O Exorcista é uma marca muito forte, tanto em sua versão literária, escrita por William Peter Blatty, quanto no filme O Exorcista de William Friedkin. Depois do sucesso do longa de 1973, seguiu com algumas sequências, todas bastante criticadas. A grande exceção dessas certamente foi a série da FX, que teve uma primeira temporada que angariou alguns fãs e que teve uma segunda temporada.
Eis que o ano dois chegou em setembro de 2017, mostrando as ações dos dois padres Tomas Ortega e Marcus Keane praticando exorcismos, mais uma vez vividos por Alfonso Herrera e Ben Daniels respectivamente.
A série seguiu tendo como produtor Judd Rea, com o criador e showrunner Jeremy Slater como produtor executivo, junto a Sean Crouch de Wolf Peck e Jason Ensler de The Newsroom.
Esse ano teve dez episódios, tal qual foi na primeira temporada, foi rodado em Vancouver, Columbía Britânica no Canadá, para cortar custos. A história se passa entre cidades pequenas dos Estados Unidos, nos arredores dos grandes centros, em mais de um ponto do mapa americano.
Os estúdios por trás da temporada foram a Morgan Creek Entertainment, New Neighborhood e 20th Century Fox Television.
A recepção da crítica não foi tão positiva quanto a da primeira temporada, mas dada a perspectiva que a saga nos cinemas tomou, especialmente após O Exorcista: O Devoto, é certo que essa não deveria ter sido tão criticada quanto foi, ainda mais se considerar que boa parte dos clichês desse estiveram também em um blockbuster do terror recente, no caso, O Exorcista do Papa, especialmente no quesito de exorcistas porradeiros e estilosos.
Apesar do longa ter sido criticado, claramente não foi tão achincalhado quanto a série.
O início é em Spokane, depois passa por Seattle, mas a maior parte da história na Ilha Vashon, todas localidades do estado de Washington. Há também um arco na Europa, na Bélgica, que falaremos logo.
O seriado abre mão de qualquer sutileza, passa a ser mais escrachado em matéria de ação e de subplots. Há um grande exagero no sentido de explorar teorias da conspiração, há mais de um caso de exorcismo e há um enfoque em uma família que se baseia inteira em um orfanato.
A trama já começa em meio a ação, embora sua primeiríssima cena seja calma. Tomas Ortega está em uma festa infantil, observando crianças batendo em uma piñata, da onde sai um estranho líquido negro, que parece petróleo ou piche.
Enquanto aquele líquido se avoluma, toma a forma de uma mulher. Essa é na verdade parte de uma visão, que em alguns pontos, parece uma viagem consciente de que era sonhada, tal qual haviam as camadas de sonhos em A Origem, clássico moderno de Christopher Nolan.
A partir daqui falaremos mais francamente sobre a trama, com spoilers liberados.
Após o trecho da visão é mostrada uma mulher possuída. Ela é Cindy (Zibby Allen), uma moça de uma pequena comunidade local. Ela estava na visão de Tomas, era a mãe do tal aniversariante.
A senhora sofre com interferências espirituais, motivados por situações sentimentais complicadas, entre essas, a perda de um filho. Mais uma vez o espírito espúrio se aproveita de uma fragilidade emocional do hospedeiro.
Sua apresentação se dá em um ambiente inesperado, na capota de uma pick-up Ford, com dois padres, um tentando expulsar o demônio dela enquanto o outro dirigindo.
Atrás do carro deles, vem tiros, de uma viatura policial, que vem a ser de Jordy (Warren Christie), o xerife local e esposo de Cindy. Se a primeira temporada havia um receio em assumir o seriado como obra de ação, esse segundo ano não compartilha desse pudor, desde o momento um inclusive.
O seriado O Exorcista se torna algo deliberadamente escapista, que não se preocupa em ser realista ou em fazer sentido. Eventualmente há drama e um pouco de terror, mas essa versão é composta de religiosos cristãos que não tem receio e lutar ou travar combate físico.
É dado também que se passaram seis meses desde a primeira temporada, mas apesar de tocar Tubular Bells de Mike Oldfield no final do primeiro episódio, fato é que essa temporada é bem diferente da trama do livro e consequentemente do filme clássico. Há algumas semelhanças com o livro Legião, que é outra obra do autor William Peter Blatty, especialmente no final da temporada.
