Produções de cinema ligadas ao terror e ao horror normalmente contem premissas bizarras ou situações macabras para além do sangue, exploitation e violência. Não é incomum ver monstros de mitologias diferentes se digladiando nessa amostragem, ou situações bizarras tomando o mundo, e Magic, de Richard Attenborough é um bom exemplo de situação pitoresca, já que reúne um protagonista tímido, vivido por Sir Anthony Hopkins, um boneco de ventríloquo e uma trama cheia de reviravoltas e loucuras.
A história acompanha Corky Withers, um pretenso showman, que faz mágicas e números de comédias em casas noturnas pelo Estados Unidos. Tímido, ele não se dá muito bem nas apresentações e após conversar com seu mentor, Merlin (E.J. André).
O rapaz decide se repaginar, sendo tutelado por seu empresário Ben Greene interpretado pelo veterano Burgess Meredith, acompanhado agora de um acessório pitoresco, um boneco desbocado e cheio de articulações, chamado Fats.
No Brasil o filme recebeu dois nomes, Magia Negra e Passe de Mágica, e fez pouco barulho na época, sendo relembrado após o sucesso de O Silêncio dos Inocentes, onde Hopkins ganhou o Oscar por interpretar um homicida canibal, bem diferente da versão artista frustrado e humilhado que se apresentava neste filme de 1978.
Há de destacar o desempenho de Hopkins, ainda mais diante dessa premissa estranha.
O ator galês está ótimo, já vinha de produções elogiadas, como As Duas Vidas de Audrey Rose e ainda faria uma participação no cinema hermético de David Lynch, em Homem Elefante em 1980, papel que chamou a atenção dos produtores, que o escolheram para fazer Hannibal Lecter.
Aqui o personagem é diferenciado, um homem comedido, introspectivo, tão tímido que interage melhor com um boneco inanimado do que com as pessoas ao seu redor.
Ao observar Fats é fácil perceber que ele é a manifestação física do alter ego artístico do sujeito, mesmo que ele tenha uma personalidade bastante diferente. Isso se percebe especialmente quando Corky fala com ele mesmo estando só a marionete e seu manipulador em cena.
Como a ideia de Attenborough é estabelecer um conto melancólico sobre a ruína, os aspectos externos precisariam colaborar, e nisso, a música de Jerry Goldsmith ajuda demais.
A trilha instrumental estabelece maravilhosamente a tensão que Corky tem ao se apresentar e ao se posturar frente aos seus desafios.
Ele tem rompantes, pequenos ataques descontrolados de raiva e o roteiro demonstra um desequilíbrio emocional considerável já no início, e trata de aumentar a dose aos poucos.
Attenborough é um diretor de carreira curiosa, dono de obras como o clássico Um Grito de Liberdade, com Denzel Washington, além da igualmente peculiar cinebiografia Chaplin, com Robert Downey Junior.
Normalmente ele é lembrado por seu trabalho como ator, especialmente por seu papel como John Hammond no clássico Jurassic Park: Parque dos Dinossauros, mas seu cinema como autor é prolífico, apesar da fama como interprete ser maior.
De volta a trama, Corky resolve se retirar, indo até Grosinger, uma cidade onde morou no passado a fim de espairecer e colocar sua mente em ordem. Ele faz a viagem com um motorista de táxi interpretado pelo comediante Jerry Houser, famoso por dublagens como em Aladdin, Turma do Pateta e Flintstones, e com ele, algumas conversas expõem sua intenção, de conseguir refletir sobre os rumos de sua vida.
Entre conversas de cunho pessoal, onde ele fugia de questões sentimentais e tentativas de validar sua carreira no showbusiness, Corky assume a fama de pessoa desequilibrada, que não sabe exatamente o que quer, e a sucessão de bizarrices que ocorrem após ele sair do carro de Houser só aumenta essa sensação.
Ao se alojar em um quarto, ele encontra Ann-Margret, que faz Peggy Ann Snow, uma mulher por quem ele foi apaixonado no passado.
Ele segue fingindo indiferença e segurança, quer fazer crer que não sente nada, mas deixa claro que Peggy era o motivo da viagem e o mais curioso é que até ela adentrar a trama proposta nesse roteiro de William Goldman, não havia qualquer menção a uma relação pretérita.
Isso poderia ser encarado como uma fragilidade, mas dada a estranheza pontual de Corky, isso não incomoda até porque depois que ela entra em cena, há cenas de flashback, mostrando a infância e adolescência dos dois, que resulta também em outra sequência estranha,
No passado crianças brincam em um pátio com uma bola de basquete, mas sem cesta. Vão passando a bola uma para a outra, mostrando dois atores que aparentemente jamais praticaram o esporte.
