O Homem nas Trevas é um filme de suspense, mas que por ser tenso e assustador, acabou entrando no espaço dessa coluna. Lançado em 2016 o longa mistura elementos do subgênero do horror chamado invasão domiciliar, além de ter algumas viradas pontuais.
Foi recebido com curiosidade e muito elogiado na época, em especial graças ao comando do diretor uruguaio Fede Alvarez. Sua abordagem é simples, conduzida de forma inventiva, que vai crescendo em importância durante o desenrolar dramático.
A sinopse dá conta da história de um grupo de jovens contraventores, que tentam se aproveitar de um velho deficiente para assaltar sua casa. Esse número dá bastante errado e se desenrola uma trama violenta e macabra a partir daí.
O grupo é formado por três ladrões, que praticam pequenos golpes na perigosa cidade de Detroit e que recebem a dica de que o veterano de guerra cego tem em sua casa uma grande quantidade de dinheiro, graças ao pagamento que uma família rica fez ao homem velho, a fim de livrar a filha deles de um crime cometido.
No início as informações são vagas, genéricas, são detalhadas ao longo do filme, mostrando que o trio não era tão esperto quanto julgava ser, não à toa as expectativas de horror acabam sendo invertidas com o desenrolar dos fatos.
Produzido por Sam Raimi, o filme foi muito barato, contando praticamente com uma única locação. Ele foi rodado na Hungria, nas cidades de Pomáz e Budapeste, com acréscimos pontuais da Buena Vista Street, em Detroit-Michigan.
Aqui é reunida boa parte da equipe criativa do remake A Morte do Demônio, incluindo produtor e diretor já citados, também o roteirista Rodo Sayagues, o compositor Roque Baños e a atriz principal Jane Levy.
O projeto deu tão certo que a Screen Gems - companhia da Sony Pictures - liberou junto a Stage 6 Films e Ghosthouse a produção de uma sequência, O Homem das Trevas 2, dirigido por Sayagues em 2018.
A primeira cena desse primeiro capítulo é uma tomada aérea, feita com um drone, mostrando uma paisagem arborizada, com uma estrada no meio, enquanto uma pessoa passa pelo asfalto arrastando alguém ferido.
A trama não demora a mostrar Rocky, Alex e Money, personagens de Levy, Dylan Minnette e Daniel Zovatto respectivamente, roubando uma casa abastada, zoneado tudo pouco antes de sair, com um deles - o imaturo Money - urinando em tudo para "deixar sua marca".
Quando entram no carro Rocky revela que quer parar de praticar esses roubos. Dentro desse grupo ela parece de fato ser a mais esperta, tanto que antevê a possibilidade de tragédia.
Seu plano é praticar só mais alguns golpes para arrecadar fundos e sair de Detroit. Quer mudar de ares e rotina, graças a motivos pessoais, que seriam descortinados mais tarde.
O atalho para essa nova alternativa passava pela localidade da rua Buena Vista 1837, o lar de Norman Nordstrom, o veterano da Guerra do Golfo, interpretado por Stephen Lang, que perdeu a filha, atropelada por uma patricinha, cuja família se encarregou de pagar uma grande indenização pelo "inconveniente" que os Nordstrom sofreram. A ideia do trio de malfeitores é atacar o local silenciosamente, para enfim pegar para si esse dinheiro.
As motivações dos jovens bandidos são diferentes entre si. O roteiro tenta justificar os atos de Rocky mostrando ela em uma família incompleta e disfuncional.
Ela vive com sua mãe e irmã. Além delas, há o avatar máximo, o símbolo mais óbvio de uma família disfuncional, que é o padrasto abusado e encostado, que aqui, explora a mãe da moça e tem um péssimo relacionamento com as enteadas.
O desejo da menina é levar a sua irmã em sua fuga, passando assim a de certa forma limpar o dinheiro sujo dos golpes que pratica, com os fins justificando os meios, já que dessa forma, ela daria uma boa vida para a caçula da família, impedindo que a irmã passasse pelos mesmos problemas que ela mesma passou.
É piegas ao extremo esse argumento e de certa forma, Alvarez e Sayagues desdenham dessa ideia, já que conduzem isso com uma certa ironia.
O apelo e denúncia sobre as famílias estadunidenses não é necessariamente ruim, o que de fato incomoda é a conveniência de que esse seria um motivo suficiente para empurrar alguém para um ofício tão específico de conseguir entrar em casas repletas de sistema de segurança.
Para piorar esses feitos ocorrem da parte de hackers juvenis, que aparentam ter idade quase escolar. Ainda assim o filme é crível, especialmente graças ao fato dos personagens serem realistas e defeituosos.
O trio é burro, pois além de subestimar o alvo, ainda confundem fatos do passado dele. São tão generalistas que acham que Norman perdeu a visão na guerra do Iraque, quando o mesmo lutou em outra guerra, no Golfo Pérsico. A fraqueza dessa pesquisa revelaria outras fragilidades no plano, obviamente, mas há artifícios que fazem o público retomar o interesse na ação dos personagens.
Durante o dia do roubo, um fator se destaca: a música de Baños, que ajuda a montar uma aura de apreensão e suspense. A trilha sonora pontua bem os momentos mais tensos, serve ao intuito de condenar o ataque ao ambiente domiciliar, julgando inclusive ações pontuais, como maltrato ao cachorro que serve de guarda e guia para o homem cego.
No meio da invasão, Alex desiste do roubo, decide sair da casa antes que eles cometam um crime com arma de fogo, fato que aumentaria a pena se fossem pegos, mas obviamente que o texto mudaria as circunstâncias, tornando o drama em algo mais grave.
