À Meia Noite Levarei sua Alma é um filme nacional que entrou para a história, não só por seu conteúdo nefasto, mas também por seu pioneirismo. Oriundo da mente criativa de José Mojica Marins, cineasta, roteirista e ator que encarnava o famoso personagem de horror Zé do Caixão, é reconhecido por muitos como o primeiro filme e horror do Brasil, embora isso seja contestável.
Lançado em 1964, o longa-metragem se tornou ícone do cinema popular brasileiro e com o tempo foi exportado pelo mundo, defendido como a demonstração fiel de como o terror latino pode ser cruel e diferenciado.
A trama se passa em uma cidade pequena, interiorana, como tantas ao redor do Brasil e do mundo. Nela vive uma comunidade, formada por gente comum, trabalhadora, conservadora e supersticiosa. O elemento diferenciado nela é justamente o personagem principal, vivido pelo diretor.
Zé do Caixão é Josefel Zanatas, um coveiro local que tem por mania fazer discursos reflexivos sobre a vida, morte e razão de existir.
Sua mentalidade é diferenciada, ele faz questão de romper com o status quo sempre que pode, bate de frente com diversas convenções sociais e tem uma obsessão enorme em perpetuar seu sangue e sua prole. Por isso, ele quer ter um filho, um herdeiro tão perfeito quanto ele imagina ser, que daria prosseguimento ao que ele considera ser o ideal da raça humana.
Quando percebe que sua esposa não engravidava, o sujeito procura (e caça) um outro "receptáculo" para a sua semente, então começa uma jornada de tragédias, mortes, suicídios e tentativas de roubo de alma.
Os créditos iniciais são bastante curiosos. Mojica, como dito antes, é o diretor, mas ele teve como co-diretor Ozualdo Candeias. O argumento e roteiro são de Mojica, mas há créditos de script para a atriz Magda Mei e para Waldomiro França.
São produtores Arildo Iruam, Geraldo Martins Simões (que assinava Geraldo Martins) e Ilídio Martins Simões (que assinava Ilídio Martins) a direção de produção é de Nelson Gaspari.
Giorgio Attili é o diretor de fotografia e Osvaldo de Oliveira o assistente de câmera. Gilberto Marques é o maquiador e os efeitos especiais são feitos por Indrikis Kruskops, que assina também como prod. Cinematográfica.
A obra estreou no Brasil em 9 de novembro de 1964. Seu título original é (obviamente) À Meia Noite Levarei Sua Alma.
Em países de língua inglesa é conhecido como At Midnight I Will Take Your Soul. Em francês é À minuit, je possèderai ton âme, na Finlândia é Keskiyöllä otan sielusi, na Itália é A mezzanotte possiederò la tua anima.
Zé do Caixão ficou conhecido em inglês como Coffin Joe, tanto que é referenciado assim sempre, mesmo que ele não seja referenciado assim nas legendas dos primeiros releases do longa quando passou nos Estados Unidos.
Há a crença de que fitas VHS dele foram encontradas em um galpão velho, de uma distribuidora nos Estados Unidos. Ao colocar as fitas antigas para rodar, se pensava que essa era na verdade um filme de gênero feito nos anos 70 ou 8 e não uma obra tão antiga quanto essa, que saiu em 1964.
A obra foi filmada em treze dias, foi rodada inteira em um estúdio de 600 metros quadrados em São Paulo-SP, com exceção de duas cenas externas Membros da equipe de produção foram presos quando foram descobertos derrubando árvores em um parque no centro de São Paulo, as árvores estavam sendo usadas como parte do cenário do estúdio.
Para conseguir atingir o valor previsto para o orçamento, Mojica vendeu sua casa e carro para financiar o projeto. O diretor vinha de algumas obras cuja registro é difícil de conferir, ou por não existirem ou por estar inacabados, algo aliás comum a filmografia dele.
Os tais filmes se chamam Beijos a Granel, Sonhos de Vagabundo e A Voz do Coveiro estão no Museu da TV, ou seja, o público comum tem pouco acesso. Eles foram lançados em 1946, 47 e 48 respectivamente, já em 1955 houve o inacabado Sentença de Deus.
