Recentemente o diretor e mestre do cinema William Friedkin nos deixou, e como é de costume, os fãs de seu trabalho e carreira resolveram se debruçar sobre a sua filmografia, relembrando seus muitos bons filmes, tal qual fizemos em uma breve análise de sua carreira, em um artigo recente chamado A Despedida de William Friedkin. Apesar de Operação França ter sido o mais premiado entre os seus filmes, certamente a obra mais lembrada do realizador foi O Exorcista, filme de 1973, voltada ao cinema de gênero. A trama começa simples, evocando uma história de medo familiar, que aos poucos vai envolvendo a sociedade civil em pequenas esferas, incluindo aí a participação direta da igreja.
É em essência um drama polêmico, graças ao fato de discutir a fragilidade da instituição familiar estadunidense, a inércia de autoridades e incapacidade de todas as pessoas em volta da tal família, que não conseguem garantir a integridade física e emocional de uma menina indefesa.
O filme tem base no livro best-seller de William Peter Blatty. Como o romance já era um sucesso, havia uma anedota em Hollywood, de que Blatty entregou o livro para o cineasta Friedkin, que depois de ler avidamente o mesmo, escreveu um rascunho de roteiro, do que seria a sua ideia para um filme e entregou para o autor.
Ao ler essa versão de script Blatty foi franco, disse que não gostou. O diretor então sugeriu que ele mesmo escrevesse a adaptação do seu livro em forma de roteiro. Blatty aceitou, assumiu então os cargos de roteirista e produtor do longa-metragem, mas a história da produção e pós-produção ainda teria capítulos muito longos, explanados nesse artigo inclusive.
O estúdio da Hoya Productions propiciou a Friedkin a condução do longa, que foi distribuído pela Warner Bros. O cineasta vinha de bons resultados em questões de premiações graças a Operação França, tanto que venceu Laranja Mecânica tanto em Melhor Filme como em Melhor Diretor, fato que fez o autor ir ao psiquiatra, uma vez que não acreditou ter vencido de Stanley Kubrick.
Havia então uma grande expectativa nessa condução, que obviamente alcançou êxito, uma vez que o filme acerta em quase tudo que se propõe. A ideia inicial era portentosa até mesmo antes da entrada do diretor no projeto, já que o livro foi um sucesso de vendas. Blatty tinha bastante liberdade para decidir os rumos da produção, tanto que a escolha sobre quem dirigiria era dele.
O filme foi oferecido a Kubrick, que não aceitou a proposta, então algumas figuras se ofereceram, entre elas, Robert Aldrich, diretor famoso e eminente figurada de Hollywood, diretor de dezenas de filmes entre eles, O que terá acontecido a Baby Jane e Doze Condenados. No entanto, o romancista optou por Friekin mesmo, especialmente por ter gostado da dinâmica de Operação França.
A estética realista e naturalista que Friedkin empregou no filme era o que Blatty julgava ideal em uma versão de O Exorcista, tanto que ela foi empregada nessa obra também.
Fato é que independente de moralismos, de acusações ligadas a pânico satânico ou apelos hipócritas, a obra foi abraçada para o público, sendo um sucesso estrondoso de bilheteria, mesmo sendo propagado o fato de que essa era uma obra profana e nojenta.
É sabido que Blatty era católico e sua ideia geral foi a de trabalhar um roteiro que não ofendesse nem a fé nem a igreja. Independente disso, houve sim uma má recepção. Por parte dos religiosos, inclusive com "celebridades", como o padre e exorcista real Malachi Martin, autor de livros como Reféns do Demônio.
Martin criticou bastante a obra, dizia que as sessões de exorcismo eram completamente diferentes do que era mostrado no filme, afirmou que Friedkin e Blatty estavam sendo sensacionalistas, desdenharam um processo sério da igreja e tornaram algo complicado, como a expulsão de um demônio em um evento mega espetacular.
O Exorcista é conhecido por muitos motivos, além do óbvio fato de que é um clássico e quebrador de paradigmas. Muitas lendas urbanas envolvem a obra, mas nenhuma delas é realmente digna de nota. O que de fato assusta é que esse certamente é ou o filme que mais tem versões diferentes ou um dos mais, rivalizando com Jogo da Morte e Blade Runner: O Caçador de Androides pelo posto de obra com mais versões do filme.
