Dentro do conjunto de filmes da Marvel Studios não há tanto espaço para criatividade ou autoria. Kevin Feige é conhecido por ter mão de ferro na ideia de controlar tanto a cronologia, que sempre busca ser coesa, além de não permitir que a classificação indicativa fique alta.
Considerando isso, é absolutamente normal que esses filmes pareçam pasteurizados, isentos de alma ou genéricos, com poucas exceções a exemplo das produções dirigidas por Taika Waititi e James Gunn, onde se pode observar um escracho maior no humor e lisergia na forma de referenciar o pop.
De fato a cronologia até essa fase soa coesa, mas o preço para isso geralmente é de que essa coleção de filmes soe repetitiva, fato que ocorreu por exemplo com o Doutor Estranho de Scott Derrickson, semelhante demais a Homem de Ferro e Homem Formiga. Quando foi anunciado que Sam Raimi comandaria o segundo filme do Mago, grandes expectativas foram criadas e muitas foram de fato atendidas.
Esse texto não pretende ser uma análise aprofundada do filme, em breve, quem sabe, possamos revisitá-lo, mas a ideia aqui é apontar o que Raimi encaixou de sua carreira dentro desse Multiverso da Loucura.
O cineasta que já havia feito o bom Darkman: A Vingança sem Rosto sempre colocou elementos aterrorizantes nas suas obras fora do gênero, vide o Homem Areia gigante como um Kaiju em Homem Aranha 3, ou a cena de grito da esposa de Otto Octavius pouco antes dela falecer em Homem-Aranha 2.
O que se sabe é que Raimi era também fã de Stephen Strange, personagem criado por Stan Lee e Steve Ditko, os mesmos que também criadores do Homem-Aranha, e esse apreço fez com que o cineasta gastasse seu talento em tentar fazer do filme algo que louva o cinema especulativo e atemorizador.
Já na cena de introdução é mostrada uma versão do Strange de Benedict Cumberbatch, com cabelos presos, fugindo de um terror com a jovem América Chavez. Aquela dimensão lembra a psicodelia presente nos contos de H.P. Lovecraft, sobretudo com relação as cores indizíveis das suas histórias.
Uma vez no universo dos filmes - o 616 - Chavez e Estranho enfrentam uma criatura polvo, que (reza a lenda), deveria ser Shuma Gorath, personagem famoso nos quadrinhos e que participou jogos de luta da era 2d como Marvel Super Heroes, Marvel Super Heroes vs Street Fighter, Marvel Vs Capcom 2 e Ultimate Marvel vs Capcom 3.
No entanto, o ser tem outra alcunha, Gargantos, provavelmente por questões de direitos autorais, já que Shuma Gorath é personagem de Robert E. Howard, criador de Conan o Bárbaro.
Gargantos é um personagem nos quadrinhos que antagoniza com Namor, o príncipe submarino atlântico, mas claramente não é essa mesma criatura. A aparência dele lembra mais o olho-flutuante dos jogos de RPG Dungeons and Dragons, conhecido como olho-flutuante ou Observador.
Já na luta entre Feiticeira e Estranho, no Kammar-Taj há muitas referencias a filmes de horror. A mais lembrada é a forma como a bruxa se move, entre as superfícies espelhadas.
Para atacar os magos, ela sai de um gongo reflexivo de forma bem característica, lembrando criaturas "possuídas", sendo a mais famosa Sadako, ou Samantha, da saga Ringu ou O Chamado.
Para atacar sua adversária, Strange utiliza seus poderes de forma menos genérica do que meros raios de energia, transformando os ataques em serpentes e cobras.
Mas a maior demonstração desta sequência é na fuga mal pensada de América, que faz um mergulho por (aproximadamente) uma dezena de dimensões, em mundos super coloridos, outros que desafiam a lógica, e lembram os filmes de Ken Russell, sobretudo Viagens Alucinantes, lançado em 1980.
Já no universo dos Illuminati, o 838, já se tem um início que flerta com o horror de assombração em casas e fenômenos como Poltergeist.
Quando Wanda tenta assumir o papel de sua contraparte, há efeitos sonoros bastante altos, aparições fantasmagóricas nos espelhos, xícaras que imitam o balançar de ondas do mar,
Já na base dos Illuminati, Maximoff aparece toda ensanguentada, como uma versão mais bizarra e profana de Carrie White protagonista da história de Stephen King, Carrie: A Estranha.
Aos poucos ela neutraliza cada um de seus oponentes, sempre de forma criativa, mutilando, desintegrando, "remontando" a carne deles ao seu bel prazer. Ela esmaga, corta, quebra pescoço, é uma máquina de matar, um bom brinquedo nas mãos de Raimi, que sempre curtiu a ideia de colocar seus personagens em situação de violência extrema e sanguinolência.
Ainda termina com uma baita cena pré incursão, dentro de túneis que favorecem a sensação de claustrofobia.
Já no universo colapsado onde habita um Doutor Estranho corrompido, se percebe o "polêmico" terceiro olho, representação visual e gráfica da evolução mística de Strange, nos quadrinhos tratado como uma das formas do Olho de Agamotto - nos filmes do MCU, esta era uma das joias do infinito.
Esse olho a mais é bastante visto em materiais da cultura oriental, a exemplo até do famoso anime Yu Yu Hakusho, com Hiei, um personagem que é conhecido como demônio do fogo, e que mais tarde, se juntaria aos heróis do anime/mangá de Yoshihiro Togashi.
Possivelmente esse terceiro olho será um conceito a ser mais explorado em produções futuras do Mago.
Ainda neste, existem as almas atacando a versão 838 de Christine, que tenta proteger o Stephen enquanto ele faz manipulação onírica.
De volta ao universo 616, o cadáver da contraparte do herói entra em ação, voando de maneira torta e bizarra, viajando pela neve em uma cena maravilhosamente bem construída, com espíritos em volta, atacado pelas almas do lamento que primeiro tentam punir o herói por sua hipocrisia de mexer com seres mortos, e depois viram instrumentos de impulso.
O momento mais bizarro é quando ele faz um discurso motivacional, com um queijo solto da mandíbula, com pouca carne, mostrando ossos e dentes de forma explícita. Falta carne, mas sobra lição de moral, é um entretenimento bem com o estilo de Raimi, que consegue trazer uma ironia às vezes fina, mas nada sutil na maior parte das vezes.
O momento mais triste certamente é Wanda afirmando que não é um monstro, na frente de sua contraparte, que por sua vez, protege os gêmeos Billy e Tommy.
A Feiticeira tenta pedir para que eles não a julguem, em vão, afinal, ela chegou lá para roubá-los, para tirar a vida da única pessoa que eles têm, repetindo a condição comum do monstro que mata entes queridos, além de reprisar a trajetória comum das mães de filmes de terror, presente em tantas produções como Sexta-Feira 13, o já citado Carrie: A Estranha ou Psicose.
Se o roteiro de Michael Waldron não é bem feito, ao menos o cineasta consegue dar bons significados sentimentais as ações de seus personagens. Quase nenhum momento emotivo é desperdiçado, nem ao final, quando brota o terceiro olho no Strange 616.
É esperado que haja mais incursões no terror dentro do UCM, embora as esperanças sejam poucas. Resta aos aficionados pelo cinema de Sam Raimi que ele decida retornar suas forças e talentos novamente para a grande tela, afinal, é um cineasta de muito talento, que faz falta ao cenário do cinema de horror.
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