Servant é um seriado dramático com elementos de mistério, suspense e bocado de horror, idealizado por Tony Basgallop. Original do serviço de streaming da Apple, o programa se baseia em mostrar a rotina dos Turner, uma família que passou por um grande trauma e que tenta se virar diante dessa perda.
Nesse meio tempo, Sean, personagem de Toby Kebbell, decide ceder aos desejos de sua esposa Dorothy Lauren Ambrose, contratando uma babá, para cuidar de Jericho, seu filho. A grande questão é que Jericho é a criança que morreu, e Dorothy cuida de um boneco, para aplacar a falta que ela sente da criança que se foi.
Chega então Leanne, uma moça de origem humilde, tímida e religiosa, interpretada pela icônica Nell Tiger Free, e todo o interim familiar muda junto com ela. Essa primeira temporada desenvolve essa trama, e inclui alguns poucos personagens, como Julian, o beberrão irmão de Dorothy, interpretado por Rupert Grint.
A série ficou conhecida por ser produzida e ter alguns capítulos dirigidos por M. Night Shyamalan, e já em seu piloto há uma marca do cinema e narrativa do diretor de O Sexto Sentido: um plot twist, já que Jericho "se torna" uma criança de verdade, um bebê de carne e osso, e Dorothy nem percebe a diferença.
O senso de urgência dos Turner é grande porque há um segredo escondido entre eles, um evento envolvendo a mãe e a criança que é explicitado bem aos poucos. O que é dado de fato é que Dorothy ficou catatônica por dias após a perda do filho, então todos tem cuidado em resguardar a mulher.
O texto conterá spoilers depois do parágrafo, mas o que se pode dizer sem revelar grandes partes da trama - até porque mesmo com três temporadas acabadas e uma quarta em andamento - não se tem certeza alguma sobre quem é Leanne, o que ela faz, da onde veio a criança.
Já no início ocorre uma incomoda conversa, com a câmera de Shyamalan inserindo super closes em todos os presentes. A tensão só cresce graças a música de Trevor Gureckis, que acrescenta demais em atmosfera nesse e em todos os momentos daqui para a frente.
O tal objeto que substitui o bebê é chamado de boneco reborn e serve como parte da terapia, no propósito de objeto transicional, artifício esse feito para driblar a crise de Dorothy. Reborn é também o nome do primeiro capítulo, e nele ocorre o momento em que Leanne embarca n0 processo.
A nova babá brinca com o boneco, faz voz de bebê para ele, inclusive condena Sean quando o mesmo larga ele como se não fosse nada, mas faz isso em silêncio, discreta, como um bom serviçal.
Dorothy trabalha como repórter de um telejornal local, tem uma certa fama entre as pessoas dali, enquanto Sean é um bon vivant, especialista em alta culinária, trabalha em casa, mas esteve há pouco tempo na televisão também, como jurado de um reality show gastronômico.
Já Julian é um executivo, ao que parece, trabalha sempre com vestes elegantes, mas não deixa claro exatamente o que faz. Leanne por sua vez tem a fé como seu fator mais diferenciado e identificado. Ela ora toda noite, e isso incomoda Sean, o deixa ressabiado, além do que isso não o faz deixar de perceber as curvas da moça embaixo de sua fina camisola.
Dorothy reclama de dores oriundas da mastite, uma doença que dá nos seios de mulheres que amamentam, fato que deixa claro que Jericho se foi recentemente. Esse é um dos mistérios propostos e pouco abordados, ela realmente tem essa doença, ou é mais uma viagem de sua cabeça?
Leanne a auxilia em tudo, interpreta a empregada perfeita inclusive quando sozinha com Sean. É uma auxiliadora tão grande que consegue fazer um objeto inanimado se transformar em um bebê real, para surpresa de todos, pervertendo assim a história clássica de Pinóquio, por um viés mais de mistério do que fantasia ou horror.
Além de Shyamalan, o corpo de diretores desse ano inaugural é bem talentoso, inclusive com gente do cinema. Daniel Sackheim de A Casa de Vidro faz dois episódios, também conduz Nimrod Antal de Predadores e Metallica Through the Never, e John Dahl de Mate-me Outra Vez, Morte por Encomenda e O Poder da Sedução.
Há capítulos também da diretora Alexis Ostrander, veterana de séries de TV elogiadas, como Monstro do Pântano de 2019, Sweet Tooth e American Horror Story, além de Lisa Brüllman, que conduziu o filme Blue My Mind, mas tem mais créditos na TV, como em Killing Eve: Dupla Obsessão e Quem Era Ela.
A troca da direção é bem suave, o conjunto de condutores parece ter uma linguagem em comum, seguindo o estilo que M. Night inaugurou.
De volta a trama, nacas só Sean se assusta com a aparição do bebê real. Ao ser comunicado do que cerca sua irmã, Julian contrata um sujeito, para investigar quem é Leanne e qual a sua implicação no passado.
Para isso, chega Roscoe (Phillip James Brannon), que trabalha com recursos humanos e é detetive nas horas vagas.
Nesse início seu papel é mais cômico do que sério. Ele serve como um dos alívios de cômicos e de tensão, voltada para uma comicidade bizarra e nonsense, que encontra vez também no auxiliar de Sean, Tobe (Tony Revolori, o Flash Thompson nos novos filmes do Homem-Aranha).
