O letreiro presente no início de Lords of Chaos afirma que ele é pretensamente baseado em fatos mas também em algumas mentiras. O longa lançado em 2018 recebe o nome no Brasil de Mayhem: Senhores do Caos, e conta a origem da banda de Metal norueguesa Mayhem, a partir da experiência do guitarrista Euronymous, um de seus fundadores e idealizadores.
O personagem central do filme é interpretado pelo bom Rory Culkin, que também barra esta versão dos fatos. Dirigido por Jonas Åkerlund, a trama se baseia no livro Lords of Chaos de Michael J. Moynihan, que por sua vez, não colheu informações com os membros vivos da banda, se restringindo a conversar com pessoas da cena Heavy Metal do país nórdico e com materiais da imprensa da época.
Lords of Chaos é bastante criticado por quem conhece o cenário da vertente do metal europeu, mesmo que haja um cuidado visual absurdamente bem empregado em imitar algumas imagens e fotos da época, pelos idos dos anos 1990.
Essas críticas se dão pela forma romantizada que foram representados os meandros do Black Metal, especialmente no que toca o protagonista.
Em se tratando de uma cinebiografia cuja base história é sanguinária e bizarra, apelar para convenções é de fato é estranho, mas esse assunto será abordado mais para frente.
Åkerlund é conhecido por muitas obras de seu passado. Reza a lenda que ele foi baterista do Bathory, um dos avôs do Black Metal, mas hoje é mais lembrado por dirigir clipes famosos, desde recentes como Telephone da Lady Gaga com Beyoncé, Turn of The Page do Metallica, Ray of light da Madonna.
Foi em um clipe do Prodigy, que o diretor se tornou de fato um realizador controverso. O video de da música Smack my bitch up é difícil de encontrar, está parcialmente veiculado no Youtube, provavelmente graças a censura.
Na MTV dos Estados Unidos ele chegou a ser banido, e atualmente é mostrado somente a noite, numa versão editada, com um aviso na abertura do clipe.
Abaixo uma versão do clipe, e que fique claro nele há imagens fortes, de uso de entorpecentes, de violência contra mulheres e escatologias. Se decidir ver, saiba desses detalhes.
Esse clipe é a maior justificativa sobre o trabalho com imagens de Akerlund, a partir daí soa óbvia sua aptidão para contar a história complexa que compreende a criação do Mayhem e da cena de Black Metal na Noruega.
A questão maior dentro do longa é o enfoque em Øystein Aarseth, nome civil de Euronymous. A escolha do filme é a de canonizar o guitarrista, justificando inclusive seus atos ordinários.
Alguns bons momentos, como a introdução do vocalista sueco Pehle Olin é diluída em subtexto, uma vez que não deixa claro a importância dele como pioneiro em várias das marcas do estilo, entre elas, o uso do Corpse Paint.
O Corpse Paint é um tipo de pintura facial, em preto e branco, que imita o tom palido do esqueleto humano. Ao imitar caveira os headbangers retornariam a uma prática pagã antiga, dos povos nórdicos, e isso contém um simbolismo atroz.
No roteiro de Dennis Magnusson e Åkerlund isso é mencionado visualmente tão rápido que se o espectador piscar, perde. O personagem vivido por Jack Kilmer tem pose de rockstar, mas também carrega uma faceta melancolia, é super bem apresentado.
Entre suas boas tarefas, há uma cena em que ele pinta Euronymous, passando a ser junto com ele uma liderança clara dentro do movimento que estava nascendo.
Jack é filho de Val Kilmer, que anos antes, fez outra cinebiografia, The Doors de Oliver Stone, interpretando também um vocalista, Jim Morrison. Tal qual o pai, o jovem ator acaba fazendo um rapaz trágico, que parece ter uma docilidade inata, tão incompreendida que ele vai flertando com o suicídio até chegar lá.
O texto de Lords of Chaos possui dezenas de problemas, mas a construção da ideia de Dead não é um deles. Desde o começo ele é mostrado como alguém perturbado, que é violento com animais, é mostrado como auto destrutivo em todos os minutos que tem em tela.
No entanto, essa bela construção de personagens se restringe somente a Dead e Euronymous.
A partir de agora os spoilers ficarão mais extensos, então se você não sabe sobre a principal história violenta envolvendo o Mayhem e se importa em saber os fatos históricos, retorne depois de ver o filme.
Quem conhece a história, sabe que Varg e o Burzum são bastante importantes para a história do estilo de metal que Lords of Chaos mira.
