Crítica: Eu, Daniel Blake

Como mostra o cartaz, o filme Eu, Daniel Blake venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes/2016. Além disso, disputou e venceu o prêmio francês César, que foi concedido neste sábado (24/02). Entre os seus concorrentes, estava o nosso brasileiro Aquarius, o mesmo que rendeu a polêmica do ano passado pelas manifestações da equipe do filme, justamente em Cannes. Preterido pelo Ministério da Cultura, Aquarius perdeu a vaga da disputa do Oscar para um filme que logo foi esquecido e que foi execrado quando de suas primeiras apreciações, enquanto Aquarius, como mostra a premiação do César, continua aí, disputando prêmios. Pouca gente sequer lembra o nome do candidato escolhido pelo Ministério da Cultura brasileiro para tentar a vaga do Oscar.

Há muita coisa que aproxima os dois filmes. Ambos, embora realizados em países e continentes distintos, são ficções com os dois pés e o resto do corpo inseridos na realidade. Foram realizados por cineastas que costumam pensar e narrar a vida da mulher e do homem comum, seres ordinários que tentam, da maneira que for, sobreviver ao Estado, ao capital, ao inconstante mundo que os rodeia. Filmes que são políticos, sim; mas que são movidos por seus personagens e por suas histórias.

Ao escolher um ator que passou cerca de trinta anos em palcos de stand-up e cujo primeiro filme em longa-metragem é justamente Eu, Daniel Blake, Ken Loach, do alto de seus oitenta anos e retornando de uma aposentadoria que ele havia anunciado em 2014, transforma Dave Johns na persona definitiva de Daniel Blake. Por não ser conhecido no mundo do cinema, Johns e sua interpretação carrancuda de um velho que é capaz de vociferar com o vizinho e ser doce com ele logo após, acaba por facilitar a escolha do título do filme ser homônima ao nome da personagem criada por ele.

Daniel Blake, após um problema no coração, é alguém que luta para conseguir o seu auxílio-desemprego. Em paralelo a isso, conhece Katie, uma jovem mãe de duas crianças que vem de outra cidade que já não lhe dava condições de vida e tenta conseguir um emprego e reforçar sua casa, que está aos pedaços. Daniel Blake, carpinteiro, é alguém que, por sua profissão, logo se oferece para ajudar a mãe e as duas crianças.

O Estado, que vê Daniel e Kate apenas como números, torna-os impotentes diante de tantas burocracias que a eles são impostas e exigidas. O cineasta, todavia, permeia o seu filme com alguns lampejos de humanidade que vem, observem só, justamente de pessoas que sofrem algum preconceito e/ou são escanteadas pela sociedade.

Além de Blake, desempregado, velho e doente, o cineasta concede-nos outros tipos que são reflexos do real para a tela: temos um homem negro que, para sobreviver, vende tênis e outros itens que ele importa do mercado chinês para vender nas ruas, uma mãe solteira e que acaba por decidir, do alto de suas necessidades e das necessidades de seus filhos, fazer algo impensável com o próprio corpo e, ainda que brevemente, mas de forma marcante, um cadeirante que docemente vibra e se importa com a triste situação vivida por Daniel.

O roteiro toma ainda um cuidado extra. Ainda que os funcionários das repartições visitadas por Daniel mantenham-se em estados mecânicos, cumprindo as burocracias e não enxergando os seres humanos que lá estão, o roteiro acha uma brecha para incluir uma funcionária que, embora faça parte de uma destas repartições, consegue instruir Daniel e ter compaixão pela situação dele. Mesmo que seja algo menor, o próprio filme, em determinado momento, faz com que Blake diga o nome dela de maneira proposital, mostrando-a ainda em outros momentos antes e depois do citado.

Ao não contar com trilha sonora, o filme acerta em dois pontos. Primeiro, se abstém da necessidade de exigir do espectador um fator emocional extra, valendo-se apenas da interpretação dos atores e do decorrer da própria narrativa. Segundo, permite que o aspecto documental da obra mantenha-se, visto que está se contando a história de um homem comum e seus pares sem floreios, arroubos e estímulos outros que não os do segmento da própria história.

Infelizmente, o filme comete seus pecados. Sem dar spoilers, basta dizer que em sua penúltima cena, em um rápido diálogo que apenas informa algo, o roteiro vaza, antecipadamente, o seu maior momento dramático, o que acaba por tirar deste o seu peso completo sem necessidade. Um deslize que, embora mínimo diante da totalidade da obra, é negativamente aqui destacado por acontecer justo onde acontece.

Visualmente, o roteiro amarra seu início e fim pelo preto. Se, inicialmente, o filme apresenta seu fade-in (indo da tela preta onde diálogos são entreouvidos para o colorido da primeira cena), em seu final, o filme nos dá um fade-out visu-contextual: não só a imagem vai do colorido para a tela escura dos créditos, como, de maneira magistral, o preto que se vê antes dos créditos é fúnebre, triste e desolador.

Sem cair em cantos dramáticos fáceis, sem apelar para um falso senso de humanidade e sem vilanizar personagens, e ainda assim sem se privar de apontar o dedo diretamente para a burocracia estatal e a crueldade do capital, Eu, Daniel Blake é um pequeno grande filme que nasce de nossa urgência atual por um grito que escancare a surrealidade de um tempo de assujeitamentos e desassujeitamentos. É um longa-metragem pós-Brexit e outras tantas mazelas que acometem e acometeram pessoas pobres, desempregadas e sem perspectivas de crescimento e de vida, e cujos direitos são dificultados, quando não negados.

Jônatas Andrade

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