Ichi, O Assassino é um filme japonês que aborda temas como violência extrema, crime organizado, artes marciais e bondage. Dirigido pelo insano Takashi Miike lançado no final de 2001, acabou se tornando um marco do cinema B, graças a violência exagerada e o escracho que o cineasta entrega nessa produção.
A obra é baseada no mangá de Hideo Yamamoto. Pode ser encontrada com seu nome original Koroshiya 1 ou pela versão em inglês, Ichi: The Killer.
A história acompanha a trajetória de personagens ligados ao crime organizando no Japão. Entre as histórias, há a do assassino e personagem-título, que acaba matando um chefão da Yakuza, ao menos é o que todos imaginam.
No entanto, a escolha do filme foi a de favorecer outro personagem que não Ichi. Esse é Masao Takihara, um homem masoquista, interpretado aqui pelo sempre elogiado ator Tadanobu Asano.
O roteiro ficou a cargo de Sakichi Satō, diretor e ator acostumado a adaptar a obra de Yamamoto. As versões de Ichi - inclusive as animadas - foram escritas por ele, como Koroshiya 1: The Animation Episode 0 de Shinji Ishihira de 2002 e 1-Ichi de Masato Tanno, também de 2003.
Nos primórdios do projeto, Miike quis que o mangaká escrevesse o roteiro em forma de mangá, até para facilitar os storyboard. A ideia não foi para a frente, já que Yamamoto teve um bloqueio criativo.
O longa foi produzido por Akiko Funatsu (Cubo: A Caixa do Medo) e por Dai Miyazaki (Primavera Azul), tem produção executiva de Sumiji Myake (Tomie: Replay e King of Fighters: A Batalha Final) e Albert Yeung (O Mito e W.). Vale dizer que a história entre mangá e filme tem algumas diferenças pontuais. Falaremos de algumas delas na parte do artigo que compreende a narrativa.
Yamamoto descreveu o enredo como “uma história de amor” que envolve Kakihara e Ichi. Os dois representam os extremos no mundo BDSM, com Kakihara sendo o avatar do masoquista, já que se mutila e pratica autoflagelo, sentindo prazer na dor, enquanto Ichi é o sádico, o causador de dores em todos os que o cercam.
A trama gira em torno do desaparecimento de um gangster, cujos capangas se preocupam em achar não por ele ser querido e bem quisto, e sim porque ele detém uma quantia enorme de dinheiro, que certamente seria bem utilizado por qualquer um dos bandidos dali.
Kakihara é um assecla desse bandido anteriormente conhecido como Anjo. Os dois eram bastante próximos, tanto que fica a sensação de que eles tinham um caso que envolvia até bondage.
Em meio a discussões sobre manifestações sexuais e de prazer, também se fala da ascensão de um novo e bom assassino de aluguel, que é Ichi. O personagem de Nao Omori cresce na cadeia alimentar dos assassinos, basicamente por conta de associarem ele ao desaparecimento do Anjo.
O filme passou por um grande circuito de festivais, e foram distribuídos sacos de vômito aos espectadores, no TIFF - Festival Internacional de Cinema de Toronto.
Bolsas semelhantes foram entregues durante o Festival Internacional de Cinema de Estocolmo. A ideia era chocar quem ia ver logo de cara, embora a violência e o gore aqui sejam tão caricatos e engraçados que dificilmente causariam náusea na plateia. Ver Ichi, o Assassino hoje é alvo até de risos involuntários, tal é a pachorra da produção.
O longa foi proibido em vários países, incluindo Malásia, Noruega e Alemanha, graças a violência e as polêmicas propostas no roteiro.
Miike sempre foi um profissional de cinema perfeccionista, mas foi ainda mais cuidadoso nessa obra. Ele repetia tomadas a exaustão, inclusive em uma cena de tortura que envolve suor.
Para manipular as glândulas sudoríparas de um ator ele colocou vapor quente embaixo do sujeito, para que ele suasse da maneira conveniente para ele, para que a transpiração dele fosse exatamente como o cineasta tencionava.
Satō fez mudanças pontuais na caracterização de alguns personagens, a pedido de Miike. O mais notório foi com Kakihara.
No filme, ele é um jovem da Yakuza, de aparência estilosa. Usa cabelos descoloridos e um rosto tão repleto de cicatrizes que mais parece uma máscara. Ele usa jaquetas longas e casacos de cetim. Na publicação em quadrinhos ele é mostrado com visual bem diferente.