Nos cinemas, a duração dele era tinha 122 minutos, mas quando o filme foi lançado em outras mídias houveram outras versões, com duração diferente inclusive. Em exibições para a televisão, houveram cenas suavizadas ou simplesmente descartadas, cortadas para serem exibidas em horários diferentes.
Houve depois uma expansão, um corte maior, chamado O Exorcista: A Versão que Você Nunca Viu, registro esse com 2 h e 12 minutos. Essa versão inclui algumas cenas famosas, como a caminhada de Regan pelas escadas, de maneira contorcida, além de algumas inserções digitais bastante desnecessárias, que fazem a figura da moça possuída diferir dos momentos onde se usa efeitos práticos e maquiagem na caracterização do demônio.
É comum entre fãs de cinema B que as versões sem cortes e estendidas sejam melhor recebidas que as de cinema. Essa em particular é um pouco diferente, uma vez há uma cena de discussão entre os padres que Blatty julgava ser muito importante, mas que foi retirada do corte de cinema.
Friedkin afirmava que o diálogo era expositivo demais, que era redundante, já que refletia a exata sensação que toda a história já reforçava. A conversava girava em torno do motivo da entidade ter escolhido se apossar de uma menina.
A opinião do diretor prevaleceu, e os dois Williams ficaram brigados por anos graças a essa escolha. Friedkin estava certo, mas essa versão comemorativa incluiu essa linha de diálogo, mudou também o final, deixando ele mais otimista, mais parecido com o do livro, além de ter incluídos flashs desnecessários, da figura monstruosa. A maior parte dessas sequências é bem derivativa, antecipam a causa do mal administrado sobre a personagem de Linda Blair.
Mesmo esse trecho gritante e sangrento de Regan descendo as escadas tem as suas complicações. É evidente que a cena é chocante, ver uma menina toda retorcida descendo as escadas de costas impressiona, no entanto, ela destoa do tom sóbrio do filme, especialmente por antecipar os momentos mais enérgicos e explícitos do futuro dramático da possuída.
Dessa forma, esse crítico prefere a versão de cinema, embora recomende a visualização do máximo dessas versões, afinal, esse é um clássico absoluto.
O filme acabou passando pela época de premiação com muita expectativa, já que foi indicado a dez estatuetas do Oscar. Concorreu em Melhor Filme, também foi indicado a melhor diretor, Melhor Atriz para Ellen Burstyn, Melhor Ator Coadjuvante para Jason Miller, Melhor Atriz Coadjuvante para Blair, além de categorias técnicas, como fotografia para Owen Roizman, direção de arte para Bill Malley e Jerry Wunderlich, edição para Jordan Leondopoulos, Evan A. Lottman e Norman Gay.
No entanto, só venceu duas premiações, com Melhor Roteiro Adaptado de Peter Blatty e Melhor Som de Robert Knudson, Chris Newman, mesmo sendo o favorito em diversas participações, sobretudo direção, filme e atriz principal - Blair teve um problema, quando revelaram que a voz dela possuída foi feita por uma outra pessoa, a radialista Mercedes McCambridge que não havia sido creditada como atriz de voz até a estreia - mas aos menos nessas, a disputa era boa para o filme.
É sabido que houve toda uma campanha de difamação da obra, que em alguns pontos se fundamentou um pânico satânico, que usava o moralismo como mola central, além da possibilidade de popularizar demais obras de horror em premiações.
Entre os motivos levantados é que o filme poderia estimular as pessoas a desacreditar a igreja, o que é curioso, já que não se discute nada da estrutura episcopal no longa ou no livro. Blatty teve um cuidado extremo em demonstrar figuras religiosas como pessoas ordeiras, tementes a Deus e preocupadas com o bem-estar da sociedade civil.
Outra possibilidade muito alardeada na época é que a obra poderia influenciar as pessoas a não cuidarem dos problemas de ordem mental com médicos psiquiátricos, e sim com padres e exorcistas. Claro que essas questões eram apenas argumentos levantados sem grandes fundamentos, não havia o menor perigo de nenhuma dessas possibilidades acontecer, mas para a época de votação da Academia, certamente houve uma influência sim, sobretudo nos membros mais velhos da mesma.
