Grave é um filme franco-belga que ficou famoso antes até de entrar no circuito comercial de cinema. Lançado em 2016, é dirigido, escrito e idealizado pela cineasta francesa Julia Ducournau e marcou bastante por ter assustado os espectadores, trazendo à tona uma nova versão para o clichê de filme de amadurecimento, os famosos coming of age.
Apesar de ter sido bastante marcado pelas polêmicas escatológicas e pela sensação de nojo, a diretora rejeitava a pecha de que o seu filme é uma obra de horror e terror.
Na prática, ele é, afinal, em sua intenção é a de perturbar, misturando comédia, drama juvenil e horror corporal, ela acaba abraçando diversos clichês de filmes trash e até do cinema italiano de canibalismo, inclusive mostrando maus tratos a animais, embora de maneira muito menos agressiva em comparação com o cinema de Ruggero Deodato ou Umberto Lenzi.
O longa foi produzido por Jean des Forêts, que até então, havia trabalhado como coprodutor em obras como Chilla e Aloys, depois produziu A Garota da Pulseira e Earwig.
Na época do lançamento foi polêmico, já que várias pessoas saíram da sessão quando passava no Festival de Toronto de 2016.
Quando ele passou em outras praças, teve momentos parecidos com esse episódio, desde eventos pequenos como a entrega de sacos de vômito pelos recepcionistas do Nuart Theatre em Los Angeles, ou episódios de desmaios e vômito no Festival de Cinema de Gotemburgo, com gente saindo prematuramente do cinema.
A classificação original seria NC-17, ou seja, para maiores de 17, graças a violência gráfica. Essa é uma categoria antes da máxima, que é a classificação R.
O longa se chama originalmente Raw, mas em algum ponto da produção foi chamada de Freaking.
Há poucas variações de nome pelo mundo, entre Grave e Raw. Entre os mais diferentes estão Meco na Bulgária, Sirovo na Croácia, Voraz no México e Raw - Una cruda verità na Itália.
As filmagens ocorreram na Belgica, em Liège, com cenas na Université de Liège - Sart-Tilman e esse foi o primeiro longa-metragem dirigido pela diretora, que até então, havia codirigido o telefilme Mange, depois fez episódios de Servant e horror corporal Titane, além de episódios em New Look.
Essa é uma produção dos estúdios Petit Film, Rouge International, Frakas Productions, Ezekiel Film Production, Wild Bunch, distribuído por essa última companhia na França e O'Brother Distribution na Bélgica.
Antes de entrar nos méritos da trama, vale destacar que os efeitos especiais são bem realistas, fruto do trabalho de Olivier Afonso (de O Escafandro e a Borboleta e Benedetta) e Amelie Grossier (Assim na Terra Como no Inferno e A Freira 2), que mostram variações de corpos, desde os comuns até outros mais voltado para o fantástico, conseguindo assustar e deixar o espectador incomodado em muitos momentos.
A cinematografia do belga Ruben Impens favorece esses aspectos também, uma vez que prima por uma abordagem realista, mas que não tem qualquer receio em mostrar os trechos nonsense e de viagem pelos quais passam os personagens centrais. Impens vinha de trabalhos premiados, como Alabama Monroe, Bistrô Romantique e Querido Menino. Voltou a trabalhar com a diretora em Titane.
Ducornau tentou demover as pessoas sobre leituras alegóricas a respeito do roteiro. Para ela, esse é um filme literal, que aborda temas como canibalismo e metamorfose, dando novos significados para o clichê de Coming of Age, que são os filmes sobre descobertas adolescentes, ficando assim, bastante próximo do canadense Ginger Snaps, que no Brasil é conhecido como A Possuída.
Além do tema pesado sobre canibalismo, o filme também lida com questões pontuais que podem impressionar o público médio, inclusive em temas delicados, como suicídio. Deixamos aqui um aviso de possível gatilho.
O início da trama é silencioso e violento, aparecendo primeiro uma estrada interiorana, cercada de árvores enquanto a câmera o foco nela. A perspectiva muda para o ponto de vista do motorista do carro que passeia pelo o asfalto. Eventualmente o ponto de vista retorna para o primeiro, com a pessoa não mais no quadro.
