Os Chefões: o esquecido filme de máfia de Abel Ferrara

Os Chefões: o esquecido filme de máfia de Abel FerraraOs Chefões é um filme sobre crime e máfia comandado pelo diretor italo-americano Abel Ferrara. Seu enfoque é em uma família de origem italiana, os Tempio, que já no início, choram a morte de um dos seus filhos.

A produção lançada em 1996 aborda temas caros ao que é comum a filmes de gangsteres, abordando a violência extrema que povoa esse tipo de universo, o crime se organizando a na década de 1930 em Nova York.

A diferença principal entre esse e outras obras cinematográficas é que essa é em um registro melancólico de uma América decadente. Do original The Funeral, esse (infelizmente) é um filme que ainda não foi remasterizado sequer para o formato Blu-ray.

Desse modo, só possui cópias dm DVD, possivelmente graças ao fato de ser uma produção do estúdio October Films e MDP Worldwide.

A primeira cena é referencial e reforça a ideia de que essa será uma abordagem dramática sobre a vida criminal da Améria. Em uma tela de cinema é exibido Floresta Petrificada com Humphrey Bogart, um clássico da época, que é assistido pelo finado Johnny Tempio, pouco tempo antes do mesmo perecer.

Depois desse breve epilogo, o roteiro de Nicholas St. John passa para o funeral que nomeia o filme originalmente. Os fatos seguem o processo de velar o sujeito que é o filho caçula interpretado por Vicente Gallo, estabelecendo uma narrativa temporal que resgata o passado do rapaz e mostra um futuro sangrento para o clã.

Ferrara conta com um elenco estrelado a sua disposição. Além do já citado Gallo há a dupla de irmãos, com Christopher Walken, que faz Raimondo "Ray" Tempio, Chris Penn como Cesarino "Chez" Tempio. Isabella Rossellini faz Clara, a esposa de Ray e ainda há Benicio del Toro como Gaspare Spoglia, rival da família.

Os Chefões: o esquecido filme de máfia de Abel Ferrara

Durante o processo de luto, o público é convidado a assistir a digestão do sentimento triste dos familiares, assim como também testemunha os pensamentos mais íntimos dos parentes de John, sobretudo de seus irmãos.

O texto permite que Ferrara faça seu filme ser contemplativo no início, mas não demora a mostrar as fortes emoções da família. Vale lembrar que o termo família é literal aqui, é um grupo de parentes, que por acaso tem ligações com a máfia italiana, mas que está longe de ter a pompa e o luxo do clã Barzini, Tattaglia ou Corleone em O Poderoso Chefão.

Eles são apenas familiares com ligações ao crime organizado, contraventores, mas bandidos da parte de baixo da cadeia alimentar.

Depois do choque de ter perdido o caçula, cada um dos Tempio é mostrado em seu esplendor, com personalidade diferenciadas e bem caracterizadas em cada um dos personagens. Ray por exemplo é receoso e paranoico, acredita que Johnny morreu graças aos negócios entre famílias.

Já Chez é emotivo, demonstra perplexidade com a perda do parente e trata de agarrar cada um dos membros que restaram da sua família de maneira carinhosa, porém excessiva. Ao beijar o próprio filho, acaba assustando ele, de tão forte que o abraça.

Além de mostrar a podridão do mundo que se baseia no crime organizado, também se alude as questões comuns do luto, mostrando que o modo de reagir da cada um é singular.

As lamentações pela perda se tornam o pretexto perfeito para resgatar o passado violento de cada um dos familiares. As cenas são fortes, não por grafismo, mas sim pelo simbolismo, já que o pequeno Raimondo é levado a atirar e a matar um homem quando ainda é uma criança.

Ele estava destinado a se tornar um homem violento, aparentemente, desde pequeno tinha a marca da morte sobre sua cabeça e o sangue de outros homens em suas mãos.

Os Chefões: o esquecido filme de máfia de Abel Ferrara

A família lamenta a morte do rapaz de apenas 22 anos, um assassinato a sangue frio, executado fora de tela. Fica então o mistério sobre como e por que ele pereceu.

