Diálogo Crítico: The Leftovers S02E01- Axis Mundi

A ideia da coluna Diálogo Crítico é a de uma construção conjunta entre duas ou mais pessoas que busca analisar da forma mais completa possível produtos de diversas mídias para que o leitor possa aprimorar sua experiência, assim como fazer parte desse diálogo, sempre com o objetivo de enriquecer a reflexão por meio da troca de ideias.

Por: Igor Frederico e José Guilherme

Igor Frederico: É curioso como um produto audiovisual bem feito atinge níveis de assertividade e proporciona uma gama interminável de interpretações que formam uma camada completa que se reflete em sua totalidade. Estou falando isso, porque já na abertura da segunda temporada, The Leftovers consegue estabelecer não só um novo tom, assim como traduz o cerne principal da série e nos dá um primeiro olhar de como as coisas serão nessa segunda fase. Isto na abertura. Daí tem a primeira cena, uma espécie de prólogo que nos remete a antiguidade e em seus acontecimentos também retrata a temática geral da série e, como a abertura, define o que virá no segundo ano.

Logo após esse prólogo há uma transição para um local com água onde três belas garotas nadam e se divertem. E na última cena do episódio há o desaparecimento dessas mesmas três garotas, assim como o da água onde nadavam. Isso é a tradução do que eu falei nas primeiras linhas desse parágrafo. Um círculo fechado de coerência que é resultado de um produto totalmente bem feito, estudado e que pode atingir níveis de grandeza surpreendentes.

José Guilherme: Incrivelmente, o círculo que compõe a entrada do segundo ano, começa mesmo com o novo tom imposto pela melodia country do tema de abertura. Partidas repentinas refletidas num infinito de incertezas em fotos que deveriam eternizar momentos. Doloroso, belo e provocativo, assim como toda The Leftovers. Fiquei impressionado também, com o fato de que o Lindelof já resgata uma das principais características do seu texto: a subversão de expectativas. Não avistamos rostos conhecidos. Não reconhecemos aquele tempo. Não sabemos o que esperar daquele lago no “eixo do mundo”. Coesão audiovisual é um dom e as mentes por detrás da série, manipulam ela como artesões da mais fina estirpe.

IF: Voltando a abertura nova, mencionamos que ela já apresenta o novo tom que Lindelof (o criador e showrunner da série) e sua equipe decidiram estabelecer para esse novo ano. Esquecendo a abertura sombria com acordes soturnos e um clima desesperador da primeira temporada, essa começa com uma vinheta mais positiva, com uma música country embalada em alguns leves acordes de surf music. Tudo para que possamos nos ambientar, nos estranhar, revoltar e fazer com que precipitações surjam dentro de nós, como espectadores, que amamos repetições e o lugar comum. Leftovers chega de forma brusca, sem aviso prévio e nos joga uma música, imagens e tom totalmente diferentes do que estávamos acostumados. Estranheza na certa. Esse é claramente o objetivo dos realizadores, causar espanto e revolta. Mas é só dar uma ouvida mais atenta à letra da música e tentar entender o contexto da mudança para que tudo faça sentido. O refrão, que inclusive encerra a abertura, solta no ar a frase: “Think I'll just let the mystery be"( Acho que vou simplesmente deixar o mistério pra lá. Em tradução livre). Ora, esse trecho resume tudo o que a série vem dialogando com o espectador desde seu primeiro episódio. Não se trata do mistério ou de quem desapareceu, se trata de quem ficou, de como o ser humano reage a perda; de como a vida continua sem aqueles que amamos; de como o absurdo afeta nossas vidas e de como o acaso faz parte delas. Ou seja, o mais simples é deixar o grande mistério de lado e seguir em frente, até como questão de sobrevivência.

JG: Não sou fã de mudanças bruscas, mas a pretendida aqui reforça a predileção por signos, que Leftovers teve desde o seu início. Como o Igor disse, o impacto alcançado agride e revolta, porém com propósito. É tipo “sério, cadê a série que eu comecei a ver ano passado?”, ou “ei, me devolvam o soturno, a opressão, o mistério”. Daí em menos de vinte minutos, você se encontra perplexo com uma apoteótica cena que evoca o acaso, a partida e um mistério sob a óptica de uma humana milenar. A gente dá adeus a toda estranheza causada pela simbologia da mudança e acabamos presos, sem perceber, na mesma rede que fez os sumiços em Mapleton tornarem-se tão impressivos.