Logo alguém pula na estrada, no que parece ser uma tentativa de suicídio ou armação para fazer o motorista se machucar. A resposta para essa indagação só seria dada bem mais tarde.
O som só "aparece" quando ocorre a aproximação que carro, como se esse evento da batida fosse a questão disruptora da trama, quando claramente não é.
A trilha sonora de Jim Williams ajuda a compor a atmosfera de surrealismo, com instrumentais levados de maneira tão intimista que convidam a pessoa a mergulhar na sensação de estranhamento crescente. Ele vinha de trabalhos dentro de um cinema de horror peculiar, como em Kill List e Turistas do bom Ben Wheatley e Possessor de Brandon Cronenberg.
Esse mistério é deixado de lado em um primeiro momento, basicamente para mostrar sua protagonista, a jovem Justine, ou Ju, personagem de Garance Marillier, que está em um restaurante junto aos pais, que são interpretados por Laurent Lucas – que também aparece no terror corporal extremo com tema semelhante Em Minha Pele- como pai e Joana Preiss como mãe.
Ducornau queria muito trabalhar com Garance Marillier, inclusive pediu que ela trabalhasse com corpo e postura. A ideia é que a aparência da personagem denotasse a mudança cerebral e de alma da menina, tanto que ela muda de postura drasticamente ao longo da história.
A criação da família passa por uma característica singular, já que todos eles são vegetarianos, tanto que a figura materna reclama que serviram um prato com carne para a menina, mesmo que eles tivessem pedido uma opção só com alimentos de origem vegetal.
Ela transita entre a figura de moça ingênua com a ruptura da questão da mulher que entra na fase adulta, que descobre os impulsos e vontades sexuais, com descobertas que passam por entendimento do que gosta e não gosta em matéria de sexo.
Marillier havia trabalhado com a diretora em Mange, mas trabalhou também em outras obras, como os curtas-metrans Quinze kilomètres trois, Solo Rex, Hotaru, depois fez Os Segredos de Madame Claude, o longa Titane e a minissérie Desaparecida Para Sempre.
Justine está indo para a faculdade e em seus primeiros dias passa pelos tradicionais, bagunçados e humilhantes trotes, no entanto, os primeiros dias são preenchidos mais com festas, baladas, momentos de descontração e menos com humilhações.
Ela é colocada em um quarto com um rapaz, mesmo que tenha pedido para dividir um com mulher. O sujeito é Adrien, personagem de Rabah Naït Oufella, se afirma gay e diz que dá no mesmo ela ter um colega feminino e um homossexual, embora obviamente não seja a mesma coisa.
Justine estuda veterinária, mas os primeiros momentos dela na faculdade têm mais a ver com festas do que qualquer estudo.
No início ela se divide entre os encontros com sua irmã mais velha. Essa se chama Alexia, que é apelidada de Alex e é interpretada por Ella Rumpf, em momentos de trotes e também em festas e chopadas.
Se Justine é tímida, Alexia não é. Tem uma personalidade expansiva, participa mais de brincadeiras com colegas, é mais desinibida e usa o seu prestígio para tentar inserir a irmã nas rodas de amigos, mesmo que não a poupe, afinal, a parte da maior prenda que ela tem, que é comer o rim de um coelho, foi feito por Alexia.
As duas andam quase sempre juntas, acompanhadas do pet Quicky, um cachorro que é cuidada pela irmã mais velha.
De certa forma, Grave lida com questões semelhantes aos filmes de Dario Argento, no sentido de mostrar um lugar de estudantes, em regime de internato, onde aparecem muitas garotas, como havia sido em Suspiria e Phenomena, retribuindo as referências ao clássico Internato Derradeiro de Narciso Ibáñez Serrador.
A partir daqui, falaremos com spoilers
Em meio aos estudos de veterinária que tanto Alexia quanto Justine tem, ocorrem cenas reais de cuidados, inclusive sequências onde os animais se machucam e são incomodados, especialmente os cavalos.
Essas sequências se tornariam mais e mais frequentes, tendo ou não haver com as reações alérgicas que Justine passa.
A protagonista adquire feridas na pele, que descascam em alguns momentos e sangra em outros pontos do corpo. A enfermeira acha que pode ter a ver com relações sexuais, a orienta a usar camisinha, mesmo que ela não seja mostrada transando ou flertando, ao menos não nesses trechos.