O personagem é feito por Emory Cohen e é introduzido de um modo muito peculiar. Sua figura é estranha, mal se discorre sobre o projeto que era o Burzum, sobre a influência dentro da cena, além do que ele parece um nerd bobo, caricato e claramente virginal.
A partir do ponto em que há uma virada narrativa e ele se torna alguém digno de nota e alvo de groupies, se perde completamente a ligação com a realidade, por Cohen não parece alguém capaz de trocar um "oi" com uma moça, que dirá se tornar a máquina de sexo que ele vira.
Além disso ele é reduzido a um sujeito que vandaliza muros, picha e coloca fogo em igrejas. Não se desenrola a clara perversão política, uma vez que tinha pensamentos antissemitas e nazifascistas, tampouco se desenrola o fascínio dele pelo estilo de vida pagã, fato que explica o ódio dele aos cristãos.
Ao invés disso, ele é mostrado colocando fogo em igrejas, e isso é pouco. Os espectros políticos também são ignorados no caso de Aarseth, já que ele era fascinado por Vladimir Lênin e fez parte do Partido Vermelho da Noruega. O máximo de referência aqui são fotos de Joseph Stalin na loja que ele fundou para reunir a sua "turminha", a Helvete.
As referências acabam sendo detalhes visuais, só pesca quem conhece bem a historia. Fato é que fora a rivalidade Varg e Euronymous, todo o resto da história é morna.
A atmosfera trabalha vagarosamente a tragédia que ocorrerá, com um uso de trilha sonora bem econômica. O set lista aliás é legal, com músicas de Ronnie James Dio, Cathedral, Bathory, Tormentor e até música brasileira, da banda Sarcófago.
Da parte incidental, há vários momentos tensos e absolutamente silenciosos, como o suicídio na primeira parte do filme, assim também nos momentos de mutilações.
Outra história que tem a importância diminuída é o Inner Circle. Bandas que fizeram parte dele, como Emperor e Thorns mal são citadas, que dirá aprofundadas. Quando se fala delas, não passam de falas rápidas.
Mesmo momentos históricos, como um assassinato cometido por Faust (interpretado por Valter Skarsgård) ocorre praticamente sem citar que ele era baterista do Emperor. Esse momento aliás é curioso por si só, uma vez que o crime não tem sua intenção revelada.
Fica ambíguo o motivo dele ter matado um homossexual que se aproximou, não dá para compreender se foi um crime de homofobia, se foi para retribuir uma tentativa de assédio ou psicopatia no estado mais puro.
Faust entra em cena como um sujeito estranho e amigo dos personagens e sai da mesma forma, não parece ser nada além de um simpatizante da cena, acrescido claro de uma aura de estranhamento e leve insanidade.
Também não se discute a tentativa de resgatar tradições pagãs, que explicariam parte do ódio dos meninos sobre o cristianismo e sobre as igrejas que eles queimam. A escolha do diretor foi a de retratar esses jovens como pessoas mimadas, indissociáveis, que apelam para rebeldia por puro hobby, gente que é uma caricatura de maldade, que procura problemas graças ao equilíbrio financeiro e social do país.
Se eles não tem problemas mundanos, tem de buscar o conflito a todo momento e essa é uma crítica válida, pois cabe não só para os metaleiros dos anos noventa mas também para boa parte do público ávido por cultura pop atual, que caça birras em pautas de inclusão o tempo inteiro, para citar apenas uma fonte de infortúnio e chatice dessa "tropa".
No quesito desconstrução o filme acerta demais, pois trata pessoas assim como dignas de pena. A questão é que para fazer isso, reduziram demais o papel e importância de Varg, transformando ele em um semi virgem que se deslumbra com o fácil acesso ao sexo.
Como biografia o longa esbarra na pieguice de tentar tornar Euronymou em alguém bonzinho. O mesmo sujeito que capitalizou em cima do suicídio do amigo, expondo fotos do seu cadáver em uma capa de álbum é tratado como o cara que se arrependeu da atitude Black Metal, e decidiu cortar os cabelos para normalizar a própria imagem.
Lords of Chaos termina na luta encarniçada de seus dois personagens centrais, que resulta em um ato final que chega a ficar engraçado de tão mal trabalhado que é. A discussão sobre vaidade, ciúmes e demais questões ególatras quase se perde e vai se dirimindo com o tempo, mas ao final fica a sensação de que Åkerlund acha todo esse segmento algo infantil e pueril, e de certa forma, ele tem razão.
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