IF: Ainda sobre o prólogo temporal, se levarmos em conta a coesão da série, e analisarmos o refrão da abertura, chegaremos a simples resposta de que o que foi mostrado ali “Não importa”. A sequência inteira é quase que uma piada bastante bem orquestrada pelos criadores da série, com o intuito de remeter quem assiste ao clima neurótico do show, de que algo fez aquilo acontecer, de que a ave é a razão para as mudanças da vida, etc. Mas a ave simplesmente está ali, sobrevoando a região onde habita, onde mantém seu ninho. Os sinais advêm do olhar humano. Até a mulher, que é primitiva, traça uma conexão dedutiva dos acontecimentos. Na primeira temporada, uma gama da humanidade deduzia que a Departure dos seus entes queridos era algo divino, algo apocalíptico, vindo das escrituras e por ai vai. Mas isso nunca importou, pois durante os 10 primeiros episódios o que vimos foi à reação das pessoas àquele acontecimento estranho. Muitos queriam explicação, mas nada chegou. O mesmo vale para os acontecimentos da primeira cena. Houve um terremoto, a tribo da Mulher morreu, ela teve um bebê sozinha, ficou com fome, foi picada por uma cobra, morreu e uma outra mulher achou o seu filho. A ave estar em todos os pontos chave dessa jornada é apenas um ludibriador. Algo posto para que nossos olhos enxerguem algo a mais, forme conexões, quando a conexão real aqui é a de que: coisas ruins acontecem, e simplesmente temos que aprender a conviver com isso, elas tendo uma razão ou não de ser.

The LeftoversS02.1

JG: É dessa manipulação que eu estou falando. No momento, não existe nenhuma série no ar que consiga brincar com nossos sentidos e pensamentos como Leftovers. Nós buscamos explicações para tudo o que acontece ao nosso redor. Esta é a natureza do ser humano. Partindo dessa máxima, os roteiristas instigam, desafiam e brincam com aquilo que consideramos mistério, razão de ser e divino. Não existe nada de especial na tribo que é soterrada pelo terremoto. A mãe que defende o filho com a própria vida, não é a representação dos nossos anseios. O bebê resgatado não simboliza esperança. Tudo ali é o que deveria ser e ponto. No entanto, a elipse que encerra o primeiro ato, nos joga para uma direção completamente diferente. Se aquilo aconteceu (mesmo que eras atrás) na beira do lago de Jarden – ou Miracle, a cidade sem partidas –instantaneamente um significado oculto é criado. Se ele realmente importa? Claro que não.

IF: Após a morte da Mulher, ouvimos pela primeira (e única) vez no episódio a faixa já clássica da trilha sonora da primeira temporada, o tema Departure. E em uma transição temporal estilo 2001 - Uma odisseia no Espaço, saltamos de tempos imemoriáveis para os dias de hoje, onde as três garotas tomam banho na nascente bastante convidativa, que um dia foi berço do começo e do fim. Neste momento vemos um cientista colhendo amostras da água do local e uma das meninas do grupo também recolhendo uma quantidade até excessiva do mesmo conteúdo. Então somos apresentados ao lado B de Leftovers, um novo grupo de pessoas, uma nova cidade, um novo líder não oficial.

JG: O engraçado é que no momento em que eu percebi o que estava acontecendo ali, a premiere da terceira temporada de LOST me veio a cabeça. Lindelof mais uma vez fez o Conto de Duas Cidades de Charles Dickens tomar forma numa inspirada referência. Tudo foi “novo de novo” quando nada estava diferente. O romance que trata de temas como culpa, vergonha e retribuição, cai como luva para representar Leftovers. Que falta esses easter eggs fizeram.

IF: Ganhamos também um tempo absurdo de apresentação dos novos personagens. Ele vai se estendendo e se estendendo, fazendo parecer que estamos assistindo a um reboot, ou uma nova antologia de histórias. Assim como na abertura somos obrigados e enfrentar o desconhecido, mesmo que isso nos revolte. Essa é outra sacada que remete novamente a coerência da série. A abertura queria justamente estabelecer o clima pra isso, uma cidade mais animada, com pessoas diferentes, que enxergam a vida de uma maneira melhor desde o famoso dia em que as pessoas desapareceram. Aliás, somos levados a crer que a cidade não teve ninguém desaparecido. Cidade esta que agora se chama “Miracle” (Milagre, em tradução literal).

O nosso líder não oficial do lado B é um cara que dorme tão bem que mesmo que empilhe uma fileira de livros em cima do homem ele não acorda. Aparentemente um cara legal, bom pai de família, carismático, e que, pelo sono pesado, não têm nada com que se preocupar. Porém, após visitar uma espécie de vidente que lhe dá uma notícia ruim, nosso líder não oficial retorna mais tarde a casa desse vidente, desta vez com a ajuda de um corpo de bombeiros nada convencional e incendeia a casa inteira, sem mencionar que desfiguram o vidente. Um ato estranho, cruel, que é comandado pelo nosso líder com uma frieza impressionante. Algo que mantêm a intenção da série de mostrar que nem tudo é o que parece, nem toda ave é um sinal divino e nem todo corpo de bombeiros serve para apagar incêndios.