Fato é que aqueles não parecem ser ferimentos comuns, é bem estranho, como se a parte do coelho que ela comeu tenha causado uma grande reação de repulsa, com o corpo dela tentando se defender após a descoberta de um novo paladar.
Depois desse ponto Justine entra em declínio. Ela deixa de lado a condição de aluna exemplar. Suas notas pioram, ela passa a ficar nervosa, até seu roommate estranha os assaltos dela a geladeira à noite, onde ela não resiste e decide comer carne.
Na madruga ela tenta em vão fingir que não vai comer nada da geladeira e sim cereais. Quando o garoto se vira ela lança mão do frango, come rapidamente e de maneira crua, sem qualquer tempero. Dá a impressão de estar se tornando uma figura movida apenas por instinto e não por razão.
A parte do frango foi feita com efeito prático e não com galinha de verdade. Foi construído com açúcar e ingerir isso foi tão ruim para Marillier que a atriz disse que evitou comer doces por um bom tempo, possivelmente para o resto da vida.
No entanto a cena mais perturbadora desse trecho envolve outro modo oral de lidar com comida: o vômito.
Em momentos de nervoso, ela lambe o próprio cabelo, parece ingerir um pouco, comportamento esse comum entre pessoas ansiosas, sobretudo as muito novas.
Em uma noite ela vai até o vaso e simplesmente vomita uma quantidade enorme de pelos, de uma forma feia demais, bem diferente do que um gato faria, por exemplo.
Estando insegura, ela procura a irmã, justamente quando ela está manejando um animal bovino, com o braço nas partes íntimas, a fim de desobstruir o intestino. É uma de tantas outras sequências nojentas e nauseantes, mesmo que não tenha nada a ver com medo ou susto.
Há outra cena bizarra, quando Alex depila a irmã. Dito assim parece um momento normal, mas antes da irmã mais velha chegar, parece que o cão vai lamber a vagina da irmã mais nova.
Marillier tinha 17 anos na época das filmagens e foi substituído por uma dublê na depilação, mas a idade dela é algo subalterno, já que a cadeia de eventos resulta em trechos ainda mais bizarro do que uma simples depilação, já que ocorre em um acidente que faz Alexia decepar o próprio dedo, depois que a irmã chuta sem querer a mão que carregava uma tesoura que deveria estar afiadíssima.
É com o dedo de Alexia que ela tem um breve gosto do que é ser canibal. Quando sua irmã desmaia, Justine procura gelo, mas não acha. Depois de acidentalmente deixa cair sangue na própria mão, se sente imediatamente atraída e com vontade de lamber o sangue.
Uma coisa leva a outra e ela trada de mastigar o membro. Depois que ela passa a comer a pele e carne da irmã, Alexia acorda, flagrando essa perda, chorando com ela.
O filme tem algumas cenas de nudez, que incluem até a atriz principal. Diretora e interprete conversaram bastante sobre esse tipo de exposição, para que tentassem fazer tudo soar o mais natural possível, fugindo de qualquer sexualização com a menor de idade.
Outro momento pitoresco ocorre no hospital, onde na sala de espera, um senhor idoso sorri para Ju, brincando com sua dentadura, mostrando os dentes postiços para ela. É tão nonsense que chama a atenção, ajudando a compor o quadro de completa estranheza da obra.
Alexia sente raiva, mas culpa Quicky pela perda do dedo. Então instrui a própria irmã, como agir, mas o faz sem avisar nada. Elas vão para a estrada do início do filme, onde a irmã mais velha pula, provocando um acidente.
Em um primeiro momento parece que essa é a cena inicial, depois fica evidente que ela faz isso frequentemente, para conseguir alimento. Esse é o primeiro indício de que aquela condição ocorre com mais gente, especialmente na família das meninas.
O choro de Alex, na sequência anterior, não teria sido por saber que perderia o dedo e sim por perceber que a irmã sofre o mesmo mal que ela, tem os mesmos impulsos maléficos e a mesma fome incontrolável.
A segunda metade do filme é repleta de momentos de surto, uma em especial chama a atenção, quando Justine está embaixo das cobertas brancas. É uma das muitas manifestações de colapso mental, que vão ganhando contornos tangíveis a fim de deixar o espectador à par do estado mental estressado e fragilizado da moça.