Para Friedkin o indício de que algo errado estava acontecendo começou pela premiação dada pelo sindicato dos roteiristas, o WGA (Writers Guild of America). Quando O Exorcista perdeu na categoria melhor adaptação de drama para Serpico, ele achou estranho, uma vez que a sessão voltada para os membros da Academia foi aplaudida de pé.
Curiosamente Blatty venceria o Oscar nessa categoria, resultando pelo menos em uma justiça para o clássico do horror, o que aliás conversa bem com o argumento de que premiar essa obra poderia abrir um precedente para que fitas de horror fossem majoritariamente favoritas a prêmios dali para frente. Não é à toa que obras que são de terror são associadas a outros movimentos, a exemplo de Silêncio dos Inocentes, normalmente chamado de Policial ou Suspense.
Friedkin apontava dois grandes culpados pela perda dos prêmios: Robert Aldrich, pessoa muito bem-quista em Hollywood, que teria se sentido rejeitado por Peter Blatty em dirigir esse O Exorcista, além de George Cukor, diretor Núpcias de Escândalo, A Costela de Adão e Nasce Uma Estrela de 1954 e figurão de Hollywood.
Cokur é comumente apontado como o responsável por espalhar entre os membros mais idosos da Academia, a sugestão de não assistir ao filme, apontando razões de moral, afirmando que ele seria anti-igreja.
Sem a visualização desse tipo de público - branco, homem e idoso - certamente o filme seria pouco votado. A retirada da premiação do Oscar para melhores efeitos especiais em 1974 também teria sido idealizada por Cukor. Havia acontecido premiação em 73 e ela voltou em 75.
Friedkin tinha muitos motivos para acreditar em uma perseguição e boicote.
O início da trama é em um epílogo, que acompanha o padre e arqueólogo Lankaster Merrin de Max Von Sidow, um homem idoso, que se aventura nas areias escaldantes do Iraque.
Vale lembrar que Sidow não possuía uma idade tão avançada em 1973, tinha pouco mais de quarenta anos na época, mas seu personagem tinha pelo menos 30 anos a mais. A maquiagem posta sobre ele era excelente, um trabalho muito bom de Dick Smith, artista conhecido por O Inimigo Oculto e O Poderoso Chefão, que anos mais tarde faria Scanners: Sua Mente Pode Matar e Amadeus.
Merrin é um religioso, que trabalha em escavações no Iraque, verificando ruínas atrás de artefatos, ao menos é isso que ele alegaria. Quando um capataz muçulmano encontra algo, o chama.
Quando ele chega ao local, cuidadosamente retira um pequeno objeto, uma cabeça de um ídolo, que mais tarde se revelaria Pazuzu, uma entidade da mitologia suméria, chamada de o rei dos demônios do vento, filho do deus Hanbi.
É curioso como Lankester é ousado, mesmo sendo tão velho. Ele não tem qualquer receio de passar por onde passa, é difícil não se surpreender com o fato de que o povo local o respeita, mesmo as pessoas que estão armadas e que fazem a escolta dos grupos de exploração.
Para o espectador atual, surpreende esse trecho, especialmente depois do pânico islâmico que os Estados Unidos pregou a partir dos anos 1980 - com ajuda do cinema, inclusive - e no pós 11 de Setembro de 2001.
Mesmo que as pessoas comuns armadas há ali uma demonstração de civilidade, já que há respeito a Merrin. Não fica claro se eles fazem isso pela filiação religiosa do personagem ou por conta do seu trabalho como estudioso, fato é que eles não o veem como ameaça.
Essa introdução termina de maneira idílica, com uma breve participação musical, da trilha incidental de Jack Nitzsche. Até então toda a sequência era em silêncio, mas a edição de som cuida de pontuar brevemente alguns momentos importantes, como esse. O uso do artifício é inteligente, com uma exploração paciente e parcimonioso, que valoriza esse aspecto de forma econômica, de uma maneira que pouco se vê mais no cinema, sobretudo em obras de terror.
Curiosamente, a última cena dessa sequência mira exatamente a condição de mostrar uma estátua de uma figura possivelmente demoníaca, que é louvada por uma nação que aos olhos cristãos é pagã. Aparentemente não há como fugir da pecha preconceituosa aqui.
A trama então salta, vai para outra localidade, em Georgetown, nos Estados Unidos. A rotina da atriz Chris MacNeil é apresentada. A personagem de Burstyn está trabalhando na capital do país, em Washington-DC, filmando um filme dirigido por Burke Dennings, personagem de Jack MacGowran.