É um homem de meia-idade, de corpo menos atlético, carrega uma certa pança e é consideravelmente peludo. Seu vestuário é limitado a cores escuras, quase sempre com um terno preto de duas peças com gravata preta.
Seu visual é tão rústico que ele usa cordas shibari finas como roupas íntimas. Em ambas as contrapartes, há muitos piercings por todo o corpo, cicatrizes no rosto e membros, além de sapatos caros.
Curiosamente, Satō também teria uma carreira independente dos trabalhos com Miike. Além de adaptar Ichi para outras mídias, dirigiu Tokyo Yanimushi Parts I e II em 2013 e Garota do Mal em 2019.
Ele é bastante lembrado por fazer cameos, como nesse Ichi, O Assassino e em Kill Bill, como o garçom que os Crazy 88 chamavam de Charlie Brown.
O mangá já possuía uma história com teor adulto, o que se assiste no filme é algo que exacerba ainda mais temáticas sexuais e de relacionamentos. Tudo gira em torno de perversões e relações violentas, que por sua vez, contém muitas inversões éticas.
Não há qualquer pudor em se assumir isso, pelo contrário. O início da ação é frenético, a câmera de Miike passeia pelas ruas de Kabuki-Cho, mostrando detalhes da vida urbana de Tóquio.
Mostra a noite, as bebidas, drogas, criminalidade e um voyeur, que presencia uma relação abusiva, que resulta em estupro. No lado externo dessa casa, se nota uma goteira branca, estranha. Dela sai um líquido espeço, que parece esperma.
Essa é uma tradução literal do mangá, já que Ichi ejaculava nos locais onde cometia os assassinatos. O diretor achou de bom tom colocar isso na cena de introdução dos créditos.
Homens chegam à casa onde um sujeito foi morto, com máscaras e luvas de isolamento. Paredes, vidros, tetos e chão estão decorados com sangue e restos mortais do sujeito que acabou de falecer.
O visual deles obviamente tem a ver com o que é comum em funcionários de limpeza, mas também serve para o simbolismo de que as pessoas comuns tentam se isolar, se manter imunes ao ambiente germinoso dessa versão da Yakuza.
O cidadão comum - ou algo que o valha, já que a equipe de limpeza tem ligação com o crime, ainda que pequena - tenta não se misturar, não se contaminar com esse mundo, com o ambiente tóxico proposto ali.
No entanto o volume de órgãos e vísceras expostas é tão grande, que é impossível não se assustar com o que é mostrado.
Takihara pergunta a um dos chefões do crime, o Kaneko de Susu mu Terajima (que é creditado aqui apenas como Sabu aqui) onde o Anjo pode estar. Essas cenas ocorrem em um cenário com inúmeros bandidos, que devem reverência ao gangster desaparecido.
Kakihara termina esse número entregando a ele um sacrifício, ferindo a si mesmo, cortando sua língua, dando-a como símbolo de sua entrega indiscutível, de sua devoção tanto ao chefe sumido quanto ao mafioso que está a sua frente.
Miike também mostra os métodos de tortura que Kakihara pratica com os seus adversários. Há muitas cenas de confronto, com o bandido utilizando muito agulhas. Ele é grotesco não só com as suas vítimas, mas deixa claro com quem está a sua lealdade. É nauseante na maior parte dos momentos.
Nas investigações uma das testemunhas acusa Ichi de ter matado o chefão. Ele se torna automaticamente o alvo principal, mesmo que por boa parte da trama não fique claro se ele tem ou não culpa disso.
Ichi por sua vez usa um traje especial, preto, com o número 1 amarelado, em atenção ao seu nome, que é uma referência em japonês ao número um.
O mangá mostra o personagem como alguém com pecados, que tem falhas morais, que se excita com a violência, mas que aos poucos, evolui para um quadro mais heróico, isso não ocorre aqui, ao menos não com Ichi.
É mostrado que ele tem libido, que tem desejos sexuais, mas parece incapaz de cumprir qualquer desempenho de transa, seja ativo ou passivo. Nem mesmo quando ele defende uma moça que sofre violência de seu cafetão há menção dele conseguir cumprir seu papel. Ao perceber que não conseguiria ter gozo, acaba matando ela também, acidentalmente.