Os bandidos até tentam dopar Norman, mas fizeram tanto barulho que acordaram ele mesmo depois de injetar o sonífero. Provavelmente também erraram na dose do sonífero, já que o homem velho e aparentemente frágil não era exatamente como eles pensavam. Aos poucos ele vai mostrando sua real face de crueldade, ao perceber a tentativa dos jovens de lhe fazer mal, ele retribui, se achando correto em seus atos.
A partir daqui falaremos com spoilers sobre a trama. Leia sabendo disso.
Lang está muito bem, consegue ter um desempenho que varia entre os polos propostos distintos pelo roteiro. Para os fãs de Avatar que esperavam que ele se tornasse um herói de ação após o filme de James Cameron, esse Homem nas Trevas é um alento, uma vez que ele se aproxima de um vingador justiceiro, que defende sua base e casa de três invasores, mas não sem grandes problemáticas éticas, tal qual ocorria com seu personagem no blockbuster de 2009.
Não demora a ocorrer a primeira morte. Money perece de maneira bela visualmente, com um barulho musical estridente, que destoa dos outros trechos onde o silêncio predominava.
É um baita momento, que fica ainda mais tenso pelo fato de Rocky estar ali do lado, tentando fazer silêncio. No entanto a partir daqui é preciso um pouco de suspensão de descrença, já que em certos momentos o dono da casa parece escutar algo que ocorre em outro cômodo, mas é capaz de passar do lado de alguém e não perceber nem os barulhos corporais básicos como respiração ou contrações musculares.
Alex faz o movimento esperado, retornando a casa para tentar salvar Rocky, já que claramente nutre por ela uma paixão platônica. Mesmo sendo meio forçada a questão, cabe dentro da proposta.
Até certo ponto o homem cego podia ser encarado meramente como uma vítima que age em legítima defesa, mas a partir do segundo terço não há mais como encarar ele assim.
Em alguns pontos o texto parece sensacionalista, especialmente quando mostra que ele raptou a assassina de sua filha Cindy Roberts, personagem de Franciska Töröcsik.
O quadro se agravaria ao saber o motivo dele manter a menina cativa.
Um fator que desacredita a boa construção textuais são as conveniências. Fora a habilidade de superaudição que funciona só em alguns momentos, há também dele utilizar a mesma senha em dois cofres. Alguém tão meticuloso e paranoico não faria isso, especialmente uma tão fácil como a utilizada. Como o filme decide se levar a sério demais, isso acaba incomodando.
Norman tem total domínio sobre o cenário, tanto que ele acerta as luzes na parte baixa da casa para ganhar vantagem sobre os ladrões. Age como um bicho territorialista, um felino de dentes afiados, que é capaz de qualquer coisa para permanecer vivo e com seu esconderijo intocado.
Mesmo cego ele atira e acerta em alguém. O sujeito reage estranhamente, chora e lamenta ao saber que matou Cindy e não um dos invasores, enquanto se despede dela, ele abraça a garota, grita que perdeu seu bebê, deixando aberta a possibilidade dele talvez enxergar nela sua filha morta.
No escuro sua figura é assustadora, amedronta mais do que qualquer fantasma. Seus olhos muito abertos em meio ao breu e ao cinza compõem uma cena agressiva e digna de causar medo no público.
Alvarez tem total domínio de sua narrativa, e faz uma dobradinha talentosa com o diretor de fotografia Pedro Luque. A dupla valoriza partes pequenas dos cenários, esticando o comprimento deles de acordo a expectativa e a perspectiva dos personagens, que vem algo mais fundo do que realmente é graças ao medo e ao susto.
Também há uma inteligente brincadeira com o receio de vidros quebrarem com o peso dos corpos desmaiados, perseguição dentro de dutos de ar e o uso de um rotweiller como fonte de medo e receio, já que o cachorro é um predador caseiro nato, quase tão ameaçador quanto o seu tutor, já que também sai do descanso forçado pelo doping dos invasores.
O roteiro é esperto e não tem pressa em dar um destino aos seus personagens. Vai aos poucos ferindo-os, provocando torturas nas pessoas que entraram ali.
A segunda virada do roteiro é que Norman engravidou Cindy. A notícia é agressiva e se torna pior pelo fato dele achar justo fazer o mesmo com Rocky, já que a moça matou a portadora de seu novo bebê.
Para o espectador mais sensível, essa pode ser uma sequência agressiva, mesmo com ele afirmando que não estuprou a vítima, "só" inseminou nela sua semente. No torpor do seu sequestro, ele acredita que a vítima aceitou de bom grado engravidar, mas não há qualquer prova que atenue o seu ato, tampouco há indício de que Cindy realmente falou aquilo, uma vez que ela não está viva para concordar ou não com ele, e quando estava, ela desejava fugir.
Claramente o homem velho abração a insanidade e deu vazão a ela, tanto que repete o mantra: Não há nada que um homem não faça depois que aceita que Deus não existe.
Uma pergunta sem resposta que fica é por que um sujeito cego e com audição apurada colocaria em sua casa um sistema de emergência que emite um som ensurdecedor, que o deixa vulnerável? Fica a dúvida do motivo de Norman ter feito isso, ainda mais por conta dessa ser uma das chaves do sucesso de Rocky em enfim sair dali.
O Homem nas Sombras é tenso, violento, cheio de reviravoltas e é muito competente em apresentar suas camadas e curvas dramáticas. Brilha sobretudo graças a atmosfera de mal inescapável e as atuações esmeradas de Levy/Lang e a estranha e sinérgica parceria dos interpretes, que ajudam a tornar a obra em algo amedrontador e extremamente angustiante.