Quando não está ocupada trabalhando, Chris está em sua casa grande, onde mora também a sua filha Regan (Blair), junto a alguns funcionários, dos quais se destacam o faz-tudo Karl (Rudolf Schündler) e Sharon (Kitty Win), que é tutora de Regan e amiga de longa data de Chris.
Coisas estranhas ocorrem no cotidiano familiar. Chris nota barulhos a noite, acredita que ratos andavam pelo assoalho, embora a parte de cima da casa estivesse limpa. Aos poucos esses pequenos sinais se tornam grandes perturbações, passam a atacar os membros da família, mas até esses horrores se desenrola gradual e lentamente, quase não havendo indícios de interferência maligna ou espiritual nos primeiros momentos.
As MacNeil vivem ao lado de uma comunidade episcopal grande, repleta de padres. Esses, de fato, passam por alguns maus bocados, tanto que vandalizam algumas das imagens na igreja católica próxima da casa. O filme não desenvolve a origem desses atos, fica implícito que pode ou não ter uma ligação com o episódio de Regan, nada mais é desenvolvido nesse sentido.
Essa comunidade de religiosos tem figuras bastante peculiares. Entre elas, se destacam duas, Joseph Dyer interpretado pelo padre real William O'Malley, sujeito que frequenta as rodas sociais mais altas de Georgetown, e Damien Karras, ou Dimmy Karras, personagem de Jason Miller, que se apresenta como um sujeito mais taciturno, tão reservado que parece sombrio.
Apesar de serem bastante diferentes, eles são bastante próximos, segundo os mesmos, pelo menos. Enquanto Dyer é expansivo, gosta das artes e se permite conversar e interagir com pessoas famosas do círculo de amizades de Chris. Damien é mais discreto, até pela condição familiar complicada que vive.
A origem de Karras é humilde, ainda assim sempre foi tratado como um prodígio. Depois de fazer os seus votos, a Igreja o enviou para estudar medicina. Ele então se tornou um psiquiatra, que caso não fizesse voto de pobreza, certamente teria grandes posses.
Ele não é um sujeito materialista, ao contrário, é simples e bem resolvido consigo mesmo. Desconta seus sentimentos e frustrações em esportes, pratica atletismo de vez em quando e se dedica bastante ao boxe. No entanto, ele passa por uma questão pontual, que se relaciona com a saúde de sua velha mãe. A personagem de Vasiliki Maliaros está na trama basicamente para ser uma preocupação de Damien, tanto que é creditada apenas como Sra. Karras.
Ela já é uma pessoa de idade avançada, que está adoentada e com dificuldades de memória, necessita de cuidados médicos caros, mas é indócil, insistindo em morar em Nova York, uma cidade grande, onde fica desassistida, já que o filho reside e trabalha em outra cidade.
Ele até pensa em pedir transferência para uma paróquia mais próxima dela, até verbaliza a situação de colocar ela em uma clínica particular, mas a realidade dura é que ele não tem dinheiro para tal.
A escolha pela vida sacerdotal tem seus infortúnios, claramente. A renúncia a carne não passa só pelo celibato, mas também por esse tipo de provação.
Já Dyer também tem uma vida social mais movimentada justamente por desfrutar de um cotidiano que não é o seu. Sua rotina é tão diferenciada que ele acaba testemunhando uma situação pitoresca.
Em uma festa na mansão dos MacNeil, Dyer brinca com convidados, celebra com eles, bebe bastante e se arrisca até a tocar piano de cauda, enquanto todos a sua volta se embriagam e cantam. Curiosamente é nesse interim que ele anuncia que a mãe de Karras faleceu, justamente em uma conversa com a mãe de Regan, que tem curiosidade sobre quem era o padre jovem e atraente que parecia estar sempre com a mente longe.
No meio dos festejos ocorrem cenas pequenas e breves, mas que teriam muitos significados. O primeiro deles é o embate entre Burke e Karl, mostrado de maneira meio desimportante, mas seria o passo um da trama policial de um personagem que ainda seria apresentado. No livro essa briga teria mais importância, aqui parece apenas um bêbado provocando um europeu que parece ter ascendência alemã, embora Karl negue isso, já que diz que era suíço. De qualquer forma, ser chamado de nazista tiraria qualquer um do sério.
