Dessa vez, antes de qualquer coisa, devo jogar logo de cara os dois pontos principais que serão discutidos aqui: Desconforto e Desespero. Isso porque eu não sou a melhor pessoa para organizar de forma linear as minhas ideias, e portando quero deixar estabelecido esses dois tópicos agora para que nem eu nem você que lê ao texto se perca durante o processo. Não vou falar imediatamente sobre eles, porém, já ficam estabelecidos aí até como uma tentativa de alimentação subliminar para que durante a leitura todos saibamos do que tudo se tratou.
Na verdade vou começar falando sobre a cena final do episódio. E por quê? Justamente porque ela é uma prova forte de como Louis CK (ao citar “Louis” estarei falando da pessoa real, e ao falar “Louie” estarei me referindo a série) se aproxima cada vez mais de cineastas iranianos como Abbas Kiarostami. Ao final de um episódio que novamente trouxe os elementos cotidianos e mundanos do universo do comediante a tona, temos então algo que não é novo da série, mas que aqui fez ainda mais sentido devido ao nível de aprimoramento que Louis alcançou na temporada passada e que aqui começou a exercitar de forma totalmente soberana. Citei o cinema de Kiarostami justamente pelo fato deste dialogar o tempo todo com o principio da incerteza. Seus filmes narram histórias reais sobre pessoas reais com essas mesmas pessoas reais atuando e revivendo os momentos reais que de fato aconteceram. Muitas vezes não sabemos se o que assistimos é real ou documental, e é nessa busca mimética que Louie se encontra na sua jornada atual. Claro que o projeto de Louis não se estabelece ou tenta se achar no princípio de incerteza, sabemos que é tudo filmado e que geralmente são atores convidados e que provavelmente nem reais são as histórias, porém, ao estabelecer um processo narrativo tão instigante e que se aprofunda nas entranhas das emoções verdadeiras, o que acaba restando como produto final é um exemplo gritante de mimese bem feito e que ainda encontra espaços para se postar em outros debates.
Um desses debates sendo o da queda do véu e de como a cópia da vida transposta em ficção é algo falso, mas que ao mesmo tempo é quase tão real quanto a vida em si. Mimese em Louie não é só uma cópia de como a vida é, mas sim a vida como ela é de forma copiada. Ao fim do episódio temos um momento singelo que se desmancha em risadas reais que logo é motrado ser uma espécie de “outtake” onde Louis diz “that’s a wrap” (uma espécie de “isso é tudo pessoal” pra mostrar que é o fim das filmagens de um produto audiovisual). Ou seja, Louis interrompe a cena e faz questão de nos mostrar que estávamos assistindo a algo falso. E ele faz isso num dos momentos mais humanos de todo o episódio, isso tudo como forma de nos fazer refletir sobre a Forma em si e como ela nos atinge de maneiras diferentes. Durante vinte e poucos minutos somos introduzidos a um novo personagem, passamos um tempo com ele, aprendemos sobre a sua vida, suas angústias, decepções, problemas, dores e ao final, sua capacidade de ser humano. Mas quando chegamos nesse ponto somos imediatamente jogados para fora do tapete e somos obrigados a notar que tudo aquilo não passou de uma mentira. Que estávamos a assistir a algo fabricado, mas porque o tombo do tapete tem um efeito tão maior aqui? Porque Louis sabe conduzir seu produto, sabe fazer arte, e sabe que tipo de arte está fazendo. Como já disse, o domínio do comediante sobre a mídia em que está já alcançou a perfeição durante os quatro anos anteriores, agora só se desabrocha de forma mais contundente, uma espécie de exercício pessoal do humorista como artista e sendo assim, talvez até cause estranhamento em alguns que não devem estar morrendo de amores por essa temporada até agora.
O mais interessante de finalizar nos mostrando que tudo não passou de uma mentira, é retornar ao início do episódio e perceber que o primeiro segmento foi todo sobre a verdade. Louie se vê obrigado a confrontar uma jovem dona de uma loja de materiais para cozinha no que perde todos os argumentos possíveis e é finalizado por uma poderosa fala que o faz lembrar da verdade: ele está velho e não só está ficando, como provavelmente já é obsoleto enquanto indivíduo, e que deveria ficar feliz por se ver ultrapassado, já que é um sinal de que o futuro já chegou e ele não para, se você não consegue acompanhar, você fica para trás, e Louie se vê diante desse ponto e é obrigado a concordar com tudo que lhe fora arremessado em sua face sem nada para amortecer o impacto. E é em meio a verdade do futuro e em como o individuo é mortal e com o tempo se torna obsoleto que Louis dá início a este episódio.