Entre momentos em que Justine morde colegas e se aproveita da curiosidade sexual dos rapazes, a rotina segue, inclusive envolvendo o seu colega de quarto, além de momentos de autoflagelo.
Ela se torna uma figura animalesca, selvagem, agressiva e assustadora.
A medida que evolui nisso, se torna também mais excitante e convidativa a interações carnais. É como se essa transformação selvagem a tornasse mais madura, possivelmente até melhorando o próprio cheiro, provocando assim os rapazes com feromônios.
Em uma festa ela fica de canto, depois começa a interromper casais, beija meninos e meninas, parece fora de controle, tomada por algo externo, que reúne semelhanças até com manifestações espirituais e de possessão.
As pessoas passam a tratar ela de maneira ainda mais bizarra e preconceituosa, tanto que gravaram ela em um estranho momento, que seria exposto mais tarde.
Em determinado ponto desse encontro social ela fica em uma posição bizarra, com expressão fechada, quase como uma menina possuída. A imagem é bonita, especialmente por investir em uma cor característica, que demonstra um quadro escarlate, com um vermelho vivo, que lembra sangue e paixão, em uma mistura poética, sexual e bizarra.
Adrien a chama, leva no banheiro e mostra um vídeo dela bêbada, enquanto há várias pessoas em volta, em um necrotério, onde Alexia oferece as partes de um cadáver para ela comer.
Além da exposição, ela ainda tem uma ação corporal bastante semelhante ao que era comum a um zumbi dos filmes de George A. Romero. Parece entorpecida, como um ser irracional, aparecendo no vídeo junto a sua irmã.
Alexia e Justine obviamente brigam, vivem seus dias de Caim e Abel, se enfrentam no meio do pátio da faculdade, se enfrentam tal qual gladiadoras infantis e tolas, que até se mordem, mutuamente.
Em outro ponto ocorre um dos momentos mais belos e agressivos, que envolve a última cena de Adrien. A construção da sequência é sensacional, se desenrola gradualmente, mostrando a pele da coxa dele em carne viva, aparecendo o osso, além de um ferimento mortal nas costas, com um buraco que parece o de um tiro, mas que foi feito por um espeto, que está ao lado da cama.
Essa foi a cena mais difícil de fazer para Garance Marillier. Ela afirmou que a diretora a fez assistir a cena de Trainspotting: Sem Limites para ajudar a compor o momento. Curiosamente o filme de Danny Boyle também parece referenciada na cena animalesca da gravação.
Ao observar Alexia no quarto, jogada de lado, toda ensanguentada, sentada no chão, com um joystick na mão, Justine percebe como ela chegou ao estágio em que foi gravada, percebendo que o consumo de carne humana a tornava bestial.
Se nota ela inebriada, como se estivesse louca graças a droga ou álcool, entorpecida por contato com ou carne ou sangue humano, mas de uma maneira mais intensa e mais rápida. Esse trecho abre a possibilidade de leitura crítica relacionada ao consumo de drogas álcool pela juventude.
O estágio selvagem das duas é bem flagrado, em cenas que primam pelo bizarro e agressivo, ainda é fechado com uma reunião de jovens, que se amontoam, aparecem sujos ou com cobertas, como se tivessem acordado a pouco, como parte de um transe que Alexia e Justine tiveram.
Seria esse um culto? Seria algo das irmãs que contagiou a todos? Seria apenas a imaginação idealizada da protagonista, que entende aquilo como a aceitação de sua própria condição? Talvez uma dessas, talvez todas essas.
No final há uma conversa de Justine com seu pai, bastante expositiva e desnecessária, que deixa claro que há algo de errado com as mulheres da família.
Deixar a questão para interpretação do espectador certamente seria uma saída mais elegante e inteligente, mas de modo algum essa explicação estraga o final, ao contrário, dá um bom tempero e demonstra que essa é uma condição inexorável, que não seria driblada. Quase como um fato predestinado.
Grave é um coming of age pervertido, estranho, que flerta com o cinema extremo francês e que fala da juventude sem subestimar nem público e nem personagens. É um bom exemplar do cinema de gênero, mesmo que sua idealizadora refute a ideia de que é uma obra de horror. É agressivo, violento e pontual, certamente não é feito para todos os públicos e se aceita bem com essa condição.
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