A cena em que ele corta o estuprador é icônica, ficou famosa por conta do CGI artificial, mas a ação ser caricata é um bom subterfúgio, uma vez que demonstra que o longa se leva pouco a sério. É em muitos momentos um pastiche de filme de ação, ainda que tenha boas cenas de luta, inclusive com muitos golpes de armas brancas afiadas.
Há muito sangue jorrando em tela, a violência gráfica acaba virando um elemento de quebra de quarta parede, resulta em um artifício metalinguístico, torna-se uma crítica a exposição da agressividade em meio a arte, mas sem desdenhar de obras que lançam mão de violência para provar os seus pontos.
Vale lembrar que o filme foi lançado em 2001, antes da onda de torture porn que Jogos Mortais começaria em 2004. Depois dele ainda viriam outras obras como Grotesque, Turistas entre outros. Parece que Miike previu essa nova onda, fazendo a adaptação do mangá debochar do que viria. Certamente o seu cinema influenciaria algumas dessas obras, até por conta de ele ter feito uma cameo em O Albergue de Eli Roth.
Ichi se torna a prova que lendas podem ser enganosas, tanto que é um personagem terciário dentro do filme que carrega seu nome. Até mesmo criminosos secundários, como Karen (Paulyn Sun), tem mais destaque que ele, em especial graças ao sexo.
As ações do filme giram em torno de relações sexuais agressivas e Karen quase chega ao orgasmo, quando se junta a Kakihara para puxar as bochechas de um bandido que antes era próximo dela. Ao quase arrancar a pele do sujeito, ela começa a gemer, fazendo barulhos típicos de quem está próximo de gozar.
Miike perde a linha em vários pontos, em momentos como o golpe no rosto que Kakihara sofre, depois de retirar os grampos que mantinham suas bochechas fechadas, e em tantas outras lutas.
Essa ferida característica é algo conhecido como sorriso de Glasgow ou sorriso de Chelsea, em atenção a prática do crime organizado nessas cidades britânicas. As gangues marcavam esse tipo de ferida em seus inimigos, por isso o personagem Chibs Talford de Sons of Anarchy tem uma grande cicatriz no rosto, já que tem origem irlandesa.
No entanto, a briga mais feia certamente é o duelo de personagem mais patético. Enquanto Kakihara se enfia em lutas sem sentido, só para eventualmente sentir dor, Ichi tem dificuldades para expressar qualquer sentimento, especialmente os amorosos e sexuais.
Quando uma mulher quer transar, ele refuga, mesmo que ela satisfaça até as suas taras doentias de domínio. Ao tentar ter com ela, ele passa as lâminas de seus sapatos em uma de suas pernas, deixando ela perneta. A cena é cômica, mas quase perde esse sentido, uma vez que iguala Ichi a um dos muitos virgens involuntários de meia idade do Japão. Ele simplesmente não consegue se desenrolar minimamente.
Provavelmente o personagem é impotente, e usa esse caráter atrapalhado para disfarçar a própria fraqueza sexual. Ao perceber o quão ridículo é Ichi, Kakihara se envergonha de ter feito a perseguição que fez por toda a história. É curioso como ele fez toda essa jornada mesmo sabendo que o Anjo não foi morto por ele.
Seu ato final é mais um que mira o flagelo próprio. Por conta de ter percebido o desperdício que viveu e por ter notado que dedicou os seus dias a lidar com gente tão ridiculamente frágil, ele fere os tímpanos para não ouvir o grito choroso de Ichi. Faz isso também para parar de ouvir a si mesmo, para se voltar mais a própria mente e pensamento.
Depois disso, imagina um grande confronto, basicamente idealiza uma última e emocionante luta, que não passa de um devaneio. Seu desfecho mistura poesia e ridicularidades, já que ele se entrega a morte, permitindo cair do alto de um prédio, depois que vê uma criança chutando Ichi em prantos.
Ichi, o Assassino é uma maluquice sem vergonha. O filme possui um final dúbio e um desenrolar dramático que louva a especulação e o sentir dor. Seu comentário sobre violência é metalinguístico, uma vez que compara toda o cinema pautado nisso em algo digno de risos, mas faz isso valorizando todo esse mau gosto, digerindo e vomitando de volta a plateia.