Crítica: Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge

A proposta de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge era arriscada. Pegar um personagem com mais de 70 anos de histórias em quadrinhos e tentar encerrar sua trajetória, fechando a trama começada em Batman Begins, criando a primeira trilogia de uma adaptação de HQs com começo, meio e fim. O mais próximo a isso nos cinemas foi X-Men: O Confronto Final, e mesmo assim a franquia mutante da Marvel deixa pontas soltas que poderiam culminar em uma outra sequência, além da óbvia queda de qualidade que pode ser observada do segundo para o terceiro filme. Com o Homem-Morcego, a idéia, do ponto de vista mercadológico é ainda mais “absurda”: por que encerrar uma franquia cujo protagonista ainda teria muitas histórias a se contar (ao contrário de Harry Potter, que adaptou uma obra literária com um final planejado) e ainda por cima rendeu uma das maiores bilheterias de todos os tempos com O Cavaleiro das Trevas, em 2008? De qualquer forma, Christopher Nolan sempre viu a série como uma obra em três capítulos que contava a jornada de um homem para salvar sua cidade natal. E com esse objetivo em mente, conseguiu o que até nos quadrinhos é algo raro e entregou três partes de uma história que mantém a qualidade no mais alto nível.

Com a vantagem de não funcionar apenas como um filme do Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge prova que é possível se gastar milhões numa produção destinada ao grande público sem sacrificar a qualidade da trama ou o foco em personagens ao invés de simplesmente lançar mão apenas de grandes cenas de ação. Prova disso são os 40 minutos iniciais, que se preocupam mais em estabelecer o cenário que Gotham se encontra, oito anos depois dos eventos do longa anterior. A cidade vive tempos de paz graças à transformação de Harvey Dent em herói, quando o Comissário Gordon (Gary Oldman) e o Batman (Christian Bale) decidiram esconder que o promotor havia se tornado o vilão Duas-Caras, uma mentira que ecoa na consciência dos dois homens mesmo depois de tanto tempo. Novos personagens são apresentados, como o idealista policial John Blake (Joseph Gordon Levitt), a milionária Miranda Tate (Marion Cotillard) e a ladra Selina Kyle (Anne Hathaway), três coadjuvantes que são frutos da decisão de Bruce Wayne de abandonar sua carreira de vigilante noturno e sua vida social como playboy e diretor de suas empresas. O primeiro é um honesto homem da lei que talvez não tivesse espaço para o ser, não fosse a limpeza nas ruas e no Departamento de Polícia que o Ato Dent proporcionou. A segunda surge como uma espécie de substituta de Bruce, após seu afastamento, que tenta manter a cidade um lugar melhor. E a terceira tem sua existência justificada pela falta de alguém capaz de persegui-la ou, como é mostrado no decorrer do filme, guiá-la para um caminho diferente. Neste momento surge o vilão Bane (Tom Hardy), um terrorista que passa a viver nos esgotos de Gotham, recrutando mendigos e trabalhadores que ninguém nota em uma metrópole, como faxineiros e engraxates, para formar seu exército e levar a cidade a uma “revolução” social.

Nolan opta por começar o filme sem alterar o estilo “drama policial” do segundo, inclusive mostrando Blake investigando uma série de mortes próximas ao despejo de esgoto e o rápido seqüestro de um congressista, em um início que referencia a extinta série de HQs Gotham City Contra o Crime, escrita por Ed Brubaker e Greg Rucka entre 2003 e 2006. Apenas quando a ameaça de Bane começa a se fortalecer, ou melhor, se tornar mais evidente, é que o longa passa a adquirir características de thriller, filme-catástrofe e até de épico histórico, numa reviravolta que também acelera o ritmo da produção, voltando à narrativa em “crescendo” de O Cavaleiro das Trevas, mas com a contínua exploração da jornada de Bruce Wayne, que desta vez adquire um teor de auto-conhecimento por parte do protagonista que também traz a conclusão do estudo de personagem iniciado pelo primeiro longa.

O que torna O Cavaleiro das Trevas Ressurge tão distinto quando comparado a outras adaptações de quadrinhos para as telonas é a preocupação de Christopher Nolan em tornar seu filme uma obra que possa ser discutida como algo além disso. E, em meio a blockbusters lotados de computação gráfica, o diretor opta por cenas de ação com explosões reais e perseguições em ruas movimentadas (uma tradição de sua passagem pelo universo do Homem-Morcego) ao invés de carros filmados em um estúdio com fundo verde. Além disso, em termos de escala, …Ressurge é uma conquista cinematográfica que pode ser observada em duas cenas de enorme impacto que envolvem um número absurdo de figurantes. Uma delas, dentro de um estádio de futebol americano, contou com a presença de 10 mil pessoas. A outra, o mais próximo que o cinema já viu de uma batalha digna de épicos como Coração Valente transposta para um cenário urbano, é tão impressionante por sua amplitude e pelo controle que o diretor mantém da multidão que quase ofusca a celebrada cena do caminhão tombando no segundo filme. Nolan faz cinema como há muito tempo Hollywood não se permite: criando sequências gigantescas em locações reais, com ajuda do trabalho de uma competente equipe técnica.

