneira contida e com um constante ar de mistério que o torna um vilão imprevisível.
Ultimamente temos visto franquias famosas ganharem nova vida nos cinemas, com exemplos admiráveis em Mad Max, Star Wars e Caça-Fantasmas. Em meio a isso, Blade Runner 2049 surge como uma experiência surpreendente e enriquecedora. Uma continuação digna da obra-prima que a originou.
excelente crítica, espero 1 alerta de spoiler do filme.