O que se vê são pessoas possuídas agindo de maneira agressiva, machucando, arranhando e até mordendo os sacerdotes católicos. O que também se percebe é uma dúvida dos pares religiosos, em cima de Keane, que foi excomungado e preterido de ser padre.
Outro aspecto novo são as crises de vaidade que Tomas tem. Quando ele perceber que tem acesso ao dom da clarividência, começa a refletir se aquele é uma condição de dádiva Divina ou um infortúnio, já que ele tem alguns ataques de orgulho desnecessários.
O jovem exorcista é inebriado, acaba se considerando autossuficiente, fato que fatalmente o atrapalharia a ser um canal de Deus para todo o proceder sacerdotal e principalmente, para ser um bom exorcista.
Não é incomum vê-lo como alguém convencido, mas é até perdoável isso, caso se pense em perspectiva. Dada a condição de desespero em que está e a penúria, é natural que seja um pouco orgulhoso.
Para quem não tem posses e vive o tempo todo em situação de stress, é natural ter algum problema de vaidade que a priori, é um pecado que só faz mal a quem o pratica. Sendo ele um padre, deveria driblar essa condição, obviamente.
As primeiras cenas de exorcismo são em um galpão abandonado, no meio do campo. Para abrir a porta dele Keane acerta as correntes com um pé de cabra, de maneira heroica e exageradamente masculina, com veias saltando em seus braços e pescoço.
O demônio discute bastante com ele, fala de maneira grosseira a incomoda verdade, de que ele não é mais padre, afirma que ele não tem mais desculpas para ficar sozinho. Curioso é que mesmo sendo experiente o suficiente para saber que não deve fazer isso, ele dá ouvidos ao espírito imundo, fato que contradiz toda a sua expertise.
Dado que Marcus assassinou um "irmão de fé" na frente do Papa, seria natural que ele fosse encostado pela igreja, ainda assim tanto Keane quanto Ortega recebem orientação do padre Devon Bennett (Kurt Egyiawan), o mesmo que investigou Keane na primeira temporada.
Nesse ponto da história, ele vaza informações para a dupla. Funciona como um ponta de lança em uma investigação no Vaticano, a respeito do tal grupo ocultista, que antagonizou a primeira temporada.
O espírito diz que Tomas tem um poder e que isso pode causar inveja em Marcus. De certa forma ele não está errado.
Sobre erros e pecados, é difícil de ignorar que a situação errática são os dois protagonistas, que levaram uma pessoa cativa, contra a vontade de sua família. Até mesmo sabendo do contexto é difícil não culpar a Ortega e Keane por isso.
A trama que mais tem tempo de tela se passa em um orfanato, na Ilha Vashon em Seattle, comandado por Andrew Kim, ou apenas Andy, personagem de John Choo. Na casa dele vivem um grupo de crianças tão unidas que emulam a condição de uma família. O lugar era coordenado por ele e também por sua falecida esposa. O motivo da morte dessa personagem não é dado de início, só é desenvolvido depois.
Os órfãos presentes são Caleb, um menino cego, interpretado por Hunter Dillon, o rapaz com necessidades especiais David "Truck" Johnson de Cyrus Arnold, o crédulo Shelby, de Alex Barima e a rebelde Verity feita por Brianna Hildebrand a Míssil Megassônico Adolescente dos filmes de Deadpool.
A maioria deles é adolescente, ou próximo disso, a exceção da caçula Grace, interpretada por Amélie Eve, que aparece sempre sozinha, embora seja a preferida de Andy.
O pai adotivo aguarda uma revisão da casa, especialmente depois da tragédia que se acometeu ali, uma vez que sua esposa Nicole morreu recentemente, depois de uma crise depressiva que resultou em um suicídio.
Andy aguarda a chegada de uma assistente social, que verificará as condições do lugar. Ela vem a ser Rose Cooper (Li Jun Li), uma conhecida sua, que foi seu interesse amoroso do homem muitos anos antes dele casar e ficar viúvo.
A condição melancólica do homem é bem explorada, graças ao desempenho dramático de Choo, mas também pelas circunstâncias. A trama leva um bom tempo demonstrando ele como alguém sobrecarregado e carente.