Grande parte da qualidade do novo longa se deve à parceria do cineasta com seu diretor de fotografia, Wally Pfister, que agora trabalha as maiores sequências utilizando a vantagem do IMAX, rodando cenas impressionantes em 65mm que são um deleite visual. Pfister também mostra uma evolução na composição de quadros que desta vez conseguem captar melhor a geografia das locações dando ao espectador, de forma mais satisfatória que nos anteriores, uma noção de espaço fundamental pra captar toda a grandiosidade da produção. Além disso, Nolan também evolui as cenas que envolvem combate corpo-a-corpo. Desta vez o diretor opta por não aproximar tanto a câmera de seu assunto, nem de cortar demais entre um take e outro, o que gera um dos grandes momentos da fita, a primeira batalha de Batman contra o vilão. O combate é mostrado de forma tão brutal que mesmo a excelente trilha de Hans Zimmer é excluída da equação. Apenas os efeitos sonoros de socos, chutes e ossos se encontrando são suficientes para criar a tensão, aliados à opção de sempre mostrar Bane em ângulo baixo, enaltecendo sua superioridade física em relação ao herói.

Se tecnicamente o terceiro filme do Homem-Morcego se destaca tanto, seu roteiro é igualmente interessante, embora nesta questão contenha certos problemas. Christopher e seu irmão Jonathan Nolan(trabalhando em história criada por David S. Goyer) são muito felizes em fechar as pontas deixadas soltas pelos primeiros filmes, assim como dão a Bruce Wayne motivos para que cresça como personagem, como já citado há alguns parágrafos. O desfecho da trama principal é tão satisfatório quanto o início e o meio. Porém, como decidem adicionar novos personagens, sacrificam um pouco a história e motivações de cada um, principalmente da Mulher-Gato de Hathaway e do industrial Dagget (Ben Mendelsohn) que surge como um dos vilões mais unilaterais de toda a franquia. Talvez por isso, à ele sejam reservados alguns diálogos que beiram ao constrangedor. A felina é vivida com muita intensidade por Hathaway, numa interpretação magistral e a facilidade da atriz em mudar seu semblante em milésimos de segundos em suas duas primeiras aparições só confirma isso. Porém é impossível não sentir falta de um pouco mais de sua história. Quem é Selina Kyle, afinal? Essa pergunta só consegue ser respondida por algumas pistas deixadas pela direção de arte de Nathan Crowley, que exibe muito cuidado na criação do apartamento da moça. Mesmo Miranda Tate não é exatamente necessária para a trama e sua função poderia ter sido condensada apenas a um personagem (que não cabe dizer quem é, para evitar spoilers, mas deve ser facilmente identificado após o término do longa). Já Blake é uma surpresa. Com direito até a um tocante momento em que conta sua história à Bruce Wayne, o personagem não só é uma oportunidade para seu intérprete demonstrar grande competência dramática como também define Gordon Levitt como astro de ação. À Lucius Fox (Morgan Freeman) e ao Comissário de Oldman, a habitual competência, embora com tempo de tela reduzidos quando comparado aos anteriores. Quem também aparece menos é o mordomo Alfred vivido por Michael Caine. Porém, todas as suas cenas são importantes e dão ao ator a chance de demonstrar sua capacidade de fazer o espectador encher os olhos de lágrimas. E seu melhor momento na produção também não usa trilha sonora alguma, deixando apenas nas costas de Caine e de Bale a responsabilidade de passar todo o sentimento contido na cena. Por falar no intérprete de Batman, …Ressurge contém sua melhor investida no personagem, com direito a uma das grandes marcas de Bale como ator, sua dedicação física à seus papéis. Exibindo uma magreza incomum quando a trama revela Bruce Wayne no início da projeção, o astro consegue assim, exteriorizar o estado frágil que cai sobre o protagonista, também psicologicamente, da mesma forma que em uma das últimas cenas do longa, exibe numa expressão de esforço a dificuldade e importância da decisão que toma.

E, se Bane não exibe o carisma do Coringa de Heath Ledger, não é por falta de competência de Tom Hardy, mas porque a trama assim exige. Em um filme que precisa ter todo o foco em Bruce Wayne, um antagonista que chame demais a atenção para si não é a melhor opção. Por isso, mesmo sendo ameaçador em sua composição, que vai desde a forte expressão do olhar de Hardy, passando por seu musculoso físico e chegando até sua voz, que exibe uma sensacional mistura de sarcasmo, cinismo e sadismo, Bane jamais diminui a importância do Batman. E mesmo seu plano, que num primeiro momento pode não fazer muito sentido, é coerente com sua postura de torturador. E é exatamente a uma longa tortura psicológica que o personagem faz Gotham City passar. A cidade, inclusive, tem em sua arquitetura opressiva, com seus enormes edifícios e pontes, o cenário perfeito para refletir o momento que sua população passa nas mãos do vilão.

Fechando a cinessérie com uma produção à altura de seus antecessores, não sendo nem melhor ou pior que nenhum deles, apenas diferente (característica fundamental pra qualquer franquia que queira sobreviver a mais de um filme), O Cavaleiro das Trevas Ressurge é mais que um presente aos fãs do Batman, que finalmente puderam ver seu personagem favorito em uma releitura ousada e interessante que se mantém fiel à essência do material original. É também um grande feito cinematográfico de Christopher Nolan que conseguiu contar sua história com o mínimo de interferência do estúdio e com uma coerência temática que pode ser observada pelas rimas visuais presentes na trilogia e por toda a preocupação em mostrar a força do Batman como símbolo que inspira as pessoas a se tornarem algo mais. No mundo de Nolan, qualquer um pode ser o Batman. É só preciso a motivação correta e a disposição para fazer a coisa certa. E, em uma jogada ainda mais audaciosa, dá à Warner/DC tanto a chance de continuar esse universo rico desenvolvido por seu trabalho, como de reiniciar totalmente o personagem, talvez dando a oportunidade para outro cineasta visionário exibir sua própria interpretação do Batman. Ou quem sabe, em uma decisão ainda mais arriscada que dar um final a um personagem com tanto tempo de existência, optar pelas duas coisas.

Alexandre Luiz

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