Toda a trama parte da má aceitação e do luto não processado, da não aceitação de cada um deles sobre a morte de Johnny, que é claramente o menos envolvido em casos violentos e criminosos.

Johnny era mal visto pela comunidade de seu bairro. Motivos para isso não faltavam. Ele tinha fama de ser mulherengo e fala-se que ele tem aspirações políticas marxistas. O que de fato ocorre com ele é uma proximidade de sindicatos de trabalhadores, fato que o faz ser chegado de partidários socialistas e comunistas.

Como o roteiro se baseia na confusão mental dos enlutados, é fácil se perder na narrativa, nas idas ao passado e na digestão do sentimento triste que vem junto com uma grande perda familiar.

De volta ao funeral, entre abraços e beijos calorosos da família, os presentes tentam colocar juízo na cabeça dos mais esquentados - leia-se Chez e Ray.

Cabe as mulheres o papel de apaziguadoras de ânimos, de tentar tornar racional o procedimento de cada um dos participantes do núcleo familiar central.

Os irmãos são mostrados como pessoas problemáticas, como homens descompensados. Chez é dramático, afeito a protagonizar canções.

No seu bar ele tem rompantes emocionais extremos, se excedendo inclusive com clientes, para logo depois aparecer alegre, entoando em alto e bom som versos de um jazz antigo.

Os Chefões: o esquecido filme de máfia de Abel Ferrara

Ele é um homem casado mas pratica indiscrições e infidelidades e ao encontrar uma mocinha que ele acredita ser menor de idade. Sua atitude é passivo-agressiva, humilhando a garota quando a mesma se oferece para fazer sexo com ele por dinheiro. Ao falar sobre isso ele iguala o ato dela a vender a alma ao diabo, fato que para um católico apostólico romano era algo grave.

Curiosamente a cena termina ambígua, acabando abruptamente, sem ter noção do que ele fez com ela depois, se correspondeu aos gracejos, se cometeu um ato de pedofilia, se agrediu ela ou a liberou para viver a sua vida.

Fato é que Chez tem pavio curto e invariavelmente faz lembrar versões de mafiosos mais agressivos e explosivos, sanguíneo como o Tommy que Joe Pesci faz em Os Bons Companheiros.

Na cena em que Chez canta, há do lado de fora um número violento, onde Gaspare ataca um homem, ferindo-o mortalmente.

Ferrara brinca de fortalecer a ideia de essa é uma opereta familiar, que tem em Cesarino o seu norte emocional, enquanto Raimondo é o lado mais racional.

Há um bom conjunto de atores aqui até no elenco menos famoso. Os interpretes são acostumados a filmes de máfia que giram em torno do núcleo central, contando com gente como Robert Miano de Donnie Brasco, Paul Hipp de The Last Godafather, Victor Argo de Jogo Bruto, Frank John Hughes de Sopranos e The Offer, Andrew Fiscella de Gotti. Tem até Edie Falco, de Sopranos e Nurse Jackie em um papel pequeno.

Há também a figura de David Patrick Kelly, que não está em tantos filmes de máfia, mas é acostumado a fazer bandidos desde Selvagens da Noite até ao O Corvo.

Entre os Tempio há também Gretchen Mol, que teve um papel de destaque em Boardwalk Empire, John Ventimiglia que fez Artie Bucco em Sopranos. As esposas dos irmãos são interpretadas por atrizes experientes também, sendo Jean feita por Annabella Sciorra, que fez recentemente Godfather of Harlem e Tulsa King, enquanto Clara é feita por Isabella Rossellini, de Veludo Azul e A Morte lhe Cai Bem.

Mesmo entre os atores que fazem os principais papéis tem experiência Walken fez Rei de Nova York (do própria Ferrara), Narcodólares: Uma Cilada de Filho para Pai e Pulp Fiction . Gallo fez Os Bons Companheiros e Penn esteve em Amor à Queima-Roupa e claro, em Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino, que é o seu papel mais famoso até hoje.

Johnny e Chez tinham uma relação conturbada, viviam em atritos, algumas vezes brigando feio e até chegando as vias de fato. Mas eles eram unidos por um laço sanguíneo e sagrado.