É aqui também que Regan dá o primeiro sinal de que algo está errado com ela, já que ela ofende um dos amigos de sua mãe afirmando que ele morrerá. Logo depois ela urina no carpete da sala, faz isso de uma maneira que parece descontrolada, embora ela não trema, não urre, não dando nenhum sinal de que está fora de suas faculdades mentais básicas. Fica parada, quase catatônica, não estrebucha, não treme, só se suja.
Friedkin conduz a cena muito bom, trazendo a sua personagem para o centro da tela de maneira fria e abrupta, fazendo dela uma figura quase fantasmagórica.
Como ele fecha a sequência com uma escatologia, pontua bem os medos básicos do americano médio, aludindo ao receio de fantasmas e a questões mentais também, já que a menina parece em um transe difícil de definir, especialmente sem diagnóstico médico.
Dito dessa forma, parece que o longa é demasiadamente lento e dramático, mas não é o caso, sobretudo a versão de cinema. Todas essas questões emocionais são apresentadas rapidamente e a gravidade de cada uma das relações tem suas especificidades morando em detalhes de apresentação.
Friedkin é um mestre no sentido de dizer muito em pouco tempo. Seus elementos de cena ajudam a fazer atalhos na narrativa. Os pesadelos de cada um dos personagens ganham importância exatamente pelo fato da construção ser mais visual do que textual. Desse modo, quando Damien sonha com sua mãe andando sozinha perto do metrô de Nova York, fica implícito o sentimento dele, fica patente que ele se culpa demais.
Não é nada dito, assim como os momentos que servem de escape para ele, quando o mesmo golpeia um saco de areia. Sua raiva e sensação de impotência tornam aqueles socos em algo mais que meros exercícios e não há nenhuma linha de diálogo que explicite isso de maneira óbvia.
Outra riqueza da abordagem é o conjunto de sentimentos céticos que o filme aborda. A falta de crença é algo deliberadamente vilanizado nessa visão que o roteiro de Blatty propõe. O tempo inteiro as crenças dos personagens são postas a prova, em especial com Chris, que preocupada com a filha, a faz tomar dezenas de exames (alguns bem invasivos) para entender o que há.
Isso também ocorre com Damien, seja pelas perdas recentes que teve ou pela total incredulidade na existência do demônio ou de manifestações do mesmo, mesmo sendo ele um homem de fé. Vale lembrar que nem todo cristão acredita no Diabo de maneira literal, para muitas correntes filosóficas, Satanás é tão somente um avatar para o mal que há na própria humanidade.
Curioso que a falta de fé de ambos é parcial, já que MacNeil afirma que a filha não teve simples espasmos no episódio em que a cama dela começou a tremer, assim como Karras, que claramente é bem mais preocupado com o bem-estar de terceiros do que tenta aparentar, mostrando também que tem uma crença em um Ser maior, ainda que esteja em uma crise existencial, que também abala o seu ideal religioso.
A crise existencial de Damien passa pelo adoecimento da mãe, mas essa claramente não é a raiz desse sentimento. Ele já se sentia culpado e em dúvida, é patente que ele vive uma condição semelhante a síndrome de impostor.
O padre verbaliza que está em dúvida se ele é apenas um aproveitador, que seguiu o sacerdócio para que a igreja pagasse os seus estudos de psiquiatria, mesmo que ele tenha feito os votos antes de decidir ir estudar.
Perto de completar uma hora de exibição, as manifestações ficam mais sérias, especialmente no comportamento da menina. Ela xinga os médicos durante os exames, até os machuca quando eles tentam se aproximar, fato que motiva os doutores a recomendar o ritual de exorcismo para induzir a jovem Regan a acreditar que expeliu um ser maligno de seu corpo.
A sugestão ocorre somente após a icônica cena de masturbação com crucifixo. Esse foi um trecho que passou da mera condição de "polêmica", já que obviamente há uma profanação de um artigo religioso sagrado, que remete a morte de Jesus Cristo, sendo usado em uma criança de doze anos, uma menina que não tem qualquer atividade sexual, que sequer tem porte ou curvas de uma mulher, ou seja, acaba tendo uma conotação pesada, que pode ser encarada como pedófila.
