A Praga e a história de restauração de uma obra de Rubens Lucchetti e José Mojica

A Praga e a história de restauração de uma obra de Rubens Lucchetti e José MojicaA Praga é um filme de terror brasileiro que era considerado como perdido por muito tempo. Rodado em 1980, essa obra acabou entrando em circuitos e festivais apenas em 2021, depois do esforço de Eugênio Puppo e sua equipe para restaurar a obra que teve direção de José Mojica Marins com roteiro do contumaz parceiro dele Rubens Francisco Lucchetti.

A história foca na rotina de um casal jovem, que sofre com eventos sobrenaturais, em um caráter de tensão e paranoia graças a uma praga rogada por uma velha senhora, mulher essa que supostamente é uma bruxa.

A trama fala de maneira especulativa sobre crimes, influência espiritual maléfica e até um pouco de canibalismo.

Esse foi um dos vários filmes que Mojica fez e que ele simplesmente não conseguiu concluir a edição, embora isso gere controvérsias até hoje, já que há um aviso nesse de que é o único filme não terminado do diretor.

Em diversas entrevistas de André Barcinski, biógrafo do diretor, há falas sobre manobras bizarras do artista, especialmente no uso do orçamento, que além de baixo e de mal servir um filme, era esticado para filmar mais de uma obra, às vezes até sem que elenco e produção soubessem que estavam gravando obras diferentes.

A história de produção desse é bem curiosa. Mojica se juntou a Lucchetti - que assinava R.F. Lucchetti (seu nome inteiro é Rubens Francisco Lucchetti) - gravando cenas no ano de 1967, sobre a história de um rapaz que sofre uma maldição, depois que uma feiticeira deseja a danação dele.

Essas gravações simplesmente foram perdidas e alguns anos depois, reeditaram a história, com roteiro de Lucchetti e desenhos de Nico Rosso, em uma HQ em preto e branco.

A Praga e a história de restauração de uma obra de Rubens Lucchetti e José Mojica

Em 1980 o cineasta resolveu refilmar essa, mas não conseguiu gravar todos os planos que pensou. Até 2007 as filmagens estavam perdidas, mas não no lixo, como foi falado largamente pela internet, mas sim no acervo pessoal de Mojica, entre pilhas de papéis, materiais brutos em rolos de câmera de filmagem, livros e histórias em quadrinhas.

Puppo encontrou essas filmagens, mas teve grandes dificuldades em entender do que se tratava, uma vez que as filmagens foram gravadas com som direto, para serem dubladas depois - como aliás, era bem comum nas fitas antigas de Mojica Marins.

O material bruto foi gravado em super-8 e foi digitalizado em 2007, época essa que também foram gravadas cenas inéditas, mas por algum motivo, não lançaram A Praga nesse ano, sendo esse corte apreciado apenas para convidados de Mojica.

Só após a morte do diretor, em 2020, que Puppo conseguiu viabilizar um corte parecido com o que os autores pensaram, utilizando até mesmo o auxílio de uma especialista em leitura labial, para entender o que os atores falavam, já que não havia sequer uma cópia do roteiro.

O gibi homônimo tinha diferenças substanciais da trama do filme, por isso precisaram do esforço dessa especialista, para identificar o que foi falado.

Esse material foi digitalizado, cenas adicionais foram filmadas, também foi gravada uma dublagem e cena com Mojica, já idoso, que funciona como um apresentador da história, como um mestre de cerimônias, tal qual ocorria em várias de suas obras mais antigas, as contemporâneas ao tempo de gravação dessa.

A Praga e a história de restauração de uma obra de Rubens Lucchetti e José Mojica

Eugênio Puppo e José Mojica juntos, nos bastidores de filmagem.

A demora de catorze anos ajudou a maturar as ideias, mesmo que o corte não fosse necessariamente aprovado por seu idealizador.

O novo processo de finalização de imagem e som ajudou a resgatar as imagens, assim como a edição que Puppo assina, que disfarça boa parte das cenas menos nítidas, com efeitos que parecem filmes queimados.

Também foram usadas gravações de obras antiga da filmografia do cineasta, como trechos de À Meia-Noite Levarei Sua Alma, O Estranho Mundo de Zé do Caixão, A Estranha Hospedaria dos Prazeres e Delírios de um Anormal, além de A Hora do Medo, de Francisco Cavalcanti, que Mojica participa como ator.

Tudo foi organizado de uma maneira que emula a forma de contar história parecida com o que Marins fazia. Claramente há muito carinho da parte do documentarista que fez Sem Pena e República dos Juízes. Aqui ele é creditado como produtor e montador.

Mojica também foi creditado como produtor, já a produção executiva é de Fábio Dellore em 2007 e de Puppo de 2007 e 2021. Assinam a fotografia Giuseppe Romero em 80 e Andrê Sigwalt em 2007, direção de produção Mario Lima (80), Rodrigo Castellar (07) e Matheus Sundfeld (21), com trilha de Danilo Sene e Sarah Alencar.