JG: Se no passado, a primeira vista de Mapleton nos jogava no meio de um grupo de pessoas que buscavam o entendimento e a libertação por terem sido Deixadas Para Trás, as ensolaradas vizinhanças de Miracle, remetem a paz; o éden no meio do caos. São apresentações duais, mas que acabam culminando no mesmo ponto de ruptura. Kevin Garvey deveria ser o policial modelo, assim como John Murphy deveria representar o resgate, só que eles não o são. O lado B de Leftovers vai começando a se mostrar mais A do que nunca. E quando isso está prestes a explodir, a colisão vem com o primeiro rosto conhecido em quase quarenta minutos da primeira hora. O reverendo Matt Jamison está em Miracle.

IF: Sim, apenas aos 38 minutos de episódio que temos um vislumbre de um personagem da temporada anterior, fazendo com que nossa estranheza se acalme um pouco e que uma ligação provável há de acontecer. E claro que a primeira pessoa conhecida a aparecer na nova temporada tinha que ser um homem de fé, alguém envolvido com crença e religião, o reverendo Matt. Isso mantém a coerência já repetida por demasiado aqui. Mas é por causa dessa atenção aos detalhes em colocar um homem de fé como a primeira aparição de alguém familiar para nós enquanto espectadores, que fará com que nosso cérebro funcione analisando pontos e fatos inexistentes. Com um prólogo feito pra parecer algo de fé, algo baseado em crença, o nosso primeiro rosto conhecido tem que ser de alguém envolvido em crença, mas que pra quem realmente o conhece, alguém que também está em conflito com a mesma. Ou seja, de forma apenas coloquial, de temporalidade, a série nos conta que toda ela é um apanhado de debate entre crença e realidade.

JG: O embate homem de fé/ homem da ciência – aqui o pragmatismo do policial – já guiou a relação de Matt e Kevin no primeiro ano de Leftovers. Logo, não é coincidência perceber que Matt afeta John com a mesma força. Algo me diz que o chefe do lado B não quer acreditar no fantástico, nos milagres que colocaram sua cidade no mapa do novo mundo pós 14 de outubro. Mesmo assim, a antiga Jarden ganhou com isto e John deve garantir imagem do lugar. Enxergar que um cara que representa a crença do mundo exterior tem forças para acreditar no divino mesmo tendo vivido numa das cidades que enfrentaram o Departure, põe John num perigoso estado de alerta.

The LeftoversS02.2IF: A segunda temporada tem início com um bebê sendo encontrado e “adotado”. Sendo que a última temporada terminou com um bebê sendo encontrado e adotado. É então que enfim, temos os nossos heróis de volta. Nosso bom e velho Kevin Garvey, a nossa sempre linda e triste Nora Dust, a problemática Jill Garvey e o bebê encontrado na temporada anterior. Só para relembrar que narrativamente falando, as duas adoções acontecem de forma mítica, como se os bebês fossem especiais, ou a salvação da vida daquelas mulheres. Mas voltando ao que a série quer colocar, apenas aconteceu desses bebês estarem sozinhos e de duas mulheres, mães, os encontrarem. Narrativamente nada é gratuito. Terminar seu primeiro capítulo com uma rima e começar o seu segundo com a mesma rima com certeza quer dizer alguma coisa. Nesse caso, acredito que tenha apenas uma função narrativa e enganadora, os bebês são importante para a vida das mulheres que fazem parte da trama, mas não necessariamente para a trama em si.

IF: O que queríamos atentar com esse texto é simplesmente a beleza de algo bem feito. Um produto feito com coerência. Onde as transições de cena importam, como por exemplo, após incendiar a casa do vidente, pela manhã o nosso líder não oficial B começa sua investigação matinal atrás de um grilo. Grilo esse que claramente o incomoda, que o deixa louco da cabeça. Uma coisa esquisita, para um homem que não acorda nem com pancada na cara. Mas esse grilo aparentemente retorna pela manhã, e ele nunca o encontra, a cena então corta para a igreja, onde o filho do líder não oficial B dá um sermão sobre culpa. Aí é pra confirmar, uma das alegorias mais fáceis do episódio: o grilo representa a culpa constante que o personagem mantém dentro de si, enterrada em algum lugar. Ele não encontrar o grilo é só um reflexo dessa culpa obscura. Agora, não é lindo isso? Com apenas recursos visuais, a direção de Mimi Leder consegue traduzir sentimentos como culpa de maneira incrível. Essa é a beleza do retorno de Leftovers. Que desde sua nova abertura, mostra a que veio, desde sua primeira cena define o que discute, desde a aparição de personagens conhecidos mantém o debate, e que com o final, apresenta como sabe construir sua odisseia de um futuro perdido. Isso sim é um roteiro pra se amar!

Redação

Comente pelo Facebook

Comentários

Comente pelo Facebook

Comentários

2 comments

Deixe uma resposta