Apesar de ser um momento violento, é sabido que Friedkin poupava demais Blair das cenas mais agressivas. A participação de Mercedes McCambridge acontecia também para que a atriz mirim não falasse palavrões, o que é curioso, já que a maquiagem de feridas e machucados aumentava ao longo da exibição. Diante disso, sua boca não proferir palavras sujas parece algo menor.
O diretor tinha métodos não usuais com os atores, para tirar deles a melhor reação de medo possível ele dava tiros para o alto. Se em Operação França ele fez rachas sem autorização das autoridades para fechar ruas, aqui ele tinha seu próprio modo de deixar os interpretes tensos.
O elenco inteiro ficou em situação insalubre também perto do final, já que o quarto da pequena Regan tinha o ar condicionado ligado no máximo, em um frio quase ártico. A fumaça que sai das bocas dos personagens é real.
Algumas das pessoas que participaram também reclamaram de lesões e arranhões. As brigas físicas envolvendo a menina possuída cobraram um preço real para os atores, que tiveram músculos e pele marcados por ele.
Existe uma ideia na demonologia de que o diabo só se apossa de uma pessoa caso haja uma brecha e uma leitura comumente associada ao drama de O Exorcista se relaciona com a condição singular da família MacNeil, afinal, esse é um grupo familiar desestruturada, com uma mãe divorciada, cujo pai não é presente.
Não é exposta nenhuma reflexão mais profunda a respeito dessa lacuna familiar, mas em uma rápida análise sobre a mente de Chris nota-se que ela tem dúvidas sobre com a sua vida seria se não tivesse se divorciado. Certamente ela se culpa, já que se dedicou a sua carreira, ainda que não deixasse a filha de lado, ao contrário do pai da moça, que além de não ser presente, falta ao aniversário dela.
As sequências do filme contradizem essa noção de cuidado da parte de Chris, especialmente em O Exorcista II: O Herege e na primeira temporada do seriado O Exorcista. Independente de qualidade e dos muitos defeitos dos produtos da franquia após o clássico de 1973, fato é que esse aspecto é triste, até vergonhoso no que tange a personagem de MacNeil, uma vez que ela é uma pessoa dedica, que faz de tudo por sua família.
Para a mulher não basta ser profissional, ser dedicada, é preciso ser perfeita, é preciso colocar o bem-estar de todos acima de tudo, se sobrar tempo, cuidar da vida pessoal dela. Ironicamente as figuras religiosas chamadas são homens. Merrin, Karras e até Dyer se revezam como possíveis substitutos da figura paterna.
Até a origem da mediunidade de Regan passa por um sentimento de culpa. Chris se sente culpada, por que não ficou atenta, por conta de não ter percebido que havia um tabuleiro Ouija na casa, fato que a fez conversar com o tal "Capitão Howdy". Embora tenha sido apenas uma coincidência, para não parecia apenas isso.
Durante as manifestações o espírito maligno é ardiloso, finge que não sabe o plano de Karras em tentar expor sua falsidade, ainda assim dá pistas de que tem uma certa onisciência, uma vez que sabe que a mãe do padre faleceu.
O tempo todo Friedkin brinca com a dualidade, não só na exploração expositiva dos diálogos, mas também na forma de filmar. O tempo inteiro ele brinca com os ângulos da câmera que recortam os personagens em setores altos da casa.
Quando Karras ou MacNeil está na parte alta da casa há uma mensagem implícita, de que ali é um estágio elevado, para além do fato óbvio de ser um segundo andar. É como se aquele setor fosse uma mescla do mundo natural com o espiritual, só acessado em plenitude por quem crê. Não à toa os dois aparecem dessa forma, mas os médicos e mesmo Sharon não tem o mesmo privilégio de enquadramento.
Karras acha que precisará de fato fazer um exorcismo e a junta da igreja decide recorrer a Lankester Merrin, que acabou de voltar de Nínive. É dito que no passado, padre participou do exorcismo de um menino na África, mas ele era mais novo, e ainda assim quase morreu.
A idade é um impeditivo, claramente, tanto que a diocese acha arriscado colocar ele para fazer o ritual. Esses trechos são diferentes nas versões maiores, o demônio pede, clama seu nome nas gravações de maneira mais explícita. Claramente havia uma relação pessoal entre o mal e o sacerdote.