Enquanto essas questões mais mundanas se desenrolam, Bennett, tenta desbaratar a tal seita satânica que se infiltra no Vaticano.
Seu papel se resume a tentar provar que os fatos ocorridos em Chicago não ocorreram por culpa dos protagonistas, no entanto, o poder e a influência do estranho culto só aumenta, de uma maneira que se torna impossível de lidar, já que eles tomam as rédeas e o comando da Igreja Católica.
A solução encontrada enfim é a de matar os cardeais e demais sacerdotes que se renderam ao mal, e é aí que entra a misteriosa Mouse, de Zuleikha Robinson.
Os dois se encontram na região da Antuérpia, na Bélgica. Esse arco dramático é bastante distante do cotidiano mundano e interiorano dos dois padres. Cada núcleo lida com as suas crises, que eventualmente, se tocam, mas não muito intimamente.
A crise com Tomas aumenta, mais da metade para o final da temporada é o arco dramático de Marcus que ganha destaque. Ele aos poucos se entrega a sedução de se permitir finalmente descansar, aproveitando o fato que não é mais um padre.
Ele verbaliza o tempo inteiro que talvez não tenha recebido Ortega para ser um aprendiz e sim um substituto. Com o decorrer dos episódios ele revela parte dos seus anseios sentimentais, calhando até na discussão sobre se ele deveria ou não guardar o celibato.
Certamente a trama desse personagem causou polêmica, o que sinceramente é algo tolo, já que nada do que ocorre com ele nesse sentido é diferente da realidade.
A série alude a dúvidas comuns a padres e demais sacerdotes que dedicam suas vidas a servir a Deus, nessa parte não há grandes absurdos, diferente claro das questões de ação, que aqui ganham mais lastro.
O que realmente complica é a maneira agressiva com que os religiosos lidam com os problemas que aparecem. Há muitos assassinatos, muitos embates físicos.
Diante disso, elementos como o nascimento de animais deformados na ilha e sinais de que os bichos estão sendo perturbados por algo malvado se tornam subalternos.
Os roteiros estão mais pautados em clichês de sustos falsos e em referências a obras do Invocaverso. Slater parece querer imitar os clichês de Invocação do Mal de James Wan. O que salva certamente são as atuações de Daniels, Herrera e Choo. É fácil abraçar os seus personagens.
Essa é uma temporada cheia de reviravoltas e viagens. Eventualmente Tomas e Marcus vão investigar um falso caso de possessão, com a menina Harper (Beatrice Kitsos) que é induzida e manipulada por sua mãe, Lorraine e Rochelle Greenwood. De forma atabalhoada os episódios narram casos de hipocondria e de manipulação familiar e sentimental, como Síndrome de Munchaüsen, mas não aprofunda essas discussões, só as menciona.
Já a trama europeia serve para mostrar que a integração entre demônios e humanos não acabou após o exorcismo de Pazuzu e Regan, Até mesmo uma freira, chamada Delores (Karin Konoval) se torna uma prisioneira mental. É dito que ela foi uma mulher exemplar, mas na prática, o que se percebe é que ela é um exemplo do que os heróis não devem seguir.
As questões mais complicadas desse segundo ano residem no fato de que a trama de Marcus e Tomas demora a encontrar o seu viés emotivo. Se enrola bastante para reunir os padre a família no orfanato e até se interrompe para fazer essa missão secundária, que resulta em mais uma menina órfã com o grupo.
Já com Mouse a trama parece tola, com ela utilizando o demônio que está integrado a irmã Delores como informante, tal qual um policial faz com um bandido de baixa patente a fim de pegar peixes maiores.
O que mais assusta é uma série de inserções bizarras, como uma grande seringa, com água benta, utilizada para conter a possuída e tirar dela informações. Possivelmente essa é uma referência a alguns artefatos vistos em Os Demônios, mas são tão jogados que por pouco não valem a menção.
A personagem não é ruim, mas certamente é o aspecto mais abertamente trash do seriado. Se Keane era considerado agressivo e porradeiro, ela certamente é ainda mais. Não à toa eles tem uma ligação no passado, explorada nos últimos capítulos.