Entre os que foram lançados e são "encontráveis" há A Sina do Aventureiro e Meu Destino em Tuas Mãos. Ele fecharia a trilogia de Zé com Essa Noite Encarnarei no Seu Cadáver de 67 e Encarnação do Demônio somente em 2008.
Depois começaria uma grande parceria com R.F. Lucchetti em O Estranho Mundo de Zé do Caixão, Finis Hominis - O Fim do Homem, Exorcismo Negro etc, além do programa de TV Além, Muito Além do Além.
Nessa época, atuou em diversos filmes, como em Éramos Irmãos de Renato Ferreira, O Diabo de Vila Velha de Armando de Miranda e Ody Fraga e O Cangaceiro Sem Deus de Oswaldo De Oliveira.
Candeias se tornou diretor e grande parceiro de Mojica. Fez A Margem em 1967, O Acordo no ano seguinte. Ainda em 68 ele dirigiu parte da Trilogia de Terror junto a José Mojica Marins e Luiz Sergio Person. Dirigiu também o faroeste Meu Nome é... Tonho e A Herança, que é baseado em Hamlet de William Shakespeare
Iruam produziu apenas esse, Geraldo Martins Simões e Ilídio Martins Simões idem. Magda Mei estrelou e escreveu apenas esse, ao menos é o que diz os parcos registros sobre a sua filmografia e a dos colegas.
O filme ganhou o Prêmio Especial no Festival Internacional de Cine Fantástico y de Terror Sitges na Espanha, em 1973. Também levou o Prêmio L’Ecran Fantastique para originalidade, em 1974, o Prêmio Tiers Monde da imprensa mundial, na III Convention du Cinéma Fantastique na França, em 1974 também.
O papel principal recaiu sobre Mojica depois que o ator original saiu. Ele vestiu um terno preto e acrescentou uma cartola. Ele tinha unhas muito compridas, então o maquiador acrescentou longas unhas artificiais em seus dedos.
O lançamento do filme coincidiu com a tomada de poder das forças armadas na Ditadura Civil e Militar. O Brasil havia dissolvido seu conselho nacional de censura e deixado essas decisões para estados individuais.
Dessa forma o longa foi proibido em alguns estados e exibido com grande sucesso em outros. Alguns dos comités de censura estavam menos preocupados com a representação da violência do que com o que consideravam blasfémia.
O filme fez tanto dinheiro no Brasil que um cinema no centro de São Paulo o exibiu durante quatro meses. No entanto isso não se reverteu em fortuna para Mojica, que a fim de conseguir financiar sua obra, vendeu cotas de bilheteria, terminou endividado, conseguiu algum retorno financeiro apenas quando excursionou com esse e com outros filmes pelo Brasil, cobrando ingresso para exibição não só do filme, mas também de espetáculos circenses mil.
Ainda assim ele juntava o dinheiro arrecadado em uma produção e investia na próxima. Se mantinha ativo na parca indústria cinematográfica brasileira pós Cinema Novo e pré era das Pornochanchadas, mas não tinha revertido em verba o sucesso de suas obras.
Há uma lenda urbana em torno do filme, de que depois que a equipe recusou a filmar uma cena porque não havia luz solar suficiente. José Mojica teria apontado uma arma para eles, especialmente para o cinegrafista.
Vários membros da equipe de produção confirmaram a história. e em uma ocasião Mojica respondeu a perguntas sobre o incidente, afirmando que a arma era apenas um adereço cênico, um brinquedo.
O filme começa com o monólogo de Zé, sobre a vida, morte, continuidade do sangue e outras reminiscências bizarras.
Vale lembrar que a voz não é do ator e sim do dublador Laércio Laurelli. Também é bom falar que o nome completo do personagem, Josefel Zanatas não é citado nesse e sim na sequência, Essa Noite Encarnarei em Seu Cadáver.
Mojica Marins concebeu um personagem que é assustador, violento, estranho, bizarro e macabro, desde o primeiro instante de sua obra, até o momento que as luzes se apagam.
A introdução dos créditos ocorre com uma música grave, de Salatiel Coelho e Herminio Giménez, acompanhado de cenas de desespero de personagens sendo molestados, estapeados ou sofrendo torturas com aranhas e altares típicos de religiões de origem africana.