Castellar e Puppo dirigiram juntos a dublagem. Os estúdios creditados foram Heco Produções e Produções Cinematográficas Zé do Caixão.

A versão "definitiva" da obra com nova montagem e efeitos, teve estreia mundial no Festival de Sitges, na Espanha, em outubro de 2021. Depois, correu o mundo em dezenas de festivais, em mostras e em exibições especiais. É conhecido como The Curse em boa parte dos países.

O encontro entre Puppo e Mojica ocorreu nos preparativos de uma grande retrospectiva da obra do lendário cineasta, onde passariam 25 filmes dele, com exibições em película de 35mm.

Puppo juntou os negativos originais, filmou cenas adicionais, inseriu efeitos visuais criados pelo técnico Kapel Furman, editou e supervisionou o processo de pós-produção, e o resultado foi mostrado para aqueles que participaram da retrospectiva, mas não saiu para apreciação do público.

Puppo finalizou A Praga em uma empresa dos Estados Unidos, com nova trilha sonora e refilmagem de trechos que não estavam bem encaixados e outros pensados por Lucchetti. A versão de 1967 era na verdade um episódio do programa Além, muito além do além, exibido na Bandeirantes entre 1967 e 1968.

O seriado foi inteiramente perdido num incêndio na emissora. A história em quadrinhos foi lançada em 1969, na edição 2 da revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão, já com arte de Nico Rosso.

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Rubens Lucchetti, lendo o quadrinho baseado em A Praga

O elenco principal dessa versão é formado por Felipe Von Rhima (ou Von Reno) como Juvenal, com voz de Eucir de Souza, Sílvia Gless como a bela Mariana, que tem voz de Débora Muniz, além de Wanda Kosmo como A Bruxa, com voz de Luah Guimarãez.

Vale citar também o documentário curta-metragem A Última Praga de Mojica, dirigido por Puppo, onde ele conta como conheceu e se encontrou com Mojica e como foi o trabalho para trazer essa obra à ribalta

Eugenio viu o acervo pessoal do cineasta, depois conversou com Lucchetti, que afirmiy que Zé do Caixão não era um personagem presente no filme, apenas apareceria eventualmente, mais ou menos como está no filme reeditado.

Logo de cara há um momento bastante especial, que é a abertura estilizada, super charmosa, que mistura imagens originais do filme, com desenhos de caveira e teias de aranha, acompanhado da trilha original, que também remete a época das gravações originais.

Aparece então José Mojica, vestido como Zé do Caixão. Ele introduz a história de Juvenal, pragueja e pergunta se o público crê no sobrenatural, antes de falar propriamente sobre a trama macabra.

Por mais que o personagem esteja mais envelhecido, é inegável que ele está muito imponente, tal qual ocorreu no famigerado A Encarnação do Demônio, último longa-metragem solo do diretor e ator, lançado em 2008.

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Depois aparecem sonhos e devaneios, acompanhados de uma filmagem imperfeita e suja, cheia de momentos assustadores, com caveiras, uma senhora que parece uma bruxa rindo, aparições, sangue escorrendo e efeitos de filme queimando.

Marina, a amada de Juvenal se assusta e tenta acordar o rapaz, preocupada com ele. A moça acha que ele deveria procurar um médico, mas quando ele está acordado, afirma que não deverá fazer nada, afinal, já que aquilo era inofensivo, apenas um pesadelo constante.

Depois desse trecho é mostrada uma cena de sexo que é tão cheia de closes e planos detalhes que é difícil identificar o que ali ocorreu. Fica a dúvida se aquela foi uma cena de intimidade ou se é mais um sonho ruim do sujeito.

Eles vão ao médico e é nesse trecho que Juvenal conta do contato que teve com uma suposta bruxa. A trama volta ao tempo, vai até um dia na semana santa, em que ele e sua namorada foram para o campo, para fotografar.

Os diálogos são engraçados e datados, com falas bem piegas e situações bizarras. Antes dos dois irem em direção a um local que nem mesmo os locais se atrevem a ir, vem o aviso de um capial, que tenta demover eles da ideia de seguir naquela direção.

Eles ignoram o aviso, decidindo descer para fotografar em um lugar "mais belo", ao menos segundo Juvenal, já que claramente é apenas um matagal, igual ao mesmo nível que estava dois passos atrás. Não justificava mesmo avançar, afinal não era diferente do ponto onde Marina e ele conversaram com o sujeito.

Eles atravessam a propriedade de uma estranha senhora, que pede que eles se retirem. O homem a ignora, é desrespeitoso e ela sobe o tom.

Acaba que a personagem pragueja contra ele, dizendo que ele terá chagas, que corroerão suas entranhas.

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Os pesadelos começaram depois da noite desse encontro, mas até antes disso, indícios eram dados de que havia algo errado, já que as fotos que ele tanto brigou para tirar simplesmente queimaram.