Agora vamos retomar o primeiro ponto que joguei lá em cima: Desconforto. Durante toda a primeira cena e francamente, todo o episódio o personagem Louie se sente desconfortável, novidade ai? Nenhuma, já que é talvez o personagem mais desconfortável de todos os tempos. Mas a diferença aqui é que o conforto não chega, não importa para onde Louie corra, não importa se resolve confrontar as pessoas que o deixam desconfortável, o desconforto só aumenta. Na loja da jovem empreendedora, por exemplo, ele decide confrontá-la após ser ignorado completamente quando queria saber sobre um produto. Ao chegar ao caixa ele decide então confrontá-la para ganhar sua catarse que como já foi dito não chega e pior é: invertida para um ponto mais baixo ainda. Daí partimos para a jornada que dará o título do episódio, onde Louie encontra-se com um ex cunhado que patrulha a cidade. O homem é um estereótipo vivo, policial de N.Y. com sotaque, forte, agressivo, machão, o pacote completo. Tudo isso é uma fórmula já usada por John Hugues em seu clássico “The Breakfast Club”, onde ele lança estereótipos perfeitos até de mais e os desconstrói ao longo da trama até não sabermos mais quem eram as pessoas que entraram e quais são as que estão saindo. Aqui é o mesmo, o policial começa sendo o que todos imaginaríamos que fosse. O que obviamente deixa Louie desconfortável o tempo todo que está com ele. Porém, ao longo da convivência com o comediante, somos apresentados a uma persona totalmente profunda, perturbada e perturbadora que não só se vê machucada, mas sem lugar no mundo, obsoleto, que nem Louie.
Eis então que somos tomados pelo desespero, o estouro da boiada, a força bruta sem saída, a agonia pura. O policial gosta de se exibir e quando chega na casa de Louie já aparece apontando sua arma, para já marcar o território e mostrar que quem vai mandar na noite é ele. Porém, ao longo da saída dele com Louie descobrimos que ele ainda é devastado pelo término de noivado com a irmã do humorista e que não é feliz no emprego, que não tem amigos, que não tem para onde ir. Um retrato absurdamente melancólico, real de uma pessoa sem saída presa unicamente a vida. Vida essa que se vê confrontada após Louie mais uma vez não aguentar e tornar audível sua revolta sobre o desconforto. É então que as emoções sobem ainda mais alto e alcançam o ápice do real. Não importa se o personagem focado é um policial, o que importa é sua angústia para com a vida, seu desespero, sua perdição. É então que el decide falar sobre sua vontade de pegar sua arma e acabar com tudo, toda aquela vida miserável, as desgraças, a tristeza. E ao caçar a sua arma para fazer a mímica do falso suicídio... cadê ela?
É aí que a explosão ocorre, o homem machão, fortão, parrudão, que só conversa batendo nas pessoas se desmancha em lágrimas. Quase derruba o apartamento de Louie, uma cena patética, especialmente para Louie que de certa forma se vê encarando a um reflexo, uma imagem mais visual, um produto mais gritante de quem ele mesmo é e o momento em que se encontra. O desespero do personagem policial coloca em perspectiva toda a falta de demonstração de desespero do próprio Louie. Ele vê ali o que está dentro de suas entranhas querendo sair, e então vê o quanto é patético, e como precisa virar o jogo tanto para ele quanto para o policial, seu alter ego da vez. Aliás, tanto a perda da arma quanto o desespero que ocorre como o encontrar da arma são metáforas bem interessantes que transportam para um nível ainda mais subconsciente os sentimentos aqui tratados. A arma desaparece exatamente na hora em que o personagem iria falar sobre utilizá-la para se matar. Ora, sem o objeto que terminaria a sua vida, qual o ponto de se matar? A perca do objeto se torna até maior do que a vontade de acabar a vida com ele. A angústia de ter perdido talvez a sua única saída do mundo é aterrorizante e a busca por tal objeto é a busca por uma saída do estacionamento do presente para a garagem do futuro. Louie toma a iniciativa e após confrontado por sua imagem multiplicada algumas vezes mais decide ir atrás do objeto matador até que após um tempo consegue encontra-lo e é recebido com um caloroso abraço pelo seu Gremlin deformado que agora chora em seus braços enquanto uma arma é segurada entre os dois. Até que Louie ao abraçar de forma mais carinhosa o seu reflexo ruim acaba por apontar a arma para a cabeça do mesmo, o que simboliza a possível morte do ser estagnado para que assim uma outra pessoa, que acompanhe o futuro e não seja obsoleta surja.
E é em meio a isso que voltamos para a cena final, onde Louie ensina seu amigo policial a tricotar. Dois homens do tamanho que eles são em um close-up apertadíssimo, focados sobre uma atividade tão delicada, tão sensível (mundano/belo, lembram?). Tudo para que comecem a rir e para que o véu seja revelado mostrando que há uma equipe de filmagens atrás das câmeras e que o que presenciamos fora uma falsidade. Mas é esse tipo de falsidade que buscamos todos os dias, a arte é a mentira já estabelecida. Por mais realista que seja, sempre será a mimese de algo real, nunca será tão real quanto o verdadeiro de fato o é. Mas é possível causar tormenta positiva dentro do indivíduo ao deixa-lo ciente de que está diante de algo falso, mas algo falso que busca transformar a verdade abstrata em objetos concretos que sejam lidos e sentidos. Neste caso, nas emoções desesperadoras e desconfortáveis de pessoas falsas.
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