Há ainda uma praga, de uma bruxa interpretada por Eucaris Moraes, que fala para as pessoas não assistirem a esse filme, desejando uma péssima noite. Ela desafia a coragem dos espectadores, prometendo que a meia-noite, levará a alma de quem assiste a esse filme.
A primeira cena de Zé é em um enterro, onde ele aparece caracterizado, de capa e cartola, em uma posição que lembra a de um morcego. A forma como ele aparece lembra inclusive, algumas histórias clássicas do Batman, até algumas que inspirariam o vindouro Batman teatral de Tim Burton e Michael Keaton.
Ele presta condolências a viúva, mas se irrita ao chegar em casa, quando percebe que não há carne em seu prato.
Lenita, a personagem de Valéria Vasques é uma esposa submissa ao seu marido, mesmo que ele seja frio, mesmo com o homem fazendo questão de ser tão passivo agressivo com ela.
Zé do Caixão chega a ser rude, especialmente depois de jogar o prato de comida que a mulher serve na mesa, de maneira violenta, que tem como reação apenas um suspiro leve da mulher.
Ele decide ir comprar carne de carneiro, quer comer naquele dia mesmo, ainda que seja época de páscoa, com o presente na semana santa daquele ano. O acinte ao cristianismo não para ai.
O personagem decide ir atrás de Teresinha, a bela moça feita por Magda Mei. Ela é prometida de seu melhor amigo Antônio (Nivaldo de Lima) ainda assim ele se sente bem o suficiente para dispensar Aristides, que a acompanhava, para ele mesmo levá-la até sua casa.
O personagem é escroto, força um beijo na prometida de seu amigo, que o repreende, mas não é tão vocal quanto poderia ser. Os atos malvados e cruéis dele são tolerados pelas pessoas.
Aparentemente as pessoas tem por ele um respeito temeroso. A postura do personagem é altiva, mas ainda educada, na maior parte dos momentos. Há uma lógica sádica em seus atos, ainda que pareça respeitosa a priori.
Ele fere a mão de um jogador de pôquer, quando o mesmo se recusa a pagar a dívida que contraiu. Também é "benevolente", diz que vai custear o tratamento médico dele, até diz que foi um acidente, mas claramente não foi.
A motivação dele beira o correto, já que Zerequiel (Luiz Antônio Gonçalves) se recusou a entregar o dinheiro da aposta, mesmo que tenha perdido, embora não fique claro se Zé roubou no jogo, já que tinha uma quadra de ases, um movimento que dificilmente ocorreria em qualquer jogo de carteado, ainda mais se houver apenas um baralho na mesa.
As situações são tão irreais que se parecem ser na verdade uma fantasia de grandeza de Zanatas. O momento em que um homem careca decide enfrentar ele é igualmente irrealista, não só pelo fato de todos estarem sempre submissos aos seus atos, mas também pela virada que ocorre.
É dado um close em seus olhos, que se irritam e parecem provocar nele uma força descomunal, que o faz derrubar um sujeito maior que ele, para depois chicotear o homem, como se fosse um dono de animal surrando a sua posse ou mesmo um tutor batendo em seu pet.
Hoje é difícil não achar que as falas do script têm um tom humorístico, especialmente quando ofende os homens que não tem coragem de ir com ele para encruzilhada, mas o conteúdo dos diálogos era bastante pesado.
Zé do Caixão não é só um conjunto de frases risíveis e datadas, ele é cruel, machista, materialista e muito ensimesmado. Tem a obsessão de ter um filho, culpa Zenita por não ter concebido herdeiros. Decide então maltratar ela, apagá-la, chega a jogar uma aranha nela, deixando ela mal.
Antes de dar fim a sua esposa, ele a ameaça e verbaliza que vai tentar roubar Teresinha de Antônio. Acaba cumprindo isso, sem receio de ser culpado de nada, afinal, como ele mesmo diz, uma mulher que concebe filhos não é digna de proteção.
Vale lembrar que a ideia por trás do filme é ser subversivo. O misoginia presente aqui é caricata e parece mais fruto de uma ramificação de misoginia do que qualquer outra coisa. Zé do Caixão é um vilão. Ele odeia tudo e todos. Se uma pessoa comum na década de 1960 sofreria com preconceitos machistas e sexistas, imagina um sujeito como ele.