As investigações do passado de Leanne são confusas e revelam histórias nebulosas, contam com uma tragédia que vitimou toda uma família, mas até fatos consumados e ditos como regra entram em contradição depois, por motivos que parecem plausíveis nas explicações dadas ao final da temporada.
Mesmo bem detalhados e discutidos, essas discussões e os factoides oriundos dela parecem um pouco forçados, quando não incongruentes. O que realmente chama a atenção é o quanto Sean é passivo. Chega a ser inacreditável como ele deixa o perigo escalonar tanto em sua casa.
Ele mora com uma pessoa que ele não sabe quem é, que é desonesta ao ponto de mentir sobre sua identidade, que possivelmente raptou uma criança em idade de bebê e que tem contato direto com ele e com sua esposa todos os dias.
Mesmo que Dorothy não tivesse necessidades especiais, seria perigoso manter alguém como Leanne por perto, imagina com essa questão urgente.
Outra possibilidade que Sean e Julian dizem acreditar é que a criança pode ser filha da babá. Em meio a esse apelo para o que poderia ser plausível, eles não tem qualquer resposta dela, já que quando qualquer um deles confronta a intrusa, ela simplesmente exerce o seu papel com ainda mais afinco e finge que não há nada ali.
Sean até abre sua intimidade para ela, fala das várias tentativas de gravidez do casal, que deram errado, e o modo como o corpo da esposa rejeita os fetos. Sua condição é de tanta carência que ele a trata como se fosse uma profissional de terapia, ou é esse sentimento ou algo "externo" - talvez mágico - modifica sua confiança e moral ao ponto de confiar na jovem empregada.
Independente das suspeitas, Leanne é apresentada como alguém comum, que tem até fobias. Ela se assusta com as enguias vivas que Tobe e Sean preparam, demonstra fragilidades para além da frieza que uma suposta criminosa teria.
Possivelmente essa é uma falha dela ou ela somente finge, e como o roteiro se desenrola lentamente, não dá para inferir muita coisa, se é só um fingimento dela fruto do papel que exerce ou se esse é um medo real.
Sean tem pequenos incômodos na estadia da funcionária. Além de ter perdido o paladar, sofre com farpas que saem da cama, enquanto Dorothy não tem qualquer problema em relação a isso.
Normalmente os episódios exploram interações entre poucos personagens, a exceção a um sujeito de meia idade que aparece do nada, na chuva, e diz que a babá é sua sobrinha. Essa visita ocorre no exato momento em que Sean não está na casa, quase como se a ausência do macho alfa chamasse a atenção de outra figura masculina.
Seu nome é George, e ele se diz próximo de Leanne (feito por Boris McGiver), embora ela pareça ter medo dele. O texto aqui brinca com o clichê de invasão domiciliar da parte de um sujeito que adentra uma casa que só tem mulheres.
Quando Julian chega para socorrer as duas, o tio diz que quer simplesmente levar a garota embora, e ele vê nisso uma oportunidade de juntar o útil ao agradável. mas como essa parece ser uma ópera farsesca, os planos dão errado.
As atuações do elenco são ótimas, especialmente porque quase todos os personagens estão em posição de cheque. Alguns são mais histriônicos, outros, comedidos, mas todos parecem estar incomodados com o novo status familiar, e qualquer personagem que se aproxima desse núcleo é contaminado, herda deles a mesma condição.
Isso é um baita mérito da direção que consegue expressar essa tensão quase tangível em todos os dez capítulos dessa temporada inaugural, fora evidentemente todos os paralelos sobrenaturais introduzidos.
Outra característica do seriado são as idas e vindas no tempo. Sem muito aviso, ocorrem flashbacks, que vão aumentando ao longo dos episódios. Quase todos miram a época do nascimento de Jericho, pouco antes ou pouco depois do parto, e isso enriquece a apreciação de quem é e como estão os Turner e seus parentes próximos.
Fora isso, há um sem número de momentos surreais, como pesadelos que parecem reais, ataques de cães que surgem de maneira quase mágica, uma tentativa de tratar Dorothy através de uma pseudo-ciência.
Há de tudo, a família desesperada apela para quase todos os clichês, e no presente, ainda tem que lidar com Leanne e com seus estranhos parentes, com George e com May, a tia interpretada por Alison Elliott.
Os dotes investigativos de Dorothy são ativados, e ela descobre que a tal May era parte de um culto que pegava crianças, e que foi investigada por ela própria, em uma reportagem para a televisão datada de muitos anos. Esse é o momento em que ela fica mais lúcida, enquanto seu parceiro, parece abrir mão da sanidade.
Os Turner têm tantos problemas conjugais e de comunicação que não conseguem ficar ambos bem. É como uma gangorra emocional, enquanto um sobe, o outro desce, e isso se percebe quando Sean tenta queimar a mão destra, para ver se ainda tem alguma sensibilidade.
Não há escapatória, eles estão enredados em um sistema que é difícil de entender o objetivo e de prever os próximos passos.
A primeira temporada de Servant termina trágica, com o sumiço de Jericho - ou seja lá quem for esse bebê - e também com a saída de Leanne. Mesmo sem ter muitas respostas o programa que Basgallop propõe é instigante, curioso e muito, mas muito tenso mesmo. Faz lembrar os bons momentos da filmografia de Shyamalan, e tem uma carga emocional enorme, que é pontuada pelo ótimo elenco.
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