A relação deles é um bom resumo do que se busca na idealização da santidade católica, que tal qual em quase todos os filmes que lidam com temáticas da Cosa Nostra, Camorra,Omertá etc, a crença anda lado a lado com a prática dos crimes que a máfia ítalo-americana pratica.

Ferrara captura bem essa tradição, fala sobre essas questões com propriedade e mostra as contradições desse estilo de vida, denunciando que apesar de hipócrita e pecaminoso, a busca religiosa dos homens feitos é sincera.

Apesar de não ser tão gritante e histriônico quanto os filmes de Martin Scorsese, o que se vê é uma criminalidade decadente, triste, ridiculamente patética.

A construção de época é acertada. Não há nada que denuncie que o filme não se passe na década de 1930, mas a história também ganha por sua universalidade, já que fora figurinos e alguns carros antigos, essa história facilmente se encaixaria na atualidade. Acaba por ser um conto atemporal e universal, que fala mais sobre a identidade de um povo do que sobre uma época em si.

O longa conta ótimas atuações, especialmente dos atores que fazem os três irmãos. Gallo, Penn e Walken sequer se parecem fisicamente, mas tem uma sinergia impressionante.

As cenas deles brigando ou confraternizando são bem construídas, são lembranças que reforçam o carinho e o amor fraterno nutrido entre os três, mesmo que eles tivessem uma maneira singular de conduzir suas vidas.

Agora falaremos abertamente sobre o final, caso não queira spoilers recomenda-se ver o filme antes para depois retornar.

Os Chefões: o esquecido filme de máfia de Abel Ferrara

O motivo da morte de John foi o puro acaso. Não havia nada mirabolante, nem crime político, nem revide de um crime sexual como se levantou durante a investigação de seus irmãos.

Um homem simplesmente perdeu a noção de sua própria força e em meio a uma lição que tentou pregar, acabou não assustando e sim matando o sujeito. A atitude de correção deu extremamente errado e cobrou consequências, claro.

Ray mesmo diz ao sujeito que aquele foi um procedimento de raiva, um excesso de quem não respeita a vida e que isso não poderia ficar impune. Curiosamente ele se julga esperto e sábio o bastante para julgar terceiros, mas ele mesmo age de forma destemperada, mal pensada, por instinto, da mesma forma que o assassino de seu irmão.

O destino não permite que ele saia impune disso. Ray sofre tal qual o algoz de Johnny. Aos dois resta a mesma classificação, de serem pessoas incapazes de viver em sociedade. Ferrara usa a justiça poética para equilibrar a equação envolvendo a família e a faz de maneira cruel, visceral e violenta.

Chez tem um colapso no final. O momento chega a ser confuso de tão bizarro e trágico que é o seu desfecho.

Os atos de Cesario são inesperados, uma reação ilógica, que resulta em uma entrada teoricamente comum, com ele distribuindo tiros em seus parentes homens, nos primos e até o irmão que ainda lhe resta, assim como o que está sendo velado.

Há até um aspecto lúdico e onírico nesse trecho final. O sujeito é tão melancólico ao perceber que sua vida será incompleta sem seu irmão que ele surta, mata o outro, depois dá cabo de sua própria, diante dos olhos dos parentes que sobreviveram.

A cena do tiro na própria boca é agressiva, nojenta e sangrenta. É de uma violência tão estúpida que termina bela. O sangue escorrendo por sua boca se derrama de forma vagarosa no frio ferro da pistola. Seus olhos se reviram, fugindo da vida.

A união dos atos de Chez representam bem o estado de espírito de alma perdida em meio a um mundo frágil, masculinista e em ebulição.

O maior acerto de Ferrara é quando atinge a verossimilhança. Sua narrativa evidentemente tem suas fantasias e suspensões, mas é facilmente crível.

Ninguém que assista Os Chefões é capaz de condenar a família que protagoniza a história, dada a naturalidade com que ela é desenvolvida, mesmo falando de violência, assassinatos, crueldades. É um conto familiar depressivo e agressivo, daqueles difíceis de esquecer.

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