Também se estabelece rapidamente uma condição fraternal entre os dois sacerdotes. O período de uma guerra e de um conflito pode causar um afinamento mais rápido entre os pares. Foi exatamente isso que ocorreu aqui, os dois tem uma sinergia quase automática.
A sessão de expulsão é longa, toma quase todo o quarto final do longa-metragem. É agressiva, conta com impropérios, xingamentos, deboche da parte do espírito malvado, além de escatologias. O ser vomita, manifesta rupturas no concreto, levita sobre a cama, faz girar o crânio da vítima de maneira mais intrigante e violenta que a primeira vez em que isso ocorre.
Há um trabalho de maquiagem maravilhoso de Smith com Robert Laden (Vestida Para Matar e Coração Satânico) que transfigura a menina. A direção de arte é soberba, a produção trabalha bem não só nas feridas de Regan, mas também no material assessório dos padres, nos trajes e estolas de Merrin e Karras, assim como há um esforço hercúleo por representar bem visualmente o vômito esverdeado que Regan expele.
O aspecto verde até lembra restos de comida, mas parece algo mais agressivo do que meros fluídos da biliares e estomacais. É quase como algo extra-humano mesmo, fica a nítida impressão de que o espírito espúrio é mais poderoso do que demonstra, tanto nessa capacidade criativa quando no domínio que ele exerce sobre os dois padres.
A entidade brinca com eles com a dupla, tal qual um predador desdenha de sua presa. Como a ideia do roteiro é valorizar o catolicismo e o cristianismo, obviamente o plano satânico dá errado, ao menos parcialmente, contando nesse erro inclusive com o fato da criatura malvada subestimar a força de Cristo e a devoção do sacerdote mais idoso e do sujeito novo.
Esse último ainda é torturado pela lembrança que tem de sua mãe. O diabo se disfarça, finge ser a figura de sua parente, até rouba a voz de Maliaros. Não era sequer necessário que Merrin falasse ao seu pupilo que o espírito que tomou Regan estava mentindo para ele, uma vez que qualquer leitura bíblica superficial demonstra isso, já que o Diabo é o pai da mentira. Certamente os demônios que o servem também baseiam suas falas argumentos falaciosos.
Mas Damien também é tentado a bancar o herói, fica tentado a mentir também, tanto que ele promete a Chris que sua filha não morrerá, promete que Regan será liberta, mesmo que ele não acredite nisso, já que já tinha percebido que ela estava prestes a enfartar.
No corte de cinema a sequência final é muito dinâmica e rápida. Por incrível que pareça é a parte mais fantasiosa do filme, mais até do que as sessões com Pazuzu, uma vez que uma multidão aparece muito rápido nos arredores da casa, incluindo o padre Dyer, que socorre seu amigo, além do detetive Kinderman (Lee J. Cobb), que já vinha tentando entender o que houve com Burke e agora, se depara com mais uma estranha morte, no mesmo local onde o diretor foi encontrado.
Karras abraça o cristianismo tomando para si o exemplo de Jesus, que se colocou em sacrifício pela humanidade. A diferença é que ele se põe nesse papel como um desesperado, e não como alguém que pensa, que tem um plano.
Ele vai pelo instinto, pela raiva, assim acaba pecando, já que quis se vingar depois que o novo mentor e novo irmão morreu tentando expulsar o Demônio.
Depois de esmurrar o corpo possesso de Regan ele pede ao espírito para vir até ele. Ao apelar para que o espírito o possua ele enxerga na janela uma alternativa de saída e se suicida, conversando diretamente com o destino dos porcos tomados pela Legião no evangelho de São Marcos capítulo 5, que também pularam em um abismo.
Ainda assim Damien termina perdoado, sob o olhar triste de seu amigo. Ao menos há a esperança, na vida da pequena Regan, que não se lembra de nada, tendo as memórias daqueles momentos apagadas por completo.
Friedkin faz um filme tenso, nervoso, violento e agressivo. Em sua análise sobre a situação impar que viveram os MacNeil se discute fé e ceticismo, mergulhando no pior da alma humana. O Diabo em O Exorcista acompanha a humanidade desde sempre, em todo lugar e faz as pessoas serem melancólicas, como Dyer, que termina observando a escada onde seu amigo faleceu, entendendo que esse é o destino final de todos, uma luta inglória contra o mal, onde a vítima sempre ou quase sempre será a humanidade.