O casal procura ajuda médica e o psiquiatra recomenda remédios, afirma que o mal-estar não é nada mais que um problema psíquico, descartando qualquer crendice ou espiritualidade.

Zé do Caixão interfere novamente. Funciona como um antecipador dos desastres da vida dos personagens. Juvenal segue nervoso, briga no trabalho, de modo tão agressivo que seu médico sugere que ele tire férias da firma.

É muito difícil não rir do tom das conversas, já que elas possuem o mesmo espírito gaiato das obras mais humorísticas da pornochanchada. Todas são expositivas e despojadas, lembram um tom de paródia que seria regra nas esquetes de Hermes & Renato, cuja gênese eram justamente os filmes brasileiros dos anos 1970-80.

A solução da mulher é levar seu namorado a um terreiro. Juvenal acha que ver um pai de santo, pode ajudar.

Eles tentam, fazem despachos, mas isso não ajuda muito. Os pesadelos continuam, mesmo com o apelo ao sincretismo religioso tipicamente brasileiro.

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Mojica sabia trabalhar bem com os medos comuns ao povo brasileiro, tanto que coloca referências a religiões de matriz africana, crenças essas bem comuns em todo o mapa do país, mas que causava medo em boa parte da população no geral.

Vale ressaltar que apesar de caricatural, as sessões nos terreiros não são desrespeitosas com nenhum credo. Tudo é tratado de maneira até bastante formal, se comparado a outros aspectos dramáticos.

Marina sugere ir até a senhora, pedir desculpas e o Juvenal aceita de pronto, até faz perguntar o motivo dele não ter ido antes, já que decidiu se munir de humildade tão facilmente.

Não fica claro se ele fez isso por reconhecer que foi grosseiro ou se é por medo de seguir atormentado. De qualquer forma eles tentam retornar ao local, mas chegam tarde, já que ela está sendo velada, pois acabou de morrer.

No pré-enterro, aparece vários figurantes de cenas anteriores, demonstrando que até a figuração era algo onde o diretor economizava. Em relatos sobre Mojica Marins é dado que ele utilizava amigos, alunos, populares e fãs em seus filmes, a maioria sequer era pago.

A velha abre os olhos, mas só Juvenal vê ela fazendo isso. Ela diz que a carne dele vai abrir e arder, como se estivesse nas fornalhas do inferno. O morto fala só com ele.

Juvenal regride na evolução humana, age como um animal, se tranca em seu quarto e não tem interação nem com a sua mulher. Se alimenta apenas de carne, que Marina coloca crua e sem tempero, em um prato.

Um dia ela não resiste a curiosidade, entra e vê por que ele se esconde, graças a uma chaga da bruxa, que tem consciência e até fome, de carne. Em sua próxima aparição, a senhora malvada afirma que ele vai ficar sozinho, que Marina vai abandoná-lo e ele entra em paranoia.

O efeito da chaga é bem feio, aparece muito sangue e uns pontos pretos no abdômen do sujeito. Ele tenta fazer o ferimento, que é um ser parasitário, se alimentar de sua amada.

A cena de ataque é violenta e agressiva, termina trágica e com uma entrega boa de Sílvia Glass, que faz uma careta igual aos pôsteres de A Noite dos Mortos Vivos.

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Depois que Juvenal mata Marina, a Bruxa pergunta quem vai alimentar ele e o cranco.

Os momentos finais são doentios, com ele caindo na tentação do canibalismo e da antropofagia, com a chaga próxima do rosto da mulher, filmado de uma maneira bastante sexualizada.

A coisa toda evolui para uma sequência de horror corporal nojenta e asquerosa, amedrontadora até o talo.

Ele arranca toda a pele da mulher e a dele própria, aparecem dois esqueletos no chão, sangrentos e esculachados, com o som de baterias ao fundo. Esse trecho foi regravado em 2007, inclusive com direção de Mojica e pode ser visto em detalhes no curta A Última Praga de Mojica.

Apesar do aviso no início do filme, de que esse é o único filme de fato resgatado de Mojica, a torcida é que seja o único até agora, sendo o primeiro de muitos, já que é sensacional em conteúdo.

Como o cineasta tinha o hábito de filmar demais, possivelmente há ainda algum material inacabado esperando ser resgatado, embora seja difícil identificar o que seria, afinal, Mojica não está mais vivo. De qualquer forma fica manifesto aqui o agradecimento a finalização dessa e a torcida por mais resgates como esse.

A Praga é uma boa demonstração do que o cinema de Mojica e Lucchetti podia oferecer, uma obra fácil de gostar, de conteúdo universal, divertida, certeira, que é fácil de afeiçoar e que é tipicamente brasileira. Mesmo sendo simples, impressiona a técnica, o modo inventivo de filmar o horror e a naturalidade com que o realizador trabalha os seus elementos de medo.

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