O Estranho Mundo de Zé do Caixão : A polêmica e transgressora antologia de Mojica Marins

O Estranho Mundo de Zé do Caixão : A polêmica e transgressora antologia de Mojica MarinsO Estranho Mundo de Zé do Caixão é um filme de horror polêmico, agressivo e bastante transgressor. Longa-metragem brasileiro idealizado por José Mojica Marins, é uma das obras mais corajosas da filmografia do artista e é bem menos louvado do que deveria.

Essa produção é marcada também por ser uma das primeiras colaborações entre o realizador e o roteirista R.F. Lucchetti, que aqui assinava Rubens Francisco Luccheti. Essa só não é a primeira participação dele por conta de em abril desse mesmo ano de 1968 ter estreado Trilogia de Terror, filme antológico, onde Mojica e Lucchetti escreveram o segmento Pesadelo Macabro.

Curiosamente, esse O Estranho Mundo de Zé do Caixão também é uma reunião de histórias curtas, de três delas, em formato de antologia, todas dirigidas por Marins. Essa versão chegou aos cinemas brasileiros em novembro de 68.

A obra passa por uma espécie de contos de fadas bizarro em O Fabricante de Bonecas, o conto mudo Tara e o polêmico (e mais pesado do trio) Ideologia, que conta com uma versão estranha de Zé do Caixão.

Mojica não só dirige, mas também escreveu o argumento e o tema musical do filme. O roteiro como se disse antes é de R.F. Lucchetti, enquanto o egípcio George Michel Serkeis que assinava George Mishel, produz, junto a Mojica.

Sobre Serkeis, há de destacar que ele é conhecido como Georginho e é um dos maiores entusiastas da dança do ventre no Brasil. Aqui ele atua no segundo segmento, além de ter colaborado com a cena final do longa-metragem, em uma curiosidade que falaremos mais à frente.

A canção título foi escrita por Marins e por Herminio Giménez (que não recebe crédito) e executada por Edson Lopes e o grupo de samba brasileiro Titulares do Ritmo. Nos créditos iniciais se destacam alguns nomes e funções, a fotografia de cena de Fidelis, cenografia (crédito de direção de arte) de Brutus, decoração Marta e contra-regra Jean Silva. Integram a equipe também o cinematógrafo Giorgio Attili e o montador Eduardo Llorente.

O filme tem poucas variações de nomenclatura. O nome em inglês é The Strange World of Coffin Joe, em atenção ao curioso nome que Zé do Caixão tem em países de língua inglesa: Coffin Joe.

O Estranho Mundo de Zé do Caixão : A polêmica e transgressora antologia de Mojica Marins

Arte do brasileiro Butcher Billy, encomendada pela Arrow Video

Em países latinos de língua espanhola foi chamado de El extraño mundo de Zé do Caixão e União Soviética é conhecido como Странный мир Зе-из-гроба.

A Ibéria Filmes foi o estúdio por trás da obra. A distribuição nacional foi da Bennio Produções Cinematográficas. Nos Estados Unidos foi levado pela
Something Weird Video, em versões legendadas em 1993. A One Eyed Films levou o filme para parte do mundo em 2012.

Há uma curiosa fase de agradecimentos no início, que valoriza o Canal 13 Tv Bandeirantes, em atenção ao número da emissora em São Paulo - Mojica e Lucchetti trabalharam lá, no programa Além, Muito Além -Canal 5 Tv Paulista, também ao 15° Batalhão da Força Pública, Calçados Dima e Colchas Mourat, além de diversas lojas.

O filme foi rodado em São Paulo, a Marmoraria Garrazza Ltda. serviu de palco para O Fabricante de Bonecas, a loja Calçados Dima foi o cenário de Tara enquanto a TV Bandeirantes serviu como o estúdio para o debate do início de Ideologia.

Apesar do título, o personagem Zé do Caixão não aparece no filme, mesmo que o personagem chamado Oãxiac Odéz seja um anagrama de Zé do Caixão (na verdade é o próprio nome, escrito de trás para frente). Muitos fãs encaram que pode ou não ser o Zé do Caixão disfarçado de outra pessoas, mas isso faz pouco sentido.

Mojica se veste como o personagem para apresentar o filme, isso se vê nos releases de mídia física lançados há alguns anos, também nas cópias que canais que passaram na TV paga.

Depois da música tema, o curta inicia de maneira dançante, no meio de um micro show instrumental, estilo jam, em uma espécie de danceteria.

O Fabricante de Bonecas começa estranho, já que se dá em um bar paulista, um lugar brasileiro, que toca jazz e blues, onde jovens dançam de maneira peculiar, tal qual em um rala-coxa, embora alguns deles façam isso de maneira inocente.

A maioria dos que estão presentes são lascivos, há homens passando a mão boba nas partes íntimas de meninas. Assistir isso hoje é estranho, não só por esse conteúdo de gosto duvidoso, mas também pelo teor das falas, com gírias da época que deveria determinar coloquialismo mas parecem extremamente formais, como na linha de diálogo que destaca o fino da farra, falado com um sotaque que puxa tanto o R que chega a ser engraçado.