Não há homem ou pessoa capaz de enfrentar o personagem, aparentemente ele é invencível, mesmo sendo tão absolutamente patético, tanto que faz reforçar a pergunta, se tudo não passa de uma viagem mental do homem, que teria segundo essa teoria delírio de grande, em uma super compensação de sua insegurança.
Até Antônio cai na lábia de Zé. O amigo aceita ir em uma pescaria com o sujeito, caindo assim em uma possível armadilha.
Mas antes disso, ele acompanha o casal de conhecidos, indo falar com a vidente, que vem a ser a mesma bruxa da abertura. A tragédia se acomete sobre Antônio, tal qual disse a bruxa, enterram ele à meia-noite, para que a sua alma fosse preservada da danação. O que não fica totalmente exposto as autoridades é que quem matou Antônio foi obviamente Zé.
No entanto Teresinha não cai na hipocrisia geral, tanto que lê a situação como ela é, chama o "protagonista" de assassino, compreende corretamente o que aconteceu. Ela verbaliza o que a maioria da cidade acreditava, que Zé do Caixão matou seu amigo para roubar Teresinha, mas ela mesma não quer aproximação com o sujeito, mesmo que a cidade seja pequena, com poucas pessoas habitando.
Ela recusa os gracejos dele, reclama o presente, o passarinho que ele comprou do dono do bar. A partir do minuto quarenta a coisa desanda. Zé toma Teresinha a força, zomba dos mortos, até agride os olhos do médico Rodolfo (Ilídio Martins) graças ao fato dele ter suspeitas a respeito do motivo que fez Teresinha se suicidar.
Zé é atormentado por vozes do além, aparentemente, mas que podem ser lidas na verdade como ecos de sua culpa. Essa é uma das demonstrações de seu materialismo da falta de fé e de crenças. Só acredita em sua própria força.
Curiosamente seus atos cruéis e malevolências ocorrem depois que ele tem seus olhos tomados por uma cor escura, fato que pode ser encarado como um apelo ao sobrenatural, uma manifestação de poder superior maligno, já que ele retira forças tão díspares que parecem da ordem sobrenaturais, para além do normal.
Zé do Caixão segue machucando pessoas, zombando das superstições do dia dos mortos.
O final guarda momentos que parecem pesadelos, com o personagem principal sendo perseguido por seus vilões particulares, os homens que foram mortos por ele, em especial Antônio, que tem a pele pútrida e algodões nos narizes.
O efeito que José Mojica Marins usa para simbolizar a procissão dos mortos é simples, mas tem efetividade. Mostra uma cena comum, com correção de cores invertida, onde o claro sobressai o escuro.
No meio dela, carrega um caixão aberto, onde Josefel é exibido. O mais irreal ali nem é exatamente o fato dele se enxergar morto e sim a improbabilidade de a cidade levar o corpo dele em um processo de cortejo. Ninguém gosta dele, jamais haveria tanta comoção e ternura nesse trecho, fato que fortalece a ideia de que é apenas um devaneio, uma projeção do homem, a visão de um cara vaidoso, que é incapaz de notar o quão é carente de uma boa apreciação de seus pares.
Zé entra em um calabouço, depois de sofrer e de se esgueirar pela terra do cemitério. O lugar que para ele era tão familiar se torna palco de um momento terrível, de um momento assustador e bizarro.
O personagem geme, grita, ao ver os corpos de Teresinha e Antônio, carcomidos e repletos de bichos corroendo a pele.
Ele é encontrado caído, sangrando, com os olhos esbugalhados, um corpo estendido, que não consegue permanecer imóvel...é bem estranho, mas a ideia passada é que ele de fato morreu, pereceu mais uma vez, desencarnou, como era esperado.
Mojica fez um filme que é o que é, sem vergonha de assumir o seu gênero e o seu local de origem, uma obra que tem noção de sua localização e que consegue representar bem o misticismo do Brasil e a realidade interiorana, mesmo quando fantasia ela.
À Meia Noite Levarei sua Alma é um clássico, uma obra assustadora, sobre um ser misantrópico e escroto, o início da trajetória de um ícone do cinema de horror, que tem o charme de monstros clássicos, mas com temperos tipicamente brasileiros.