Crítica: Faroeste Caboclo

poster faroeste caboclo“Tão original e importante para uma geração, quanto à música de Renato Russo.”

De certa maneira, transformar a canção Faroeste Caboclo, composta por Renato Russo e imortalizada pelo grupo Legião Urbana, num livro, peça ou filme, era o desejo de muitos jovens que viveram, ou não, a época do Rock Brasília. E, assim como esses, o cineasta e publicitário brasiliense René Sampaio, desde sua adolescência, fantasiou o tal projeto para os cinemas e, agora, decidiu por em prática suas ideias. Sendo, então, lançado semanas depois da recente cinebiografia Somos Tão Jovens, do próprio músico e poeta Renato, abancando a onda e servindo como obra complementar, ainda que sejam adaptações distintas.

Mesmo com um texto pronto, o trabalho de concepção do roteiro, precisou sofrer alguns ajustes para que a liberdade artística do filme pudesse criar mais raízes e ter sua trama ramificada. Porém, o mais importante, é que a essência da obra original permaneceu intacta. É possível senti-la, após o termino da película. A odisseia do tal João de Santo Cristo, foi muito bem retratada nessa primeira aventura de René, num longa-metragem. Já possuindo domínio de direção e utilizando bem uma linguagem cinematográfica bastante atraente. Com planos e ângulos interessantíssimos, que falam mais que muitos diálogos.

Um dos maiores feitos da fita é ser extremamente original e verossímil, sem que, em nenhum momento, soe como uma espécie de videoclipe ou cópia pedante e maniqueísta. Seguindo os moldes do bom cinema, a apresentação dos personagens é muito bem concretizada. Logo no primeiro ato, quase todo cast tem os seus arcos definidos e o processo de identificação, junto ao espectador, de pronto, acontece. Fazendo com que o público tome interesse por aquelas figuras e queiram saber seus destinos dali pra frente.

Com um jovem elenco liderado por Fabrício Boliveira e Ísis Valverde, que faz sua estreia nas telonas, os atores, de um modo geral, parecem estar muito envolvidos com o filme e desenvolvem maravilhosamente bem a personalidade de seus papéis. Boliveira se entrega por completo e transpõe, magistralmente, um João mais duro que o original, porém, com todas as características heroicas imaginadas. Tanto em sua postura física, como nos olhares profundos e intensos, que simbolizam bem o sofrimento e a luta do caboclo. Valverde também não fica atrás e consegue perpetrar um desempenho eficiente, fazendo com que a plateia entenda que antes do João, o seu mundo era, de certo modo, vazio e desinteressante – quando, numa cena, Maria Lúcia se vê numa imensidão branca e nula, ao perceber que está só novamente.

Ainda que o experiente Antonio Calloni (Anjos do Sol) represente o General das Cinco Estrelas e consiga passar muita veracidade, o principal antagonista daqui, e que tem maior destaque, é o famoso Jeremias, que ganha vida com Felipe Abib (Vai que Dá Certo). Diria que, em muitos momentos, o ator abusa da caracterização exagerada de seu personagem e mostre-se um tanto overacting e canastrão. Às vezes se parecendo com o comediante Marcelo Adnet, numa de suas intrépidas imitações. Outra proeminência do elenco, que é marcada, infelizmente, pela tristeza, é a despedida do ator e diretor Marcos Paulo (Assalto ao Banco Central). Esse é o último trabalho do mesmo, atuando, que, por sinal, está ótimo em tela.

Esteticamente muito atraente, o trabalho de fotografia de Gustavo Hadba (Meu Pé de Laranja Lima) é realmente magnífico. As paletas de cores do cinematógrafo, utilizadas nas várias locações, para representar o clima de cada cenário e momento, funcionam como uma luva e tem fator fundamental para criação da ação proposta. Quando, por exemplo, é retratada a seca do sertão, com tons mais estéreis e claros, ou mesmo com uma perspectiva de lentes mais intensas e amareladas, no sol de Brasília, que parece pegar fogo, como a vida de João. Claro que Hadba estava bem auxiliado ao lado da direção de arte de Tiago Marques Teixeira (Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora É Outro), que é um show a parte. Com cenários impressionantes, pela sua riqueza de detalhes, somos transportados para a década de oitenta, numa Ceilândia praticamente reconstruída. Acredito que a própria Brasília seja um dos principais personagens e que, somente algumas pessoas, irão sentir essas nuances, por já terem conhecido a Capital.

Quem assina a trilha sonora é Philippe Seabra, um dos fundadores e vocalista da banda Plebe Rude, que também fez parte da geração roqueira oitentista de Brasília. Ou seja, alguém que realmente viveu e participou de forma direta na música daquela época. E que, não por acaso, constrói uma trilha que passa por várias camadas sociais, desde a classe dos playboys, que ouviam mais os sons americanos, como também os adolescentes que acompanhavam o que era lançado, pelos muitos shows que aconteciam. Ao lado de Seabra, está também Lucas Marcier (5x Favela, Agora por Nós Mesmos), responsável pela maioria dos arranjos incidentais da fita, e que também é muito competente, criando tensão e suspense quando necessário.

A sensação de satisfação é irrefutável, após os créditos finais de Faroeste Caboclo, isso por René Sampaio engendrar um trabalho orgânico e inédito, com referências ao western spaghetti de Sergio Leone, baseado nessa canção tão marcante para uma geração. Que representa não só um gênero musical, mas também toda uma classe. O jovem negro que sai do sertão/favela e é ou era, de certo modo, fadado a um destino injusto, na maioria dos casos. E o trágico final feliz, à la Romeu e Julieta, imprime perfeitamente o legado de luta, amor e ódio deixado por João e sua Maria Lúcia.

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