A trama varia entre o momento dançante, onde moças mostram a pele - fato que faz perguntar se aquele não era um lugar de prostituição também - e a loja do personagem principal, onde há um homem de meia idade, careca em boa parte da cabeça, feito por Rosalvo Caçador

Ele ostenta uma grande barba e cabelos longos por onde ainda cresce e é acompanhado por suas belas filhas, que ajudam a manufaturar as bonecas. Segundo ele, os brinquedos estão cada vez mais perfeitos, ou seja, elas estão melhores a cada ação de trabalho.

Do outro lado da ação, aparecem rapazes, liderados por Sergio, interpretado pelo cineasta Luís Sérgio Person. Ele é um homem encrenqueiro, que anda em bando e decide ir atrás de uma suposta dívida com o senhor. Entre os seus "capangas" se destaca Mário Lima, ator que esteve em filmes de Mojica como Meu Destino em Tuas Mãos e Finis Homini: O Fim do Homem.

A ação não demora muito a acontecer. Eles invadem a casa do senhor, ou seja, aqui há elementos do subgênero que seria conhecido como Home Invasion. Eles querem o "tesouro" que ele guarda, embora não fique claro o que é isso. Eles falam provavelmente sobre o dinheiro dele.

Um dos capangas percebe que as meninas estão se trocando, no cômodo ao lado, praticamente sem perceber a invasão. Não fica claro se eles não fizeram tanto barulho ou se elas não tiveram a percepção mínima de perigo.

Ao mencionar entrar no quarto delas, o velho cai no chão, aparentemente morre e os homens atacam as meninas, em conjunto.

A cena em que os rapazes tentam fazer sexo é meio truncada, mas há de lembrar que esse filme saiu em 1968, no meio da Ditadura Militar. Por mais artificial que parecesse, era bem agressiva.

Esse trecho guarda momentos pitorescos e estranhos, com um retorno dos mortos da parte do senhor. Há também uma fixação de imagem nas cabeças das bonecas sem olhos, determinando que essa parte do corpo era difícil de conseguir.

O que Lucchetti propõe é que o fabricante de bonecas permitiu que tudo ocorresse, para tentar arrumar vítima para si, podendo assim roubar os seus olhos.

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Há quem defenda que as meninas na verdade são bonecas vivas. Essa possibilidade está longe de ser descartada, pode de fato ter algo nesse sentido.

A narrativa segue sexual inclusive no nome, já que o curta se chama Tara.

Há uma introdução com mulheres bonitas em danças eróticas, como se estivessem em uma boate. Logo depois mostra um sujeito observando uma casa, onde uma menina entra e se prepara para se limpar em uma banheira.

Ele é um vendedor de balões, feito pelo produtor George Serkeis, personagem esse que tem um fetiche por pés torna-se obcecado por uma bela mulher, interpretada por Iris Bruzzi que ele vê passar todos os dias.

Esse é um curta meio conceitual, uma referência ao cinema mudo, que mistura cenas de uma procissão, seguido da saída de um casamento que termina trágica.

Consegue ter momentos ainda mais perturbadores que o primeiro, especialmente pelo fato de lidar com pecados universais como invasão de túmulo, violação de cadáver e necrofilia.

O segmento é espiritualmente nojento, graças aos fatos, obviamente, mas também aos animais que ali habitam. Há insetos e ratos por ali, ou seja, se apela para o nojo geral da maioria das pessoas.

Ideologia é o terceiro e mais longo dos curtas. Protagonizado por Marins, que faz Oãxiac Odéz, um professor e teórico de ideias curiosas e muito estranhas.

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Ele é dublado por Laércio Laurelli, que já havia feito esse mesmo trabalho em À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver.

A trama começa em um programa de tv, onde o teórico dá uma aula, sobre sentimentos, pulsões e amor. No final, o mais vocal dos entrevistadores, Alfredo, de Oswaldo de Souza (assinava Osvaldo de Souza) é convidado a ir até sua casa.

O sujeito aceita o convite, inclusive, leva Wilma ou Vilma, sua esposa, a mesma que Odéz convidou momentos antes.

Eles entram na casa para entender o estudo do sujeito. Até recusam saber sobre as teorias do professor, já que leram tudo que poderiam querer, já tiveram contato com elas, mas sim para saber as provas que o fizeram chegar em suas conclusões.

Sem saber o casal acaba caindo em um armadilha, resultando então em um experimento sádico da parte do estudioso da alma humana, sendo assim reduzidos ao pior que a humanidade pode sofrer e oferecer.

Houve uma bela remasterização da parte da Arrow, fato que obviamente embeleza as cenas, mas também demonstram algumas fragilidades do longa. Acaba demonstrando algo que não ficava tão claro nas exibições antigas, na TV a cabo via Canal Brasil: boa parte do elenco utiliza peruca.

Infelizmente elas também denunciam a dificuldade orçamentária em entregar boas maquiagens. As partes machucadas do rosto dos que vivem nos calabouços da casa de Oãxiac.