Fato é que ela faz uma dupla com Bennett, tal qual Tomas e Marcus são um grupo da ação. Os dois se complementam, embora tenham perfis completamente diferentes, com um sendo um burocrata e a outra sendo uma agente de campo.
O Exorcista foi cancelada por baixas audiências nesse segundo ano, mas curiosamente parte de suas tramas ganharia as grandes telas poucos anos depois como citamos, em O Exorcista do Papa como um primo desse, em estilo e abordagem, embora seja ainda mais escrachado.
Os filmes derivados do Invocaverso também usam parte dos clichês presentes na série de Jeremy Slater. Não à toa ele está - ou ao menos estava - escalado para dirigir um spin-off da saga Sobrenatural ou Insidious.
A narrativa guarda alguns momentos de tranquilidade para Keane, especialmente quando ele tem contato com Peter Osborne (Christopher Cousins), um vizinho do orfanato, que começa falando das crises com os animais da ilha, mas depois passa gerar um interesse no protagonista.
Há visões de vultos, se usa muitas sombras e ataques de pânico com os personagens. Há também pesadelos reveladores com o núcleo central, além de uma desnecessária tentativa de despistar a identidade do possuído da vez.
Também é explorada a história de um homem que matou a família no passado, sendo creditado a ele a condição de possuído por uma força maior, provavelmente só para fazer referência ao drama de outro clássico do cinema de horror, em Terror em Amityville.
Herrera melhorou consideravelmente sua atuação. Ele é mais exigido, especialmente pelo fato dessa temporada se pautar pouco em sessões espirituais.
Outra atuação digna de nota é a de Alicia Witt, que interpreta Nick, a esposa do líder do orfanato. Ela faz a versão das lembranças e a versão espectral, cuja imagem é roubada pelo espírito que ronda a família atormentada.
A atriz está bela em cada uma das suas cenas fantasmagóricas. Quando a entidade que finge ser Nicole age de maneira mais franca é impressionante o horror que causa.
Ela traz ilusões da casa vazia, com as crianças mortas e enterradas no jardim. Só é uma pena que ela seja colocada em muitos momentos cuja dramaticidade é horrível, com ela maquiada com uma caracterização acinzentada, bastante clichê.
A preocupação de todos os personagens é com o destino das crianças, que não bastasse serem órfãs, ainda tem o cotidiano invadido por seres espirituais maléficos.
Há uma demora em chegar a conclusão óbvia de que Andy está possuído, Rose, os padres e o próprio se negam a enxergar isso e depois de o fazer, demoram a tomar uma atitude.
Enquanto isso, a trama na Europa chega ao ponto das entidades assumirem que seu alvo é Tomas, é conseguir tomar o religioso de grandes capacidades mediúnicas. Ter alguém com esse dom seria ótimo e fica patente que as visões que ele tem podem ser corrompidas por espíritos malignos.
O primeiro ano da série teve o final concluído, porém o segundo acabou plantando algo maior para ser explorado nos minutos finais, causos esses infelizmente sem conclusão.
Slater falou sobre o cancelamento em suas redes sociais. Não culpou a Fox e entendia que seu programa tinha uma audiência pequena já na primeira temporada. Fato é que essa foi mais uma das produções canceladas após a compra do estúdio pelo grupo Disney.
A história termina cheia de atos violentos, com um assassinato que faz Marcus se culpar parcialmente, embora encarasse esse ato como algo necessário, já que o contato que Tomas teve com o demônio poderia fazer ele ser dominado. Fosse Ortega integrado, seria muito perigoso.
Caso houvesse uma terceira temporada, Mouse assumiria o posto de parceiro de Tomas, Bennett seria um integrado - inclusive se repete aqui o jumpscare que Peter Blatty inseriu em O Exorcista III - e Keane se aposentaria, mas não antes de ter noção de que Tomas lhe pediu ajuda. Possivelmente o corpo do padre foi tomado, sem que ninguém percebesse.
A série de O Exorcista termina de forma bagunçada, se assumindo como série de ação pura e simples, finalmente se deslocando do filme clássico. A coragem de se desvencilhar do clássico certamente influenciou a audiência, mas Slater e sua equipe tiveram azar, já que as temáticas exploradas no seriado são populares agora, ainda assim é fato que a série possui boa parte dos pontos positivos da franquia, especialmente graças aos personagens cativantes.
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