Isso pode soar estranho, mas aparentemente é proposital, já que a ideia é remeter isso ao irreal e ao sonhado, além de demonstrar que Corky não está bem mentalmente. Considerando que Goldman é roteirista de produções bem-sucedidas com Todos Os Homens do Presidente e Butch e Cassidy, é difícil refutar que esse era o cálculo, que isso era um artifício para demonstrar a degradação mental do protagonista.
No novo cenário de cabana, o homem demora a revelar seu "amigo" para a mulher, e até tem algum êxito romântico. Aparentemente ele conseguiu aproximação dela por conta de fatores externos a sua própria simpatia e sedução, já que o casamento de Peggy com Duke (Ed Lauter) está claramente em crise.
Diante da situação em que ele vê sua vida sob risco por conta de considerar Duke um homem rude e possivelmente violento, ele apela para Fats, retira o boneco da valise onde era guardado e mais uma vez o usa como um para-raios emocional, como o retentor de sua fúria, e enquanto está com ele, o sujeito tem controle sobre seus sentimentos e impulsos, quando se distancia, isso não ocorre.
Corky age como um viciado, não se sabe se há da parte do objeto uma má influência espiritual, ou se ele associa o brinquedo ao sucesso, e por isso, consegue acertar.
Há ali uma semelhança enorme com o vilão do Batman conhecido como Ventríloquo, que utiliza um boneco que usa a alcunha de Scarface para ser a perfeita mescla do vilão mafioso, com referência a Al Capone, e insano de um modo digno de pena. Fato é que a obra protagonizada por Hopkins é dez anos mais velha que a primeira aparição do personagem na revista Detective Comics.
Na tentativa de retomar o romance com sua amada, o protagonista se mostra inseguro, e fica literalmente furioso ao cometer um erro simples com as cartas que manipula para um truque de ilusionismo.
Ele já não é senhor de seus domínios. Aos poucos sua sanidade se esvai, e sua vida pretensamente perfeita dissolve, como um castelo de cartas mal construído, ou com a espuma que se dissipa ao repousar sobre a água.
Curiosamente nos trinta minutos finais é o aproveitador de talentos feito por Meredith que se tona a voz da razão, já que ele recusa a agenciar o rapaz enquanto ele não se tratar, enquanto ele não procura ajuda.
Como é praxe em um filme de horror, ele acaba pagando com a sua vida, em um momento bastante violento, diga-se, cheio de reviravoltas e retornos.
Ele que funciona em alguns pontos como a consciência do protagonista, acaba sendo esmagado tal qual o Grilo Falante, que faz esse papel no conto As Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi.
A trama se assemelha a uma comédia de erros, e isso fica mais evidente na tentativa que o protagonista faz de esconder o corpo de Ben, incluindo na sequência até o retorno do algoz do mundo dos mortos. Ou de fato ele voltou do além, ou simplesmente o personagem se enganou achando que tinha matado o sujeito.
Para alguém insano, é normal errar dessa forma, e a ambiguidade nutrida ajuda a tornar a história mais simpática.
Corky cuida de Fats como se ele fosse humano, o medica, faz curativos, até o penteia de maneira semelhante a ele próprio. Perto do fim da história eles combinam roupas, mostrando que a relação de dependência mútua só aumentou ao longa da história.
Quando Duke descobre o caso da esposa, Corky fica apavorado, planeja fugir, mas é convencido por seu amigo de madeira a acabar com seu rival.
Entra aí um jogo de cena impressionante e visualmente bem orquestrado, onde Hopkins se esconde de maneira quase invisível, resolvendo agir apenas quando o personagem de Lauter descobre o seu segredo homicida, cometendo assim mais um ato mortal, onde sua mão se confunde com a do fantoche.
Ao final não fica claro quem manda em quem, quem faz o papel de manipulado e manipulador.
Fats parece dar ordens ao ventríloquo, o faz se sacudir e até tenta obriga-lo a matar Ann, mas aparentemente esse era o limite do sujeito, e em uma breve sobriedade, ele decide pôr fim a ambas as vidas, fazendo com que Fats sinta tristeza pela perda do seu amigo e pela dele próprio, mas lamentando primeiro a partida de Corky.
A "mágica" de Magia Negra reside na dualidade, no nonsense e na estranha mistura que Attenborough, Hopkins e Goldman fazem entre comédia e horror. Para o fã de filmes B e para o aficionado por histórias de insanidade, esse de fato é um prato cheio, um produto que choca, faz rir e assusta quase sempre na mesma medida.