Quando Alfredo e sua esposa descem, os dois acusam o homem de ser recalcado e sádico, já que mostra não só sexo coletivo ao vivo, mas também tortura, com corpos retorcidos e sangrando, além de liberar que homens canibalizem um prisioneiro.

Essa demonstração da fome humana faz até suavizar outras as cenas de bacanais que apareciam antes.

Esse ponto é bem mais agressivo que os tomos anteriores. A reação do casal é de muito medo. O aspecto visual que chama a atenção é que a parte baixa da casa parece um calabouço de castelo de filmes de monstro.

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Reserva no final um número monstruoso, envolvendo uma donzela e quatro homens depravados, igualados a Cavaleiros do Apocalipse graças a sua selvageria.

O vilão diz que eles eram pessoas distintas, mas depois de um tratamento especial, se tornaram pervertidos, que respondem de maneira brutal aos estímulos que os tornam selvagens.

O curioso é que os homens parecem primitivos até nos olhares superficiais, mas a mulher do experimento também age como alguém insana, reduzida a nada... é bizarro.

Lucchetti é pontual em seu texto, evoca o pior das pessoas e da raça humana como um todo. Não é à toa que os filmes de Mojica sejam tão adorados por plateias internacionais, especialmente os que envolvem essa parceria, já que se compensa a falta de Zé do Caixão com horrores enormes, difíceis de ingorar.

Os terrores levantados por ele são indizíveis. Sendo as imagens toscas ou não, não há como ficar incólume. Os filmes anteriores, protagonizados por Zé do Caixão eram perturbadores, mas aqui a aposta é dobrada.

Se em Esta Noite Encarnarei em Seu Cadáver há um inferno gelado e sobrenatural, aqui o inferno são "os outros", em atenção a Jean-Paul Sartre e seus textos. O lugar "do diabo" não é espiritual, é humano, uma experiência de um homem da ciência ou de uma pseudociência, já que mistura método científico, filosofia e até referências bíblicas, obviamente distorcendo os três tomos citados.

Se ataca o bom gosto, ataca a humanidade, desdenha dela, reduz a espécie a selvageria, faz pouco do conservadorismo, valoriza sadismo e tortura, prevê obras como Saló: 120 Dias de Sodoma e Faces da Morte, no sentido de mostrar a exploração de torturar, também prevê os clichês de quebra do casal bonzinho como em Rocky Horror Picture Show, antecipa parte do plot de O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante de Peter Granaway década antes e prevê os torture porn de Jogos Mortais e O Albergue.

A dupla de pensadores casa bem e diferente dos outros roteiros de Lucchetti, esse quase não tem apelo ao humor, ao menos não de maneira tão óbvia. Há sim uma ironia ácida, que se torna mais palpável com o passar da trama.

Oãxiac Odéz faz do casal o seu último experimento, os reduz a nada, em poucos dias, privando eles de alimento, de suprimentos e de itens básicos da sobrevivência. Ainda recita passagens do livro bíblico de Gênesis.

No final, mistura cenas de um banquete canibal, com inserções de cenas com animais peçonhentos, ao som de um coro de Aleluia.

Muito se discute sobre o desfecho do filme, que é de fato um final sem sentindo algum. Esse foi um momento improvisado e "roubado" de um filme egípcio estrelado por Omar Sharif, chamado Um Estranho em Minha Casa, lançado em 1961. Em 1968 a censura do regime ditatorial brasileiro aumentou substancialmente, graças também ao AI-5, Ato Institucional número 5.

As autoridades obviamente se aviltaram com os temas desse último curta e barraram o filme de ser lançado. Mojica ficou bastante chateado, testemunhas contam que ele até se deprimiu.

Tentou conversar junto aos milicos para liberar o filme, mas não conseguiu. A sugestão que um dos censores deu foi que ele alterasse o final e matasse o “Zé do Caixão”, mas ele já havia terminado as filmagens, não tinha dinheiro para tal.

O produtor George Michel Serkeis tinha muito trânsito entre a comunidade egípcia e se lembrou do filme de Sharif, lançado alguns anos antes. Ele tinha uma cópia consigo e mostrou para Mojica. No final há uma cena de explosão da casa da família de protagonistas e o cineasta achou que seria bom se apropriar de uma das cenas, justamente a explosão de uma casa, para colocar no filme.

Eles então editaram o longa e submeteram mais uma vez. A censura permitiu que o filme entrasse em circuito e assim foi finalizado.

Mojica sempre passou por percalços semelhantes, teve muitos filmes retalhados e podados pela censura, mas ter uma obra inteira embargada poderia fazer ele e Serkeis falirem de vez. Desse modo, o filme estrelado por Omar Sharif serviu ao propósito de dar uma sobrevida ao criador de Zé do Caixão.

O Estranho Mundo de Zé do Caixão é uma senhora antologia, que faz jus ao seu título, mostrando um universo doentio e perturbador, no nível dos outros filmes, sem tirar nem por. Foi uma grande parceria entre o realizador e seu parceiro Rubens Lucchetti, várias outras ocorreriam, algumas muito boas como Exorcismo Negro, mas certamente poucas foram tão inspiradas como essa.

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