O MCU (Marvel Cinematic Universe – Universo Cinematográfico Marvel) ainda não tinha realizado um filme com protagonismo feminino até 2018. Mesmo dez anos após seu surgimento, o MCU só teve heroínas em papéis periféricos – eram coadjuvantes de outros heróis masculinos ou eram integrantes dos Vingadores, sem terem tido seus respectivos longas. Foi preciso que a Distinta Concorrência, a DC, desse o primeiro passo com o filme solo da Mulher-Maravilha, em 2017. Mesmo que o filme da Marvel tenha começado seus trabalhos de pré-produção antes que o longa da DC, o filme solo de Carol Danvers só veio depois do da Diana Prince.
Poderoso(a). Talvez não haja uma definição mais apropriada para constatar o que é a experiência de assistir um filme como Capitã Marvel em 2019. Para as crianças e jovens da geração atual, o conectar-se com essa história pode ser algo próximo do efeito Superman-Reeve-Donner de 1978. Não só pelas circunstâncias culturais e políticas que estão atreladas com os contextos fílmicos da produção e renovação da indústria cinematográfica após os movimentos Time's Up e #MeToo, como também com a potência narrativa que uma obra como essa pode(rá) incutir nas novos e nos novos fãs. Imergir na história de Carol Danvers (Brie Larson), uma super-mulher-heroína, certamente se tornará inspiração e referência para muitas e muitos.
Situando-se em grande parte na década de 1990, o filme exibe a trajetória da pilota do exército americano Carol, que acaba se tornando Vers depois de absorver uma energia que a faz incrivelmente forte, passando assim a pertencer ao povo Kree. Guiada pelo mentor Yon‑Rogg (Jude Law), a personagem é ensinada a dominar, mesmo sem saber, sua natureza humana a fim de se tornar uma guerreira em defesa do seu povo na guerra estabelecida contra os Skrulls, povo que é capaz de assumir formas diferenciadas. Em um momento de confronto com os “inimigos”, Vers é capturada e, após conseguir se libertar, acaba por literalmente cair na Terra, instante que demarca um viés elementar para o autoconhecimento e humanização da personagem.
Ao encontrar Nick Fury (Samuel L. Jackson), Vers inicia sua caminhada de encontro a quem verdadeiramente é, descobrindo e relembrando todos os laços de sua vida terrena enquanto Carol Danvers, restabelecendo lembranças e conexões afetivas que a fazem uma mulher que, ao superar inúmeros preconceitos, a tornam ainda mais poderosa. E é por meio dessas reconexões que se apresenta a relação entre a protagonista e a personagem vivida por Annette Bening, fato importante no desenrolar de todo o enredo.
Em cenas pontuais, o filme concebe a quem assiste, principalmente as espectadoras, momentos de construção e desconstrução das referências que se tem de forte e fraco, fazendo com que a trama enverede por um delineamento através do qual é quase possível se alcançar sonhos utópicos de quebras de paradigmas relativos ao que se entende como parâmetros quando o assunto é o tido “sexo frágil”.
A narrativa, que tem por finalidade apresentar uma personagem fundamental no Universo Marvel, se desenha de maneira a construir Danvers em toda sua humanidade, fomentando como tal característica é o que lhe faz mais forte, permitindo-lhe uma plena apropriação, confiança e domínio de seus superpoderes. Em toda a duração da película, a protagonista aparece destacadamente iluminada diante dos outros personagens, evidenciando o potencial particular e imensurável da Capitã Marvel.
Fugindo de cenas comuns (inclusive em outros filmes da própria Marvel) que objetificavam o feminino, o filme faz o inverso: Korath, personagem do ator Djimon Hounsou, em certo momento do primeiro ato, é objetificado pelos próprios companheiros. Ainda que de forma obviamente cômica, sem de fato explorar e objetificar (seriamente) o masculino.
As nuances técnicas do filme também se sobressaem. O processo de rejuvenescimento de personagens prova-se cada vez mais crível e, dessa vez, não houve apenas uma cena ou duas com atores com seus rostos de trinta anos atrás. Há, no escopo do filme, quase um buddy cop movie acontecendo durante boa parte do primeiro para o segundo ato de Capitã Marvel. Os efeitos especiais, ainda que não estejam no nível demonstrado em Thor: Ragnarok, por exemplo, cumprem bem o seu papel de destacar o mais necessário: os poderes da heroína e as cenas de ação no espaço.
Como nos filmes anteriores, há uma parcela considerável de easter eggs distribuídos nas pouco mais de duas horas da obra. São referências musicais (chega a tocar Nirvana e Hole no filme), referências fílmicas e outras que são elos com o próprio MCU, como o pager, o tapa-olho do Nick Fury e a cômica criação da Iniciativa... Protetores. A abertura, com o famoso letreiro da Marvel relembrando icônicas cenas dos quadrinhos do personagem-título, ganhou uma nova roupagem que homenageia de forma digna o recém-falecido Stan Lee, que ainda volta a aparecer referenciando a si mesmo e sua participação em um certo longa-metragem do diretor-ator Kevin Smith. Uma questão, contudo, paira no ar: o gato Goose estará na sequência de Capitã Marvel? Estará em Vingadores: Ultimato? Ele irá interagir com o Rocket Raccoon?
Na tentativa de resumir a experiência, pode-se dizer que Capitã Marvel é um filme sobre uma mulher que vai se fortalecendo. Antes presa – vide as pulseiras que imobilizam suas mãos em determinado momento do filme, ou ainda o bloqueador que é colocado em seu pescoço, sua força heroica vai escalonando na mesma medida em que ela vai redescobrindo sua sequestrada humanidade e tendo contato com o diferente: sejam os Skrulls ou os humanos.
É visualmente perceptível: temos uma mulher que aprendeu a se levantar após tanto cair (seja na praia, de uma corda em treinamento ou cair de um planeta em outro). Ela sabe que não precisa provar nada para ninguém. É uma mulher com deboche, séria quando precisa ser e que sabe ser humana e heroica na medida certa.Capitã Marvel é tudo o que se precisa que ela seja: uma mulher.